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O Neutro na Gramática e na Metafísica – “Qual é” a do Neutro?

 

Jean Lauand
Prof. Titular Fac. Educação USP
jeanlaua@usp.br

“Foi disso que vivi - o neutro era o meu verdadeiro caldo de cultura (...) O neutro é inexplicável e vivo, procura me entender: assim como o protoplasma e o sêmen e a proteína são de um neutro vivo. E eu estava toda nova” (Clarice Lispector, A Paixão segundo G. H., Rio de Janeiro, Rocco 1998, p. 102)

Neutrum: nem um, nem outro: indeterminação

Pão, pão; queijo, queijo! Mas não para o brasileiro (e menos ainda para o mineiro...): para nós, não é nenhum dos dois: nem pão nem queijo; em todo caso: pão de queijo (mais ainda para o mineiro)!

Utrum [1] é precisamente a forma latina que exige a definição de um de dois; daí que ne-utrum seja o pão de queijo, o que não é pão e não é queijo: nenhum dos dois, neutrum!

As línguas que dispõem do neutro (como, por exemplo, o latim ou, em menor medida, o espanhol) contam com um poderoso recurso de pensamento [2] , sem o qual tornam-se inacessíveis amplas regiões do real. E como se trata praticamente de uma necessidade, acabamos por improvisar recursos de linguagem para recuperar as possibilidades de pensar proporcionadas pelo neutro, um dos grandes excluídos de nossa gramática. Assim, embora o português não possua o neutro, o gênio brasileiro recupera, como veremos, o espírito do neutro, sobretudo na criativíssima gíria produzida nestes trópicos.

Engana-se quem, com o Aurélio, pensa que o neutro seja:

“gênero das palavras ou nomes que, em certas línguas, designam os seres concebidos como não animados, em oposição aos animados, masculinos ou femininos”.

Na verdade, o neutro puxa para a abstração, a totalidade, a indeterminação e não tem nada que ver com “seres concebidos como não animados” e nem tampouco é uma “terceira opção” para aqueles que não decidiram ainda se são masculinos ou femininos... Masculino e feminino só se opõem ao neutro enquanto determinação; não enquanto a “gênero” ou sexo. Tomás de Aquino - cujo pensamento filosófico e teológico explora muito as ricas possibilidades do neutro - no-lo explica:

“O gênero neutro é informe e indistinto; enquanto o masculino (e o feminino) é formado e distinto. E, assim, o neutro permite adequadamente significar a essência comum, enquanto o masculino e o feminino apontam para um sujeito determinado dentro da natureza comum” (I, 31, 2 ad 4).  

Um exemplo de neutro dá-se quando dizemos a quem vem correndo para entrar no elevador: “- Desculpe, não há mais lugar, já somos oito” (não interessam aqui as determinações desse oito: não só as concretizações de sexo, homens/mulheres, mas de qualquer outra determinação concreta: negros/brancos, alunos/professores, palmeirenses/corintianos, etc.; trata-se do neutro “oito”.

E o neutro espanhol, “lo”, também não tem nada que ver com sexo, como se vê no seguinte exemplo: “Ese software es estupendo; lo único que me molesta es que tarda mucho en cargar”, cuja tradução ao português, só é possível por meio de paráfrase: “Esse software é ótimo; a única coisa que me incomoda é que demora muito para carregar”. Neste exemplo, o neutro ficaria ainda “mais neutro” (mais indeterminado), se disséssemos: “Ese software es estupendo; lo único es que tarda mucho en cargar”.

A indeterminação do neutro permite à Teologia expressar delicadas teses trinitárias. Assim, diz Tomás:

“Já que em Deus a distinção é segundo as pessoas e não segundo a essência, dizemos que o Pai é alius (outro, masculino) em relação ao Filho, mas não que é aliud (outro, no sentido de outra coisa, neutro); e que Pai e Filho são unum (um , neutro , no sentido de lo mismo) mas não unus (masculino, no sentido de el mismo)” (I, 31, 2 ad 4) [3] .

Também é o neutro - que aponta para a totalidade e não interessam as determinações - que encontramos na sentença de Terêncio: “Homo sum et nihil humani alienum me puto”, sou homem e nada do humano (“daquilo que é humano”) considero alheio a mim. Evidentemente, nossa substantivação (“o humano”, “o social” do famoso slogan “tudo pelo social” etc.) é uma aproximação do extinto neutro.

Do ponto de vista da psicologia da comunicação, o neutro, indeterminado, convoca o interlocutor a preencher a (evidente ou não) lacuna por ele deixada. É precisamente essa indeterminação que constitui uma das marcas registradas do brasileiro.

Uma indeterminação que rege diversos setores da existência, como por exemplo: o tempo. Para indicar que uma ação é maximamente imediata, o brasileiro diz: “na hora [4] ” (pastéis fritos na hora; consertam-se sapatos na hora etc.); já em Portugal a faixa de indeterminação é bem mais estreita; é “ao minuto” (e nos EUA “at the moment”!). O caso extremo é o da Bahia, onde a (inútil) insistência do estrangeiro em marcar hora, em perguntar por prazos, chega a ser quase ofensiva e é fulminada pelos indeterminadíssimos: “depois do almoço”, “um minutinho” etc.

Indeterminação do espaço: “é pertinho”, é “logo ali”, “um tirico de espingarda” etc.

Indeterminação de modo. Numa das poucas vídeo-pegadinhas realmente engraçadas, o ator, sentado num banco de lanchonete espera o freguês do lado pedir: “- Um misto quente, por favor!” e, imediatamente, pede também: “- Um misto quente, no capricho!”. Pouco depois, o garçon traz um sanduíche ralo para o freguês e uma escandalosa montanha de queijo derretido e presunto para o ator... As desavenças que se seguiram (“Mas, meu amigo, o senhor tem aí uma fatia de queijo e uma de presunto: é um misto quente!”; “Não, o dele não é mais caro; é o mesmo misto quente: só que ele pediu ‘no capricho’!” etc.) põem em evidência a indeterminação brasileira (cujas disfunções típicas são a arbitrariedade, o favoritismo etc.). 

A indeterminação na linguagem, afinal, suaviza (neutraliza) as formas de convivência. Une-se o gosto pelo indefinido, pelo genérico, com o oportunismo de fazer “média”, ficar em cima do muro: ninguém sabe o dia de amanhã, vai que pinte um apoio do Itamar ou uma aliança com o PL... Além do mais, é sempre perigoso expressar-se concreta e claramente. Se a brasileira indeterminação do tempo realiza-se em grau máximo no baiano; a das formas, realiza-se no mineiro. Como se sabe, mineiro não é contra nem a favor; muito pelo contrário. Come quieto... e pela borda. Não dá bandeira. Daí a certeira sabedoria de uma de nossas mais geniais piadas:

Dois mineiros pescando na beira do rio. De repente, ouvem um barulho vindo de cima: flapt..., flapt..., flapt...

Olham para cima e vêem um enorme elefante, batendo as orelhas e voando!!! Bem acima de suas cabeças!

Um olha para o outro e voltam a se concentrar na pescaria...

Mais alguns minutos e o mesmo barulho... Era outro elefante, também voando baixo, a poucos metros de suas cabeças. Mais alguns minutos e outro elefante... e outro..e mais outro...

Após o décimo elefante, um vira para o outro e diz:

- É, cumpadre... o ninho deles deve di sê aqui pertim.

Dois de nossos maiores letristas, Chico e Vinicius, compuseram os antológicos versos: “E eu que não creio peço a Deus por minha gente...”.

E um amigo alemão perguntava, perplexo, como é possível que no Brasil se empregue o diminutivo também para aumentar!! “Se o café acaba de sair (e, portanto, está no máximo de calor), dizem: ‘toma, toma, que está quentinho?’; se a moça está muito apaixonada pelo rapaz, dizem que está caidínha por ele”.

As instituições. O neutro, a neutralidade do neutro, faz parte de nossa cultura, está arraigadíssima no Brasil: o que, em outros países dá-se como afirmação (ou negação) veemente, aqui perde os contornos nítidos, adquire forma genérica! Se não reparamos nesse fato é porque ele nos é tão evidente que chega a ser conatural e atinge até nossas instituições. Pensemos por exemplo nessa - incrível, para os estrangeiros! - instituição tupiniquim: o ponto facultativo. Como dizia o saudoso Stanislaw Ponte Preta: “vai explicar pro inglês o que que é um ponto facultativo?” - É feriado?- Não, Mr. Brown, é ponto facultativo!!- Então, se não é feriado, haverá trabalho normal?- Não, Mr. Brown, claro que não haverá trabalho: é ponto facultativo!!

Não é feriado, mas não deixa de ser... E vai explicar para o seu Fritz, suíço, que não precisa dar aquela enorme volta, basta ele entrar com seu carro nesta travessinha aqui, que é meio contra-mão..., e ele chega lá direto. – Mas é contra-mão ou não é?- Não, seu Fritz, é meio contra-mão...

O neutro na gíria brasileira

O neutro, banido da gramática da língua portuguesa, é resgatado (ou, ao menos, seu espírito, que remete à totalidade e à indeterminação) genialmente pela gíria brasileira (claro que a lei do mínimo esforço contribui, e muito, para esses refinamentos de linguagem; afinal, para bom entendedor...).

Seguem-se alguns exemplos (em negrito); em cada caso, pode-se ajuntar a pergunta “... o quê?” e a resposta : “Não interessa, é neutro!”.

Numa boa – Um leve acidente de trânsito, um espelho deslocado. Em vez de discutir e chamar a polícia, vamos resolver numa boa. Numa - o quê - boa? Não interessa, é neutro!

Qual é a dele? – Mais neutro, impossível. Bem apropriado à mentalidade neutra brasileira, que deixa cada um na sua... Liberou geral... Até porque eu não tô a fim...

Qual é? (ou: qual é, ô meu?) – Forma ainda mais neutra (mais totalizante e indeterminada) do que a anterior. Pô, o cara no parágrafo anterior tinha dito “mais neutro, impossível” e agora, na maior, vem dizer que essa é mais neutra ainda. Esse cara tem cada uma... (na maior, o quê? cada uma, o quê? Não interessa, é neutro!).

Ô, chefia  – Vocativo de garçon em boteco garçon, que não só é promovido a (reles) chefe, mas à neutra (e, portanto, total) “chefia” (o Zé do restaurante “Os Cobras” já usou até: “- Ô, chefia geral”) “- Vai o de sempre?” - “Manda ver...

Numa piorSabe como é, ele tá numa pior, se der uma melhorada fica “médio”. “- E aê? Como vai? Como é que tá a situação?” “- Médio”. O masculino, no caso, denuncia o uso do neutro: (a situação) está médio (como quando se diz: ameixa é bom para o intestino). “- Deu para entender?” “- Falou!

Eu, hein?Niquiqui eu percebi que os caras vinham com tudo e podia sobrar, pulei fora; vai que, numa dessa, rola... Eu, hein? Não vou ficar dependendo da turma do “deixa disso”. Sai dessa, meu! Tô fora!

Dar uma geral – Esta é tão ambígua que aponta tanto para minuciosidade como para seu oposto, superficialidade: “Não, não precisa fazer uma revisão detalhada, basta dar uma geral” ou “Não, meu filho, arrumadinha não: você vai ter que dar uma geral nesse seu quarto!”. É isso aí...

Demais..., - Gente, que que é isso, por favor, menos...!

Receita Federal, bom dia, quem gostaria? – Bom dia, Receita Federal...

Aprontou todas – E ainda fica se achando... É dose... 

Valeu?

Fui...!

Objetar-se-á que nem todos os exemplos acima são exatamente de neutro. (Objeção, logo hoje que foi um dia daqueles...; pode?, é mole?, Eu mereço..., Não é brinquedo, não! Mas, pode objetar que eu não tô nem aí...).

Em todo caso, esses exemplos têm o espírito do neutro e seja como for, é por essas e por outras que eu, na moral, fico com o filósofo Kleber Bambam: faz parrrte...!

Neutro e Metafísica

Embora pareça à primeira vista surpreendente, o neutro é utilizado também para celebrar a amada. Na verdade, o elogio neutro é mais profundo: atinge a própria essência da pessoa, com seu encanto indefinível, em seu mistério inefável, transcendendo as vistosas formosuras da superfície.

Como na canção Você de Tim Maia:

Você é algo assim..., é tudo pra mim...

O enamorado vale-se do neutro porque:

Você é mais do que sei, é mais que pensei, é mais que eu esperava, baby...

Ou em Something de George Harrison:

 

Something in the way she moves,
attracts me like no other lover.
Something in the way she woos me.

I don't want to leave her now.
You know I believe her now.

Somewhere in her smile she knows,
that I don't need no other lover.
Something in her style that shows me.

Don't want to leave her now.
You know I believe her now.

You're asking me will my love grow.
I don't know, I don't know.
You stick around now it may show.
I don't know, I don't know.

Something in the way she knows,
and all I have to do is think of her.
Something in the things she shows me.

 

E é que a atração profunda, o verdadeiro encanto, situa-se numa região indefinível (something), que transcende as qualidades visíveis, alojando-se no neutro (way, style), no âmbito da manifestação da neutra coisa (como no Das Ding de Heidegger, que fala da “coisa” como neutra reunião...): something in the things she shows me; o neutro moves (em lugar do concreto walks, evocando a neutralidade do “movimento” aristotélico, passagem de dýnamis para enérgeia... E o enigmático sorriso neutro, literalmente u-tópico, somewhere (!) in her smile... Em algum lugar daquele sorriso... Como nos intrigantes e neutros sorrisos da Virgen Blanca de Toledo, da Mona Lisa ou do Ange au Sourire de Reims.


Neutro, negro-neutro é o something da Aparecida, que aparece na inaparência de suas quase invisíveis feições, na imperceptibilidade de suas formas e oferece em silêncio sua maternal solicitude ao país campeão mundial de “aparições” outras e que conta com legiões de “videntes” - “la garantía soy yo!” - e “confidentes” com tantas mensagens altissonantes...

O neutro é ainda um dos grandes temas (e em alguns casos até mesmo personagem) da literatura brasileira. Neutro é a terceira margem, perto e longe, “nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte”. Neutro é o sertão: “o sertão é sem lugar”, “o sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena”, “o sertão é de noite”, “o sertão é uma espera enorme”, “aceita todos os nomes”, “sertão é o sozinho”,  “Sertão: é dentro da gente”.

Neutro dos neutros é a busca, como suprema categoria e paixão metafísica, de Clarice, introspector. É o tema clariciano por excelência e o personagem de A Paixão segundo G. H.:

Para o sal eu sempre estivera pronta, o sal era a transcendência que eu usava para sentir um gosto, e poder fugir do que eu chamava de “nada”. Para o sal eu estava pronta, para o sal eu toda me havia construído. Mas o que minha boca não saberia entender - era o insosso. O que eu toda não conhecia - era o neutro. (p. 85)

Estou tentando te dizer de como cheguei ao neutro e ao inexpressivo de mim (...) O neutro. Estou falando do elemento vital que liga as coisas. (p. 100) 

Uma busca assombrosa, que termina com a mística perda da linguagem:

Como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.

Encerro estes apontamentos, uma breve nota, sem outra pretensão que a de ser um convite ao neutro, que parece ser uma das claves para interpretar nossa pátria: a língua brasileira...


[1] Uter, utra, utrum.

[2] Um recurso de língua é um recurso de pensamento...

[3] Quando não se respeitam essas sutilezas, surgem confusões ou rixas causadas por equívoco, o que é, literalmente, um qüiproquó, qui-pro-quod, é tomar o qui (masculino) em lugar (pro) do quod (neutro): o Pai é lo mismo (quod) que o Filho, mas não el mismo (qui).

[4] Daí que, na gíria, “da hora” signifique bom, excelente...