Normalpatia: a pior
poluição
A poluição do ambiente físico é uma, apenas,
daquelas que nos agridem e destroem a qualidade da nossa vida. Temos também a poluição
social e a cultural. Mas a pior de todas, a que mais nos inferniza, é a poluição
pessoal.
Bertrand de Jouvenel, arguto analista, observou que toda a vida social repousa sobre a
confiabilidade. Nosso relacionamento com os outros se fundamenta na crença de que cada um
cumprirá sua parte. Num hábitat cada vez mais técnico e mais congestionado por
indivíduos, cada vez mais dependemos uns dos outros. Entretanto, na crescente pletora de
gente, cada vez se torna mais difícil encontrar "gente de verdade". Gente
simples, bem-educada, afetiva, atenciosa, cumpridora de suas obrigações. Se é pedir
muito, no mínimo, gente confiável. A "qualidade de gente", entretanto, piora
dia a dia. Por que será?
Não há uma resposta única e simples para isso. Há coisas genéricas.
Como o fato de estarmos ingressando à velocidade da luz em um mundo onde perdemos o
comando do nosso tempo e nosso relógio circadiano se mostra incapaz de acompanhar as
novidades e mudanças que ocorrem em nano-segundos. Submergidos pela avalanche cultural,
perdemos o hábito das obrigações as mais comezinhas. A abundância nos torna carentes.
Outro fato genérico é que a imensa maioria da população humana hoje se condensa em
megalópoles. E não há ambiente mais infenso ao relacionamento individual, propriamente
humano, do que esses imensos arquipélagos insulares onde o individualismo, o anonimato e
uma universal despersonalização enclausuram as pessoas. Pessoas? É duvidoso que esse
modelo de homem seja viável quando ele cresça e se forme, como agora, sem um íntimo
contato com a natureza, a família e a comunidade.
Essas duas generalidades possivelmente abrangem as causas derivadas e secundárias que
explicam por que cada vez há menos "gente" num mundo superpovoado. Podemos
tirar a contraprova entrando em contato com habitantes de pequenas e médias cidades, ou
com comunidades rurais. Esse é o hábitat onde se cria "gente". Aqui, também,
como contraprova podem se examinar estudos pioneiros que vêm sendo feitos em diferentes
campos das ciências humanas. Antropólogos, psicólogos e filósofos se mostram surpresos
com tipos de indivíduos e de comportamentos, que começam a se alastrar como espécie
nova de um novo ambiente de vida. Gente que, semelhante, pensa, sente e age como
dissemelhantes de todo o mundo. Aparentemente, não são anormais. São diferentes.
Mutantes culturais de uma nova espécie.
Ora, há um limite viável às variações culturais possíveis. Como no caso das
espécies biológicas, mutações radicais favoráveis são raríssimas. As mudanças
culturais admitem um amplo espectro de diferenças, mas estão claramente circunscritas a
padrões genéticos, hereditários, e de valores que, transpostos e violados, passam a
constituir ameaças à sobrevivência dos indivíduos e da própria espécie.
Desconheço melhor conceito para descrever a situação do que o proposto por L. F.
Barros sob o neologismo de "normalpatia". (http://www.hottopos.com/mirand4/normalpa.htm).
A normalpatia, como sugere a palavra contraditória, é um estado em que a doença se
confunde e passa a se identificar com a normalidade. O normalpata é um indivíduo que
pensa, sente e age como se fora absolutamente normal, a despeito do fato de que se todo o
mundo agisse como ele o mundo se transformaria em uma casa de loucos e toda a vida social,
como a conhecemos, seria inviável. Não há dúvida de que em todas as eras o mundo, a
vida e a sociedade, vistos por humoristas e dramaturgos do mais alto quilate, muito se
assemelha a uma casa de loucos. A diferença está em que, até aqui, foi possível que
"a gente" fizesse prevalecer um mínimo de ordem, de racionalidade, de
cooperação e boas maneiras, capaz de suplantar a poluição alimentada pela normalpatia.
Até quando, porém, "a gente" conseguirá sobreviver como espécie à
poluição causada pelos normalpatas?
Benedicto Ferri de Barros é da
Academia Paulista de Letras e da Academia Internacional de Direito e Economia. E-mail
bdebarros@sanet.com.br
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