O SIMPLES e o Poeta

 

João Bosco Martins Salles
(Editor Geral de O Estado de Minas)

Um elefante adulto, dos grandes mesmo, poderia entrar na sala onde um grupo de jornalistas participava de uma aula de filosofia e, provavelmente, não faria o menor sucesso. Seria, no máximo, notado. E com certeza os presentes só deixariam o animal permanecer no local se ele ficasse imóvel como uma estátua. Os jornalistas estavam concentrados e absortos demais para dar atenção a um paquiderme que teria se deslocado à rua Maestro Cardim e subido as escadas até a sala no 3º andar do Centro de Extensão Universitária, com o objetivo de interromper uma aula de filosofia.

A responsabilidade pelo hipotético desprezo por um dos maiores mamíferos do planeta pode ser traduzido por uma única palavra: SIMPLES(1). E o SIMPLES naquele espaço carpetado e com cadeiras dispostas em semicírculo manifestava-se através do poeta, compositor e contador de casos José Gilberto Gaspar. Um homem SIMPLES, que nos revela a própria razão de ser nos seus escritos. Invariavelmente, poemas que retratam o cotidiano, fatos a que poucas pessoas dão importância e que estão a rondá-las todo o tempo. Mas o poeta tem a capacidade de encontrar toda a beleza e pujança da natureza, portanto do Criador, nas coisas mais SIMPLES, como podemos constatar no poema "O Chão da Paineira", extraído de seu livro Nos Braços do Sol, São Paulo, Edix, 1997 (p. 76):

Eu fiquei olhando a dança das flores
Ao se despencarem de uma paineira.
O vento soprando o bailado das cores,
O chão perfumado de flores inteiras.
E o povo pisando, sem nem perceber,
O tapete lilás de flores caídas.
Só eu escutava o triste gemer
Das flores, o lamento num resto de vida.
E, quase chorando em rimas singelas,
Então comparei a morte das flores,
Ao se soltarem na queda certeira
De um galho tão alto, tão ricas, tão belas,
Com o tempo que passa matando os amores
E a alma pisada é o chão da paineira.

Como bem lembra Luiz Jean Lauand - livre-docente da FEUSP - em seu prefácio ao livro do nosso poeta popular, temos de voltar a valorizar o SIMPLES: "Ante a perplexidade, a desorientação, a esquisitice do nosso tempo, impõe-se a urgente tarefa da redescoberta do simples, do humano, da verdade das coisas..." (p. 12). Não resta dúvida de que é nossa tarefa buscar o SIMPLES, pois assim o homem deixará de ser insensível a ponto de não perceber a grandeza de tudo que o rodeia. José Gilberto Gaspar, com sua arte, dá a verdadeira lição do que o SIMPLES pode nos oferecer. Basta passar os olhos no poema "Flor de Grama" (p. 55) para constatarmos a grandeza desta palavra, um exemplo para nós, seres humanos:


Sei que a pequena flor de grama, tenra e triste,
Ao ser pisada pelos pés do distraído,
Mergulha, afunda, então, no chão endurecido,
Depois ressurge da semente que resiste.
Nasce outra vez e, florescendo, ainda insiste
Em enfeitar belo jardim adormecido,
Flor rastejante, mas de um lindo colorido,
Que o vento sopra não a tirando da haste em riste.
Quisera eu ser forte como é a flor da grama.
Quando pisado, reacender em outra chama
E, humildemente, iluminar nossos caminhos.
Escurecidos pela incompreensão e a dor,
Pode levar a todo canto só amor
E exterminar com a amargura dos sozinhos.

E o nosso contador de estórias continuava hipnotizando todos aqueles jornalistas, numa tarde quente de agosto. Uma tarde que não se tornou uma tarde qualquer. Porque José Gilberto Gaspar estava ali, mostrando como a nossa essência encontra-se no SIMPLES. E que devemos buscar no SIMPLES a razão maior da nossa existência. Até o presidente da Rússia, Bóris Yeltsin, em sua visita ao Brasil, disse que o homem tem de tornar-se mais SIMPLES. Parece até que o mandatário de uma das maiores potências da terra tenha lido as estrofes de "O Menino e a Carrocinha" (p. 32), de autoria do nosso poeta popular, antes de manifestar a esperança de que o homem se tornasse mais SIMPLES na virada do milênio:

Encontrei, chorando, um menino de favela.
Xingava tanto, que chamou minha atenção:
"Eu vou matar o dono da carrocinha
Com esta pedra que está na minha mão.
Ele levou meu único brinquedo,
Meu cachorrinho, que era de estimação.
Coitadinho, ele agora vai morrer de fome,
Ele não come se não for da minha mão."
"Como se chama seu cachorro, meu amigo,
Que você disse que a carrocinha levou?"
Respondeu-me: "Ele só chama é Meu Cachorro,
Também é pobre, não tem nome não, senhor!
Mas é meu amigo e eu gosto muito dele.
Me ajuda moço, me ajuda por favor!
Eu tenho um dinheiro guardado lá em casa,
Se for preciso eu até troco e lhe dou."
E, nos olhos vermelhos do menino,
Vi desespero, tristeza e muita dor.
Saí correndo atrás da carrocinha,
E, a muito custo, alcancei o laçador.
Paguei as taxas, libertei o seu cãozinho
Que, bem contente, para o dono ele voltou.
Veja a maneira que o menino agradeceu
Quase chorando de alegria, ele falou:
"Meu cachorrinho, ele agora vai ter nome,
Vou 'ponhá' nele o mesmo nome do senhor".

 

O SIMPLES na arte de José Gilberto Gaspar revela que o mundo não se restringe às nossas "obrigações" diárias, como as tarefas no trabalho, as contas a pagar e as amarras dos horários. Ao término da aula peguei um táxi e as interrogações invadiram os meus pensamentos... O sol começava a cair naquela terça-feira de inverno que mais parecia verão. E lembrei-me do poema "Pôr - De - Sol" (p. 41):

Depois de um dia de pesada lida,
Contemplo o entardecer e, realmente,
Morre a beleza deste sol poente,
No crepúsculo... a tarde esmaecida.
E o meu olhar se espraia molemente,
No horizonte, onde a barra é colorida.
E, na meditação mais comovida,
Minh’alma, agora em prece comovente,
Despede-se da tarde que termina.
Cânticos bíblicos da campina,
Assobia a codorninha escondida!
E, olhando no horizonte avermelhado,
Vejo do meu crepuscular passado
Um outro pôr-de-sol... É a minha vida.

 

Com o pôr do sol imaginado pelo poeta despejando cores na minha mente, começo a pensar de que forma todo aquele aprendizado de uma única tarde poderia ser aplicado à rotina de uma redação de jornal. As perguntas são muitas e as respostas nem tanto. Mas uma certeza prevalece: devemos buscar o SIMPLES no nosso trabalho diário. Talvez somente olhando em nossa volta, sob o prisma da mágica palavra (SIMPLES), poderemos perceber que existe algo mais além das "quatro paredes da redação". Muralhas que nós, jornalistas, criamos para nos isolar em um mundo próprio. Muralhas muitas vezes inexpugnáveis, como muitas da antigüidade, mas que hoje são apenas ruínas.

A busca do SIMPLES pode ser a chave para que as redações deixem de ser templos proibidos, onde apenas as "verdades" de seus sacerdotes prevaleçam. Quem sabe o SIMPLES nos mostre que a arrogância de muitos jornalistas nada mais é do que a opção errada para o exercício de nossa profissão. Sim, porque o SIMPLES pode nos levar a ver o mundo de outra maneira, em que as "verdades" construídas pelos homens de imprensa não sejam tão absolutas.

O SIMPLES deveria estar presente na forma como os jornalistas usam a sua fundamental ferramenta de trabalho: a palavra. Usar as palavras com a preocupação de que elas não sirvam apenas para ferir as pessoas. E que também resgatem a emoção no momento de se redigir uma matéria ou um artigo. Que o SIMPLES traga de volta os sentimentos represados no coração do jornalista. Assim, ele deixaria de produzir a informação pasteurizada, com fórmulas disponíveis em qualquer manual de redação. Emoções encontradas na SIMPLICIDADE de outro poema deste mineiro de Nova Resende. "A Gotinha" (p. 38):

Já há muito tempo que venho reparando,
Com interesse observando, como é bela a natureza!
Cai o sereno e vai formando, de repente,
Uma gotinha a mostrar tanta beleza.
Equilibrando-se, ela desceu pelo arame
E, na folha do inhame, foi cair com o calor.
Desceu dançando, que bonito o seu bailado
Pelo Sol iluminado, seu vestido é furta-cor.
O vento, soprando a folha verde que balança,
Dá mais ritmo à dança da gotinha cristalina,
Que rodopia no tapete esverdeado
Qual palco iluminado, como louca bailarina.
E chega a tardinha. Cessa o vento, pára a folha.
A gotinha sem escolha, vai dançar só outro dia.
E eu, feliz, vou para casa bem contente.
De uma gota, de repente, vejam só quanta poesia!


1-A etimologia da palavra é encantadora: procede do latim plicare, plica. Plica é a dobra, a prega, a face... E assim, por exemplo, dobrar algo (digamos, uma folha de papel) é du-plicar, quadru-plicar, com-plicar. Do mesmo modo, "tirar para fora" em latim é ex- (como em ex-portar, ex-pelir, ex-pulsar etc.): tirar um assunto das "plicas" é ex-plicar. De "plica" decorrem também em português "cúmplice", "explícito" e outras.... A etimologia de "simples" torna-se agora clara: sine, sem (ou, segundo outros, de sem, semel, única), sem plicas, sem dobras, sem pregas (ou, o que é o mesmo, de uma única face). (Nota de LJL).