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¡¡Oléééé!! - Deus, a beleza e a Arte

Jean Lauand
Prof. Titular - FEUSP
jeanlaua@usp.br

21/08/01

 

Naturalmente, instintivamente, o homem tende a evocar Deus quando a beleza inesperada ou intensa arranca-o do embotamento quotidiano! "Meu Deus! Quanta beleza..." exclama o poeta (Castro Alves, "Sub Tegmine Fagi") e com ele - consciente ou inconscientemente - todos os artistas.

Daí que não chegue a surpreender que o significado etimológico da espanholíssima palavra ¡Olé!, seja um recurso a Deus. ¡Olé! -diz o Diccionario de la Real Academia- provém do árabe Wa-(a)llah ("Por Deus!" - a língua árabe não dispõe da vogal "e" e, por vezes, o "a" tem som semelhante a "e"). E é uma exclamação de entusiasmo ante uma beleza (ou alegria) surpreendente ou "excessiva" (no verbete ¡Olé!, o Diccionario de María Moliner exemplifica com o caso das touradas ou do flamenco).

Facilmente intuímos que a beleza de um ousado lance de tourada, de um golaço sem ângulo ou de um "taconeo flamenco" é - de algum modo misterioso, mas real - participação na criação - também ela artística - de Deus: ¡Olééé!

O árabe, como se sabe, é campeão mundial de invocação a Deus: Bismillah! (em nome de Deus!), Al-hamdu lillah! (O louvor para Deus), Wa-llah! (Por Deus!), Allahu Akbar! (Deus é grande! ou Deus é maior!), Allah! (Deus!) etc. etc. Ante um perigo, ou após escapar dele, ante uma notícia boa ou má, em qualquer situação invoca-se a Deus. Por vezes, a mesma fórmula (como por exemplo Bismillah - ou Smallah) serve para situações contrárias (notícia boa ou ruim, por exemplo, tal como posso dizer em português: "Meu Deus!" tanto se meu bilhete foi sorteado na loteria como se meu carro foi destruído por um maluco na contra-mão).

E ante a beleza (sobretudo se é inesperada ou muito intensa) é a Deus que se celebra: Allah!, Ya Allah! Smallah! (Deus! Ó Deus! Em nome de Deus!) são exclamações quase obrigatórias, por exemplo, quando o camelo se levanta (o camelo, ao levantar-se, oferece um espetáculo grandioso ao erguer sua enorme massa de um só golpe. É tão imponente que, instintivamente, vem à boca uma interjeição de admiração e espanto, misto de prece e de louvor... O efeito é tanto mais surpreendente quando, ainda há um minuto, o camelo estava aparentemente indolente, largado no solo). A forma que se arraigou em Espanha foi: Wa-llah! O wa é a partícula do juramento (cfr. p. ex. Alcorão 6, 23) e, no caso, para permanecermos em Al-Andalus, de invocação da autoridade de Deus para atestar um fato aparentemente incrível: o de uma espantosa beleza!

Na tradição ocidental, já Píndaro, em seu grandioso "Hino a Zeus" (cfr. http://www.hottopos.com.br/videtur9/renlaoan.htm - No.2), revelara que o belo artístico, as musas, são o remédio que Zeus concedeu para o embotamento do homem, esquecido da origem divina do mundo e imerso em sua visão rotineira.

Ou, nos inspirados versos de Adélia Prado:

De de vez em quando Deus me tira a poesia.
O
lho pedra, vejo pedra mesmo.

Mas o processo artístico é de ida e volta: se Deus dá poesia ao artista para ver (e expressar em obra de arte) o "algo mais" na pedra; quem contempla a beleza da obra de arte, que se expressa talvez a a partir de uma pedra, reconhece Deus, o Criador, o Artista:  ¡¡Oléééé!!

Nesse sentido, há uma antiga poesia de Gilberto Gaspar, "A Gotinha", que resume ("De uma gota, de repente, vejam só quanta poesia!") maravilhosamente essas teses:

 

A Gotinha (Gilberto Gaspar)

 

                       Já há muito tempo que venho reparando,

                       Com interesse observando, como é bela a natureza!

                       Cai o sereno e vai formando, de repente,

                       Uma gotinha a mostrar tanta beleza.

                       Equilibrando-se, ela desceu pelo arame

                       E, na folha do inhame, foi cair com o calor.

                       Desceu dançando, que bonito o seu bailado

                       Pelo Sol iluminado, seu vestido é furta-cor.

                       O vento, soprando a folha verde que balança,

                       Dá mais ritmo à dança da gotinha cristalina,

                       Que rodopia no tapete esverdeado

                       Qual palco iluminado, como louca bailarina.

                       E chega a tardinha. Cessa o vento, pára a folha.

                       A gotinha sem escolha, vai dançar só outro dia.

                       E eu, feliz, vou para casa bem contente.

                       De uma gota, de repente, vejam só quanta poesia!

(http://www.hottopos.com/mirand4/osimples.htm)

 

Não é de estranhar, portanto, que o grito "¡olé!", aplicado ao espetáculo do futebol, tenha nascido a partir de um "belo inesperado": em 1958 (a recém-nascida televisão estava apenas começando a integrar-se ao futebol naquela época), no México (não por acaso: no México), num jogo Botafogo X River Plate, base da seleção argentina. A cada incrível drible do incrível Garrincha (o das pernas tortas, que não era para ser futebolista) no lateral Vairo, os torcedores mexicanos gritavam ¡olé!, como se estivessem numa tourada.

Se o falante ocidental hoje (não só o torcedor nos estádios do Brasil, mas também o taurófilo madrilenho em Las Ventas) não se lembra de que Olé! é invocação de Deus, no Quijote isto é mais explícito - o cristão começa a louvar a insuperável beleza de sua dama e ouve do moro: "Gualá, cristiano, que debe de ser muy hermosa si se parece a mi hija, que es la más hermosa de todo este reino. Si no, mírala bien, y verás cómo te digo verdad" (Capítulo XLI).

As relações entre Deus, a beleza e a arte foram recentemente (1999) retomadas por João Paulo II em sua "Carta aos Artistas" , riquíssima também em reflexões filosóficas. Já na primeira linha, uma dedicatória, chama a obra de arte de "epifania", manifestação, pela beleza, de Deus.

E começa falando da criação artística - e não se trata de arte sacra - como participação do divino: "(vós, artistas) maravilhados com o arcano poder dos sons e das palavras, das cores e das formas, vos pusestes a admirar a obra nascida do vosso gênio artístico, quase sentindo o eco daquele mistério da criação a que Deus, único criador de todas as coisas, de algum modo vos quis associar".

E depois de lembrar um sugestivo fato da língua polonesa: "A página inicial da Bíblia apresenta-nos Deus quase como o modelo exemplar de toda a pessoa que produz uma obra: no artífice, reflete-se a sua imagem de Criador. Esta relação é claramente evidenciada na língua polaca, com a semelhança lexical das palavras stwórca (criador) e twórca (artífice)", conclui: "Deus chamou o homem à existência, dando-lhe a tarefa de ser artífice. Na «criação artística», mais do que em qualquer outra atividade, o homem revela-se como «imagem de Deus», e realiza aquela tarefa, em primeiro lugar plasmando a «matéria» estupenda da sua humanidade e depois exercendo um domínio criativo sobre o universo que o circunda. Com amorosa condescendência, o Artista divino transmite uma centelha da sua sabedoria transcendente ao artista humano, chamando-o a partilhar do seu poder criador. Obviamente é uma participação, que deixa intacta a infinita distância entre o Criador e a criatura, como sublinhava o Cardeal Nicolau de Cusa: «A arte criativa, que a alma tem a sorte de albergar, não se identifica com aquela arte por essência que é própria de Deus, mas constitui apenas comunicação e participação dela»".

Participação, que é participação também no bem e no ser. Nesse sentido, João Paulo II estabelece também a proximidade entre bondade e beleza: "Ao pôr em relevo que tudo o que tinha criado era bom, Deus viu também que era belo. A confrontação entre o bom e o belo gera sugestivas reflexões. Em certo sentido, a beleza é a expressão visível do bem, do mesmo modo que o bem é a condição metafísica da beleza. Justamente o entenderam os gregos, quando, fundindo os dois conceitos, cunharam uma palavra que abraça a ambos: «kalokagathía», ou seja, «beleza-bondade». A este respeito, escreve Platão: «A força do Bem refugiou-se na natureza do Belo»".

Assim, não é de estranhar que a Filosofia da Arte de S. Tomás de Aquino - como aliás todo o seu pensamento - repouse sobre esse conceito fundamental: o de participação (participatio). Participar, em sentido transcendente, é ter em oposição a ser; participa, o que tem algo pelo contato com o que é. O metal, compara Tomás, tem calor na medida em que se aproxima, participa, do calor que é no fogo.

A Criação é o ato no qual é dado o ser em participação. Portanto, tudo que é, é bom; participa do Bem. Nesse enquadramento, situa-se uma sentença de Tomás que é uma das chaves principais para sua Filosofia da Arte: "Assim como o bem criado é certa semelhança e participação do Bem Incriado, assim também a consecução de um bem criado é também certa semelhança e participação da felicidade definitiva" (De Malo 5, 1 ad 5).(Daí também outra grande intuição da língua espanhola: ao provar algo que está muito bom, diz-se: "¡Sabe a gloria!", tem gosto de céu...).

Ora, no pensamento de Tomás, a contemplação - também a propiciada pela arte - é a forma mais profunda de "consecução de um bem criado", prefiguração da Glória definitiva. Tais considerações, que expressam o núcleo profundo de um pensamento filosófico, estão também ao alcance da intuição do conhecimento comum. A propósito, por mais difícil que seja a filosofia de Tomás, ela nada mais é do que a estruturação nessa clave rigorosa do que já era sabido (talvez um tanto inconscientemente) pelo bom senso do homem da rua. Por isso, não chega a ser de todo surpreendente o depoimento, imensamente profundo, de Tom Jobim sobre a criação artística, em uma entrevista, quando foi contemplado nos EUA com a mais alta distinção com que pode ser premiado um compositor, o Hall of Fame: "Glória? A glória é de Deus e não da pessoa. Você pode até participar dela quando faz um samba de manhã". E complementa: "Glória são os peixes do mar, é mulher andando na praia, é fazer um samba de manhã".

Palavras que confirmam os ensinamentos de João Paulo II: "Queridos artistas, como bem sabeis, são muitos os estímulos, interiores e exteriores, que podem inspirar o vosso talento. Toda a autêntica inspiração, porém, encerra em si qualquer frêmito daquele «sopro» com que o Espírito Criador permeava, já desde o início, a obra da criação. Presidindo às misteriosas leis que governam o universo, o sopro divino do Espírito Criador vem ao encontro do gênio do homem e estimula a sua capacidade criativa. Abençoa-o com uma espécie de iluminação interior, que junta a indicação do bem à do belo, e acorda nele as energias da mente e do coração, tornando-o apto para conceber a idéia e dar-lhe forma na obra de arte. Fala-se então justamente, embora de forma analógica, de «momentos de graça», porque o ser humano tem a possibilidade de fazer uma certa experiência do Absoluto que o transcende".

¡¡¡Oléééé!!!