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Liberalismo e realidade humana

 

Sylvio Roque de G. Horta
Dr. em Filosofia da Educação pela FEUSP

 

Platão nos deu a fórmula: antes de discursarmos sobre qualquer coisa, temos que esclarecer sobre o que estamos falando.

Mesmo com fórmula tão clara, não se trata de uma tarefa simples. Santificadas fossem as palavras, talvez conseguíssemos realizá-la. No mundo, porém, as palavras são confusas, equívocas, ambíguas. E apesar disso, além do silêncio, são praticamente tudo o que temos para articular os pensamentos.

Liberalismo. À que realidade corresponde a palavra? Quando se fala em liberalismo, vem logo em nossas mentes o neo-liberalismo econômico - não que se saiba muito bem o que seja - mas o associamos às críticas da esquerda, parece que está mais ligado à direita e … novamente, caímos em outros conceitos vagos. Farinha para qualquer saco.

E são com esses conceitos- que mais do que conceitos deveriam ser chamados posturas- que vamos escolhendo nossos candidatos, nossa linha política, enfim, o rumo da nossa vida coletiva! A propaganda, a opinião pública meio que frenética, às vezes maníaca, às vezes, depressiva, vai criando campos emocionais coletivos que acabam nos controlando a todos, inclusive aos autores da propaganda.

A filosofia tem a pretensão de escapar um pouco dessa pressão da opinião, pressão do coletivo sobre o indivíduo. E se bem que, pessoalmente, ando um tanto céptico a esse respeito, ainda não encontrei nada que a substitua (se bem que há o que a complemente). E aqui existe um parentesco entre filosofia e liberalismo: ambos têm em comum essa tentativa de ir contra a socialização.

O primeiro passo para refinarmos o conceito de liberalismo é ver a sua história. Podemos vê-lo nas suas várias formas e associações. Aos poucos seremos capazes de diferenciá-lo da democracia, de certa forma de organização econômica, de certas crenças religiosas paralelas, etc. Aos poucos, dessa maneira, vamos nos desfazendo do nosso condicionamento histórico.

O liberalismo é um fenômeno típico do ocidente - se bem que, hoje-em-dia, com a ocidentalização do mundo, já não o seja mais - e que surgiu não faz assim tanto tempo. Suas origens, contudo, são remotas e, certamente, ao procurá-las nos encontramos com uma dimensão da própria estrutura da realidade humana: a dimensão do indivíduo e da pessoa humana que luta para não ser absorvido pelo social, pelo poder do Estado.

O liberalismo surgiu na Europa, mais especificamente por volta do século XVI e XVII e junto com a técnica científica, trouxe uma mudança radical para a história do planeta (não só a ocidental) e embora sua sobrevivência não seja garantida ([1]), os países liberais são ainda os que lideram as mudanças históricas no presente. Eu diria que o liberalismo é a concretização política da dimensão individuante (desculpe a palavra, procura-se por uma melhor!) do homem e que se opõem à tendência que temos de nos fundir com o todo - que se concretiza no totalitarismo.

A Idade Média contribuiu para a formação do liberalismo por um lado com o espírito medieval de honra, com o espírito guerreiro, com o espírito dos castelos, que ajudou a consolidar a resistência do indivíduo em relação ao Estado ([2]). Por outro lado, por ter conservado - dentro do possível - a cultura herdada dos gregos e romanos, isto é, a cultura pagã que conflituava com a religião cristã. Esse conflito obrigou o homem cristão a ter o pé em dois mundos e, possivelmente, a descobrir-se a si mesmo ao ter que escolher o caminho a seguir. Tão importante quanto isso, foi a oposição entre a Igreja e o Estado. Não tendo nenhuma das duas instituições o controle total do mundo europeu, restou sempre um espaço para o indivíduo em meio aos dois Leviatãs. É fundamental, também, o reconhecimento da realidade pessoal pelo cristianismo e sua enorme influência em todos os aspectos da cultura medieval.

Apesar da Igreja ter tido uma atuação intolerante e coletivizante, o cristianismo enquanto experiência religiosa é inegavelmente tolerante e favorável ao desenvolvimento da pessoa humana. Podemos ver isso nos movimentos "reformistas" que surgiram já na Idade Média e, depois, com a própria Reforma que não reconhecia no cristianismo oficial o verdadeiro espírito cristão.

O próprio confronto surgido daí, veio a se adicionar aos confrontos já citados. Novamente e mais do que nunca o indivíduo será levado a escolher o seu destino (acreditassem ou não na fatalidade desse).

Chega-se a associar a reforma protestante com o florescimento do capitalismo. Trata-se de um tema complexo mas, sem dúvida, exagerado. Muito mais plausível é considerá-lo apenas um fator e, mesmo assim, principalmente por causas indiretas como o favorecimento de um espírito mais independente, a separação do Estado do poder de Roma etc. Por exemplo, o fato de que nos países "reformados" se permitiu a ciência, foi talvez o fator mais importante para a sua diferenciação em relação aos países que ficaram mais presos ao escolasticismo já caduco (nenhuma ofensa ao antigos escolástico, nada caducos!)

O liberalismo foi logo associado ao pensamento econômico e hoje identifica-se muitas vezes o liberalismo com o liberalismo econômico. Mas o que realmente o constitui é algo mais profundo, mais essencial: trata-se de uma postura frente à realidade. A liberdade do indivíduo, por exemplo, tem um papel muito mais decisivo para a economia de um país do que os próprios fatores econômicos (embora a liberdade econômica possa também se espalhar, "contaminando" de liberalismo o resto das relações sociais - seria bem-vindo, na verdade, um estudo que aprofundasse o papel do econômico na vida humana. O que significa enquanto realidade humana etc. Só assim se poderia realmente entender o seu peso, que não é pouco, mas enquanto dimensão humana e não vice-versa).

O liberalismo com suas falhas e seus limites (não apenas limites mas, também, defeitos) seria a expressão da civilização ocidental com sua mistura de grego, romano, judaico e, por que se esquecer, dos americanos de Norte a Sul. O totalitarismo - e o próprio fenômeno totalitário - também tem seu lugar no ocidente e, sem dúvida, trata-se de uma realidade presente, que ameaça o delicado balanço da existência do liberalismo.

Restringindo a nossa área aos princípios teóricos quando do surgimento das teorias liberais, eu me pergunto: a que pé estavam? Eram suficientes para a compreensão do fenômeno liberal?

A nossa forma de pensar vem da filosofia grega. Essa surgiu no momento em que o homem grego havia perdido suas convicções mais profundas quanto aos modos tradicionais de conhecimento: oráculos, adivinhações, etc. Surge, pelo menos em alguns homens, a convicção de que as coisas são, no fundo, as mesmas, que se derivam umas das outras "por geração e, portanto, têm uma certa consistência pela qual se pode perguntar. Nesse dia a velha necessidade radical muda de sentido e se converte em algo que - até certo ponto ao menos - está na mão do homem. O seu perguntar não é mais um perguntar passivo ao oráculo; é dirigir-se à realidade e obrigá-la a responder; é o homem mesmo quem vai averiguar- verificare, verum facere- o que são as coisas" ([3]).

A verdade era, assim, algo que o homem busca, algo que ele faz para descobrir a realidade. E esse caminho supunha "uma estrutura concreta do real; ao buscar o grego o que sempre é, o imutável e que não muda nunca, descobre a 'consistência` invariável das coisas; saber significará, para ele, a posse dessas consistências ou essências, caracterizadas por sua imobilidade; e à forma de pensamento correspondente a esse modo de ser e que possui seus mesmos atributos é ao que chamará de pensamento lógico. Mas logo a sua irrealidade fica visível; antes de mais nada, a lógica tem que renunciar às coisas individuais, que são a realidade na qual me encontro ([4])".

É a essa atitude a que me refiro ao falar da filosofia como uma das origens do liberalismo (e também origem do totalitarismo). É que podemos ver dois movimentos. Por um lado a atitude de ir contra a opinião, de prescindir da revelação e de confiar em si mesmo para chegar ao fundo latente da realidade. Por outro, conceitos que acabam por negar a realidade do indivíduo… e poderíamos traçar um paralelo entre essa concepção construída a partir da idéia do ser e a concepção da natureza, idéias que serão a base do pensamento em que se fundará as teorias liberais.

Ortega y Gasset dizia que na teologia cristã o Teo era cristão, mas o logos era grego. O ocidente nunca conseguiu se libertar do modo de ver o mundo que nos foi legado pelos gregos, embora ele entrasse em franca contradição com a interpretação cristã da realidade. O ser - por mais exuberante que fosse - sempre foi uma verdadeira camisa de força para o Deus cristão. Não seria menos interessante transpor essa idéia de Ortega e dizer que o liberalismo também nunca se viu livre dos conceitos que foram criados para realidades não humanas, conceitos criados para lidar com as coisas - com os entes, com a natureza - e não com a realidade da pessoa ou com a realidade social. Assim, o indivíduo da teoria liberal foi colocado numa camisa de força de conceitos feitos para pensar coisas.

É interessante ver pensadores como Hobbes e Locke, por exemplo, que parecem estar o tempo todo lidando com a realidade histórica, com a realidade do Estado (que não chegam a distinguir da realidade social), esforçarem-se para dar um "toque" geométrico - naturalista - ao seu pensamento. Tinham uma visão prática da realidade, mas não sabiam muito bem como lidar conceitualmente com ela. O próprio empirismo de suas filosofias talvez não tenha sido senão a saída que encontraram para não morrerem sufocados na abstração dos conceitos puros.

Outro ponto importante onde se manifesta a influência da tradição grega é na concepção do bem e do mal. Até hoje temos uma enorme dificuldade em lidar com esse problema fora dos esquemas gregos, já que a tradição equaciona ser = realidade = bem (e alguns mais). O famoso otimismo de Leibniz, segundo Ortega, não é nada mais do que uma tradição já duas vezes milenar.

A minha pergunta é: como seria uma teoria liberal criada a partir da idéia de que a realidade radical não é o ser, nem a natureza, mas a vida de cada um como realidade radical? "Eu sou eu e minha circunstância", não se pode excluir o indivíduo da realidade. A perspectiva não é mais um distorção do real, mas integra sua realidade: a realidade constitui-se perspectivamente. A negação do indivíduo ou da circunstância seria uma mutilação do real. Escolher um sistema político que negue o indivíduo ou sua circunstância (dentre elas a social) iria contra a própria estrutura do real.

Ortega escreveu em seu primeiro livro: "a desconexão é o aniquilamento. O ódio fabrica desconexão, isola e desliga, atomiza o orbe e pulveriza a individualidade. No mito caldeu de Izdubar-Nimrod, vendo-se desdenhada a deusa Ishtar, (semi-Juno, semi-Afrodite), ameaça a Anu, deus do céu, de acabar com toda a criação, suspendendo só por um instante as leis do amor que junta os seres: colocando um simples hiato na sinfonia do erotismo universal" ([5]).

Não estaria nesse reconhecimento da generosidade, da capacidade de lidar com as diferenças, enfim, da condição amorosa de um povo o segredo para a construção de um verdadeiro liberalismo? Um liberalismo que não se pulverizaria em milhares de indivíduos, mas um liberalismo vital. Que reconhece a realidade do homem como sendo "convivência". "Eu sou eu e minhas circunstâncias", lê-se também "eu sou eu e os outros".


Notas de Rodapé

[1] - Embora o liberalismo como insinuamos possa ter como base uma estrutura fundamental da realidade humana, nada garante que essa estrutura se consolide. A realidade humana é dramática, é algo que se pode ou não se realizar.

[2] - O fato de Hobbes estar muito ligado ainda a idéia de honra, nessa interpretação, não seria um desabono ao seu suposto "liberalismo".

[3]- Marías, Julián. Obras II - Idea de la Metafísica. Madrid, Revista de Occidente, p. 378. A religião, por exemplo, também pode nos dar essa certeza radical de que precisamos, mas o dá através da revelação, parte da verdade desta, enquanto o filósofo parte da ignorância. (Há algumas linhas de pensamento de homens de ação que se assemelham aos filósofos com a diferença de que não partem da ignorância, mas parte para ela).

[4]- Marías, Julián. Obras II - Introducción a la Filosofía. Madrid, Revista de Occidente, p. 245, (Grifo nosso).

[5]- Ortega y Gasset, José. Meditações do Quixote. São Paulo, Livro Ibero-Americano Ltda, 1967, pp. 38-43 (Os grifos são meus).