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Jean Lauand, intérprete do Logos

 

Prof. Dr. Sylvio Horta (DLO-FFLCH/USP)

 

Como fundador da editora Mandruvá, à qual tão ligado está o Prof. Jean Lauand, recebi a grata missão de apresentar estas conferências de JL, mais uma homenagem que seus alunos, amigos e leitores queremos lhe prestar, por meio da prestigiosa editora da Escola Superior de Direito Constitucional. E é que neste ano de 2006, JL completa 25 anos de magistério na FEUSP e é oportuno recordar alguns dos principais momentos de sua fecunda carreira.

De Tomás de Aquino se diz que era essencialmente um professor; de Agostinho, um escritor. Penso que o Jean, também neste aspecto, alinha-se com Tomás de Aquino: é um professor que, voltado para a sala de aula, lê, estuda, pensa, escreve... para seus alunos.

Trata-se de um professor incomparável: nestes seus 25 anos de magistério na FEUSP, foi em 20 ocasiões formalmente distinguido pelos seus alunos: como Patrono dos formandos (cinco turmas levam seu nome), como Paraninfo (em 7 ocasiões), como Homenageado (sete vezes) e como único professor da Faculdade a receber o prêmio "Professor do Ano" da Reitoria da USP. Em 2005, ocorreu um fato inédito na FEUSP: houve desentendimento e cisão entre os formandos e dois eventos de formatura: os dois grupos estavam em desacordo em quase tudo, mas havia uma unanimidade: o Prof. Jean era o Paraninfo das duas cerimônias.

Parece-me que seu talento como professor está centrado na capacidade que Tomás de Aquino denomina cogitativa, a faculdade que faz a ponte entre o abstrato e o concreto: por mais elevadas e difíceis que sejam as idéias filosóficas de que trate, JL sempre encontra a metáfora certa e a idéia abstrata é apresentada aos alunos encarnada. Assim, certa vez, em aula, para explicar que os conceitos de natura, substantia, quidditas e essentia eram e não eram a mesma coisa, ele recorreu à comparação tão familiar de lar, casa, domicílio e residência... Assim como lar é a casa enquanto aconchego familiar, natura é a substantia enquanto fonte de operações etc. Noutra ocasião, falando que a alma é simplesmente a forma dos viventes, ouviu um aluno perguntar: "Se é a mesma coisa, por que nomes diferentes?". A resposta foi a de que se tratava de uma forma tão especial (embora, afinal, uma forma) que bem merecia um nome diferente, tal como ocorre nos sanduíches: pode-se pedir um chessburguer, um cheesdog etc. mas o sanduíche de presunto com queijo recebe o nome especial de misto quente e não o de chess-presunto...

Essa é a razão pela qual suas aulas de filosofia sempre estão repletas de canções e poesias: os poderosos recursos do pensamento grego e medieval, a voz média e o neutro, reaparecem em Paulinho da Viola e em George Harrison, e a gíria brasileira ("qual é a tua?" "numa boa" etc.) é pura e simplesmente o neutro de Santo Tomás... [1] E os conceitos fundamentais da filosofia de Tomás de Aquino serão explicados também em relação com aspectos da língua tupi, das línguas africanas, da pintura de Fulvio Pennacchi ou com freqüentes referências ao futebol.

O que mais impressiona em JL é que essa facilidade de comunicação está unida a uma sólida erudição. A delicadeza com o leitor/aluno de tornar acessíveis as teses filosóficas não se deve a um barateamento da temática, mas a uma profunda erudição: precisamente porque JL domina os difíceis temas filosóficos pode expô-los de modo descontraído e agradável, brasileiro. Este fato é comprovado de diversos modos: na complicada carreira da USP, JL passou por inúmeras avaliações: concurso de ingresso, mestrado e doutorado (com o adicional exame de qualificação), as diversas provas dos concursos de efetivação, livre-docência e titular... todas com nota 10,0. Em 70 quesitos de avaliações, 700 pontos!

Essa erudição foi também posta à prova, diversas vezes, em diversas conferências para os mais eruditos professores europeus, como as do Gabinete de Filosofia Medieval da Universidade do Porto, do Departamento de Estudios Árabes e Islámicos da Universidad Autónoma de Madrid ou como conferencista de Sant Jordi para os docentes do Departament de Ciències de l'Antiguitat i de l'Edat Mitjana de la Universitat Autònoma de Barcelona.

         Essas conferências foram no fim do ano passado publicadas na Espanha sob o título En diálogo con Tomás de Aquino por uma editora de clássicos, a Ediciones del Orto, e prefaciada por dois dos principais medievalistas de nosso tempo: Alexander Fidora e Pere Villalba.

Fidora destaca precisamente este ponto: "Daí a fisionomia tão caracaterística do pensamento de Jean Lauand: uma mescla entre a tradição e a abertura, entre o perene e o temporal, traduzida também em seu estilo que une a precisão da palavra escrita com a vitalidade da expressão oral. É esta 'mestiçagem', que torna seu pensamento um pensamento sui generis: não somente humanista, mas realmente humano, na medida em que todo homem, isto é, cada um de nós, se descobre em sua imanência, ao mesmo tempo em que, a partir dessa própria limitação, abre-se para nós a possibilidade da trascendência. A filosofía de Jean Lauand é, sem dúvida, uma grande mostra de erudição, mas não quer ser – e não é – unicamente isto: sua filosofia é, tal como este livro, um convite para participar da sabedoria, para entrar em um diálogo com a sabedoria da linguagem humana e a sabedoria do Verbo".

         E Pere Villalba, apresentando o pensamento de JL, também faz referência a essa inteligibilidade concreta de um mundo criado pelo Logos: "Sin la música de las esferas, sin la música del alma, sin el Lógos seríamos halos puramente quejumbrosos. Jean nos lleva al infinito, a los nombres que impuso Adán, acompañado o sin acompañar, pues él solo bien se sabe apañar."

         Desde seu primeiro livro Educação, Teatro e Matemática Medievais (São Paulo, Perspectiva-Edusp, 1986), publicado há exatos 20 anos, encontraremos essas características: a profundidade filosófica unida ao bom humor, à clareza e à graça na apresentação das idéias. A este seguiu-se O que é uma universidade? (São Paulo, Perspectiva-Edusp, 1987), seu livro que apresenta de modo sistemático a estrutura de seu pensamento e visão de mundo, que tantas obras posteriores iriam aprofundar.

         Pelo Centro de Estudos Árabes (durante dez anos JL foi professor também do Departamento de Letras Orientais da FFLCH-USP) publicou, como autor/organizador, 10 volumes da Coleção Oriente & Ocidente. Diversos outros volumes seus saíram por outras editoras universitárias. Pela Mandruvá, publicamos, entre outros, seus livros Medievália, Interfaces, Ética & Antropologia e Provérbios e Educação Moral - a filosofia de Tomás de Aquino e a pedagogia árabe do mathal, todos esgotados. De suas obras no exterior, a mais importante é a já citada En diálogo con Tomás de Aquino.

         Nos últimos anos, sempre ligado a seu trabalho docente, JL publicou 4 importantes volumes de traduções e notáveis estudos introdutórios pela Martins Fontes: Cultura e Educação na Idade Média (autores do século IV ao XIV), Tomás de Aquino: Verdade e Conhecimento (De Veritate), Tomás de Aquino: Sobre o Ensino e os Pecados Capitais, Tomás de Aquino: a Prudência.

         Pelos títulos, já se vê que seus temas são Idade Média, sobretudo Tomás de Aquino, o pensamento de Josef Pieper, a cultura árabe etc. Em 2002 fundou na USP o CEMOrOc - Centro de Estudos Medievais Oriente e Ocidente.

         Neste que é o 10o. ano de existência da Mandruvá, não poderia deixar de comentar o trabalho de JL como editor, responsável por diversas de nossas revistas internacionais [2] (desde 2002, integradas ao CEMOrOc). Desde o primeiro ano de nossa editora, já estabelecemos contatos internacionais que, ao longo dos anos, se traduziram em cerca de vinte convênios com prestigiosas universidades como as de Frankfurt, Freiburg, Autónomas de Madrid e Barcelona, Porto etc. Se consideramos que se trata da área de estudos humanísticos, clássicos e medievais, não é freqüente para a universidade brasileira um tal privilégio, sobretudo se se tem em conta que já passam de uma centena os volumes publicados (e temos exclusividade de artigos de pensadores tão notáveis como Josef Pieper, Julián Marías, Alfonso López Quintás etc.).

Citando outra apresentação em homenagem a JL, lembraria que em meio a esta quase esmagadora produtividade, poderia passar despercebido (mas somente para os desapercebidos...) um traço marcante de sua obra – sua visão aberta, lúcida e equilibrada sobre questões de caráter teológico. (Não por acaso escolheu como tema para a prova de erudição de titular o bom humor do Deus Ludens.). Também por isso, JL foi o primeiro (e até agora o único) autor brasileiro a ser incluído no site da Biblioteca do Vaticano, integrando por duas vezes a seleção de artigos da Congregazione per il Clero. Tal reconhecimento revela uma consoladora verdade – a de que a inteligência cristã não se opõe mas afirma o todo da realidade, e que aqueles inúteis e falsos dilemas entre fé e razão, dogma e crítica, verdade e vida etc., só comparecem quando o pensador não consegue, como JL, posicionar-se no desejável nível de reflexão que essas instâncias requerem.

As conferências que o leitor tem em mãos são uma privilegiada amostra dessa postura de pensamento voltado para o Logos, para a leitura da realidade que nos circunda, a partir de uma tradição clássica e medieval, sempre renovada pelo diálogo e abertura para a realidade e a cultura do presente.



[3]  (Cf. http://www.hottopos.com/videtur26/jean.htm)