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A Vargem do Sobrado

 

Célia Mendonça da Fonseca

 

Localização - Geografia

 

Se consultarmos um dicionário, na letra V, encontraremos: "Várzeas T. Geogr. Planície de grande fertilidade." Entretanto, como muitos pontos curiosos da língua portuguesa, o uso criou a corruptela "Vargem". Em nosso próprio estado de Minas Gerais, há entre outras, a cidade de Várzea da Palma, com a forma correta. Vemos ao lado dessa, as cidades de: Varginha, Vargem Grande, Santana da Vargem Grande do Sul (SP), Vargem Alegre (RJ) e Varjão (GO). Assim sendo, fica estabelecida e consagrada a forma "vargem".

 

Vargem do Sobrado é a denominação de localidade situada na planície da confluência do córrego do Coelho, com o rio Jacutinga. Há, nela, terrenos férteis para a pecuária, apropriados á cultura do milho e uma parte alagadiça, com plantas nativas: angelica silvestre, banana do brejo, taboa, etc., área que, para o plantio de arroz, necessita de drenagem e preparação adequada.

 

O Departamento Regional de Estradas de Rodagem está tentando mudar o nome do córrego, porquanto, ergueu, á margem da ponte da estrada Santa Rita do Jacutinga – Bom Jardim de Minas, a legenda: "Fonte sobre o Córrego do Papagaio". Ele estabeleceu uma quase disputa entre os mapas geográficos existentes e a História. Nenhum santarritense vivo se lembra de quando as frias e límpidas águas nascidas da serra da fazenda dos Coelhos começaram a ser denominadas córrego do Coelho.

 

Da Vargem do Sobrado, olhando-se na direção sudeste, avistam-se ao longe, em primeiro plano, os sinais do antigo traçado inclinado da linha da extinta Rede Mineira de Viação. Sua pequena estação ainda se encontra lá erguida, com o deslocado nome de Imbuzeiro, mais adequado á localidade do nordeste. Por essa estrada, outrora com intenso movimento, passavam, diariamente, dois trens de passageiros e várias composições de carga, com dormentes para reposições ou lenha, muita lenha, caprichosamente, empilhadas em pranchas. O vapor das locomotivas era obtido pela queima da lenha.

 

O percurso consistia, nesse ramal da maior estrada de ferro do Brasil, até 1967, da ligação entre Soledade (MG) e Barra do Piraí (RJ). Os trens de passageiros, extremamente limpos, sem o carvão da Central do Brasil, eram compostos de vagões de carga, por onde descia o leite para as duas cooperativas de laticínios de Santa Rita, um vagão dividido ao meio, com o chefe do trem e a outra metade para os correios e o funcionário responsável. O vagão de passageiros, também, era composto de bancos de madeira, 2a classe e a outra, com poltrona estofadas com um muito especial forro de palhinhas amarelas. Havia o "trem de cima" e o "trem de baixo", dependendo de sua procedência. Houve época em que corria uma composição de luxo, trem noturno que, pelos seus usuários, recebeu o nome de "almofadinha."

 

Erguendo a vista, mais acima, veremos uma serra azulada, com manchas brancas na encosta. Assemelha-se a uma muralha de pedra interrompida, abruptamente. Seu acesso não é todo fácil, mas já houve época em que se podia atingir seu chapadão a cavalo. Seu chão é de pedra ou de areia muito alva, com cactos e outras vegetações resistentes e rasteiras de clima frio. É conhecida como Água Santa. É assim chamada devido á existência de nascente de água não potável, cuja composição a faz amarelada e que corre por inesperados arbustos de aparência ressequida, desaparecendo misteriosamente. Na sua parte voltada para a Vargem de Sobrado, a Água Santa possui uma gruta com entrada muito baixa, quase impossível de se deixar atravessar. O declive da pedra, entretanto, permite que a pessoa mais ousada entre e se erga e vá em frente, por corredor estreito. Empunhado lanterna, poderá perceber, após alguns metros que o labirinto desce, tão rapidamente, que ali termina a exploração. Uma pedra lá rolada, fará um ruído como se fosse de encontro ás paredes de granito, até não se ouvir mais...

 

Da Água Santa, avistam-se todo o céu e terras do município e serras de parte do Estado do Rio com exceção do distrito de Itaboca, devido a um pontão mais alto. Não se tem notícias de ter sido esta já escalada. O Bairro do Rosário e o Monte Calvário são avistados, por quem vai a Água Santa.

 

História

 

O topônimo Vargem do Sobrado tem sua origem em um sobrado, que lá existiu.

 

O casal Alexandre de Oliveira e Maria Rose de Oliveira adquiriu terras de propriedade do português Antônio Monteiro, tio de Antônio Monteiro Sobrinho.

 

Nessas terras, á margem esquerda do rio Jacutinga, foi edificada uma casa, em estilo colonial rural, dois pavimentos, caiada de branco, janelas retangulares e retangular, também, sua planta baixa. A parte residencial era, somente, no segundo pavimento. Uma escada interna dava acesso á sala de visitas. Bem, os visitantes eram muitos, pois o círculo de amizades da família era amplo. Na sala, promoviam-se reuniões, bailes, á luz de lampiões e o folclórico Terço de São Gonçalo. E’ manifestação popular hoje rara. O dirigente, á frente de um altar improvisado, com estampa ou imagem do santo, tangendo as cordas de um violão e dançando, discretamente, canta os versos em honra a São Gonçalo. Um deles se refere a "São Gonçalo descendo na folhinha de café"...

 

O sobrado, como já foi registrado, não mais existe. Ruiu sua construção forte, em peças de madeira de lei, mais frágil, em suas paredes de "pau-a-pique"- um trançado de ripas de palmeira massa obtida de mistura de terra e água. No telhado, usaram telhas coloniais, em forma de grandes bicas. A denominação da vargem continua, apesar de tombado o sobrado.

 

A Vargem do Sobrado já teve sua época de intensa vida social cíclica, dependendo das datas das Missas. Jamais ela constitui um povoado, mas o ponto de convergência de todos os fazendeiros residentes naquele núcleo centro-oeste do município.

 

De início, a capela pequena era situada abaixo da colina, ás margens da estrada, que seguia para a fazendo do Socorro. Foi edificada em cumprimento de promessa feita, pelo Cel. Archimimo Mendonça, à N. Senhora do Perpétuo Socorro, por ocasião de moléstia de sua esposa Alice Osório de Mendonça. Como a devoção se foi ampliando, tornou-se pequena a capelinha, para receber os fiéis. Eram muito concorridas as Missas dominicais, ali celebradas por Monsenhor Marciano. Concluiu-se que seria mais prudente a elevação de casa maior, para receber a imagem, cuja origem é bizantina e sempre se apresenta em estampa emoldurada. A família Mendonça obteve imagem em gesso e, na época, era rara, embora, não antiga.

 

Os habitantes da região se cotizaram e edificaram a atual capela. Os herdeiros legalizaram a doação do terreno, incluindo o do barracão e estrada de acesso. Por várias vezes, a capela serviu de escola estadual e municipal. O Estado, em certa época, extinguiu a escola da Vargem do Sobrado e com ela a sua denominação, Escola Estadual "Cassiano Ferreira de Mendonça". Foi um ato tranqüilo e normal: desapareceu a única homenagem ao comandante de Batalhão de Rio Preto, que lutou, na cidade de Sta. Luzia , ao lado e sob a chefia do Duque de Caxias...

 

Como se notava algo de misteriosamente grandioso - e ao mesmo tempo modesto - nas festividades da Vargem do Sobrado! Principalmente, no espaço de tempo compreendido entre as décadas de 20 e 50. A capela , o sobrado acolá, duas casinhas ao pé da colina, uma lojinha denominada "venda", a porteira divisória, nos limites da fazenda do Socorro com o território do sobrado, a estrada arenosa constituíam aquele mundo. Ah!... havia o campo de futebol, sim senhores , um campo de futebol!

 

A festa compreendia a Santa Missa celebrada em horário indeterminado, porquanto o Monsenhor possuía a angélica paciência de aguardar a presença de todos. Mas isso ocorria até meio dia, pois, naquela época , ainda não fora introduzida a Missa Vespertina, no ritual católico. Missa rezada em latim e orações respondidas pelo sacristão Antônio da Izídia. Era ele o sacristão rural, pois, o titular da matriz foi o Tatão Sacristão, o melhor turiferário que já se viu e, em matéria de liturgia de acólito, possuía conhecimento profundo. Mas pode-se imaginar o latim do suplente Antônio da Izídia?! Após à Missa, havia o leilão, usando-se o que se convencionou chamar barracão. Sobre a mesa com toalha alva, ficavam pratos, vasos de flores, cestas de papel colorido, objetos doados e que, em todo município, se chamam prendas. O leilão não atingia maiores projeções.

 

De quando em vez, era organizada uma procissão, à tarde, devido á falta de luz elétrica. E os fiéis cantavam alguns hinos religiosos: "Queremos Deus", louvores a N. Senhora e uma Ave Maria alegre e, extremamente original em sua melodia e que, no final, fazia surgir uma expressão... "nasceu Jesus".

 

A essa reunião, compareciam todos os fazendeiros e colonos das imediações. Chamavam-se colonos todas as famílias com residência dentro dos limites das fazendas. Assim sendo, iam à Vargem do Sobrado: Eduardo de Paula Dias, D. Ana, sua esposa, e seus filhos ainda pequenos; toda a família Paula da zona de São Lourenço, São Bento, Pinheirinho, incluindo Deusdedith de Paula , que morreu, no Rio de Janeiro, cumprindo seu dever de investigador da polícia civil. Tendo a concorrência sido divulgada por Cid Moreira, no programa "Fantástico" e havia, de lá, a família Lacerda; Felicíssimo Careci de Oliveira; Miguel de Oliveira e filhos; d. Chiquinha de Oliveira, seus filhos Antônio, João, Cláudio, entre outros, seu genro Geraldo Mendonça da Cunha e esposa Zica; Luís Osório da Fonseca, d. Rita, seus filhos João, Osmar, José Osmar e a sobrinha Rosalina da fazenda do Suspiro Saudoso; Luís Monteiro Ventura, D. Maria e seus filhos residentes na fazenda da margem direita do Jacutinga; Avelino de Paula, D. Lódia e seus filhos , da zona da serra da Candonga; João Medeiros, D. Maria e seus filhos, da fazenda da Limeira; Gabriel Ferreira e sua esposa Teté; Teopompo Mendonça da Cunha, D. Dagma, suas filhas gêmeas e a caçula; major Misseno Alves Pereira e suas filhas Ana e Rita, da fazenda da Serra; para o futebol, estavam presentes: Álvaro Machado, sua esposa D. Lica, seus filhos Zezinho, Elizabeth, Geraldo, Enith e Guido - sr. Álvaro era o chefe da estação de Imbuzeiro - o casal Geraldo e Alzira Mendonça, da Estância Jacutinga, bem próxima já da estação ferroviária de Joaquim Matoso; Cel. Archimimo Mendonça e D. Alice de Mendonça e seus filhos. É certo, havia mais pessoas.

 

Do povoado do Bananal, viajavam o sr. Anízio Cunha e sua esposa D. Deolinda, mais intimamente, "D. Diola", que, num burro com balaios trançados de taquara, levavam para serem vendidos: doces, brevidades, doces em caldas, e doces secos, cristalizados e um apreciadíssimo biscoito de polvilho. Era, o casal, presença infalível e muito simpática.

 

Se o leilão era discreto, o mesmo não se poderia julgar do futebol. Ah! o memorável futebol de Vargem do Sobrado!... Pois existia lá um campo, com dimensões duvidosas, mas existia, com times, em número de três para cima, com suas cores e uniformes, regras do esporte obedecidas, terminologias em inglês, etc. Os atletas eram responsáveis e obedientes ao apito do juiz e às suas determinações, porquanto, ainda não eram introduzidos os números às costas e muito menos o processo de amarelo e vermelho, com relação a cartões. Era notícia corrente que os melhores jogadores, em campo, eram os irmãos Marcianinho e Luís Mendonça, mais o Josias, cunhado de Eduardo de Paula Dias. Para um jogo, o Luís teria de estar num dos lados do campo, enquanto o Marcianinho compunha o time adversário, caso contrário, o desequilíbrio seria grande.

 

O futebol foi introduzido em Santa Rita pelo Libanês, com passaporte turco, Jorge Mansur. Assim, quando residiu na localidade o médico amazonense, jogador do Clube de Regatas do Flamengo, Dr. Emmanuel Nery, já existiam campo e atletas. Pertencia o médico a um trio famoso: Marcos (goleiro), Píndaro e Nery. Infelizmente, Dr. Nery não viveu muito. Faleceu e aqui foi enterrado.

 

Curiosidades

 

A- Havia uma linha telefônica, na Vargem do Sobrado, no transcurso das décadas de 20 a 40. Ligava a estação da estrada de ferro R.M.V. á fazenda de Luís Monteiro Ventura, fazenda do Socorro, Estância Jacutinga e a Fazenda dos Moinhos, onde residia um colono dos irmãos Antônio e Geraldo Mendonça.

 

B- A mencionada fazenda dos Moinhos, segundo seu atual proprietário, Dr. Roberto Azevedo Sousa, deve ser das mais antigas casa residenciais, sendo os indícios, nele encontrados, a prova de afirmação. Há na casa residencial peças raras de madeira, esquadrias bem feitas, obras de cantaria e, fora, muros de pedras. Tudo isso levou a se pensar e executar um trabalho de restauração cuidadoso.

 

C- Pela Vargem do Sobrado, rodou também um automóvel, um dos primeiros do município. Tratava-se de um Ford 1929 de propriedade do Cel. Archimimo Mendonça. Viajava-se nele pelas estradas próximas, á estação, á vila e até a Santa Isabel do Rio Preto.

 

D- Da estação do R.M.V. avistava-se, muito bem, a estrada que ligava a fazenda do Socorro à Vargem do Sobrado.

 

No decorrer da Revolução de 1930, Santa Rita foi considerada local estratégico devida à proximidade de fronteiras estaduais. Em vista disso, nossa vila foi, prontamente, invadida por forças fiéis ao presidente Washington Luis, representadas por soldados da polícia do Estado do Rio. Os invasores se aproximaram de poucas autoridades da vila, apossaram-se de trens de ferro e, uma parte ficou sediada em Imbuzeiro. Diariamente, a composição subia até à antiga estação de Residência, á procura de soldados ou civis rebeldes. Enquanto isso, não deixavam de cobrir, com a mira de uma metralhadora, a estrada, que se avistava abaixo. Era a estrada que ligava a fazenda do Socorro à Vargem do Sobrado e, conseqüentemente, à vila de Santa Rita. Do alto, atiravam nos raros cavaleiros, que se dispunham a correr o risco. Felizmente, a polícia não oferecia bom treinamento, os soldados não possuíam boa mira, a metralhadora era antiquada, a intenção era somente assustar, manter um certo grau de intranqüilidade... O fato é que jamais alguém foi atingido.

 

Por essa estrada, em plena luta de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, contra todos os demais membros da federação, passou o Cel. da Guarda Nacional, título mais simbólico do que outra coisa, Archimimo Mendonça, com parte da sua família em direção à fazenda "Santa Marta", em Santa Isabel do Rio Preto, o automóvel ainda pode oferecer vaga para João Câncio da Fonseca, D. Tonica e seus dois filhos mais velhos.

 

E- A facilidade de comunicação de trens, em Barra do Piraí, fazia com que a esparsa população da Vargem do sobrado fosse assinante de jornais do Rio de Janeiro. Assim sendo, diariamente três ou mais fazendeiros recebiam, no dia, sem falha, o órgão dos Diários Associados, o Jornal. Era levado, da estação aos seus assinantes, pelo menino leiteiro, isto é aquele que tangia os burros com as latas de leite.

 

F- Vargem do Sobrado, dentro do município de Santa Rita do Jacutinga, foi a primeira a introduzir um pequeno aperfeiçoamento no meio de transporte leiteiro. As latas duplas eram presas as alças da cangalha dos burros, com correias. Acontecia, com freqüência, que as correias, guardadas todo dia, passavam a constituir alimento de grande preferência dos cães das fazendas. Algo deveria ser feito. O engenheiro agrônomo, funcionário do Ministério da Agricultura e professor, residindo, por período de tempo, com seu cunhado Antônio Mendonça, introduziu o uso de correntes fortes substituindo as frágeis correias. Parece uma criação de pouca monta, mas resolveu uma situação bastante séria.

G- Na derrotada Revolução constitucionalista de 1932, Minas Gerais, também, estaria ao lado de São Paulo, mas tal adesão foi frustrada, pela prisão de Arthur Bernardes, pelo presidente Getúlio Vargas. De Juiz de Fora, vieram dois agentes revoltosos, com missão muito misteriosa e se hospedaram na fazenda do Socorro. Aguardavam ordens, talvez, a vir pelo telégrafo e pelo telefone...

 

Com a prisão do chefe mineiro, eles não tiveram outra alternativa. Receberam do Cel. Archimimo Mendonça dois cavalos preparados, dirigindo-se pela estrada do Mata Cachorro - atual distrito de Itaboca – passaram pelo Chora – distrito de Taboão, município de Bom Jardim de Minas e chegaram a Lima Duarte, onde, de fato residiam.

 

Os dois agentes eram Moacir e Coroacy Catão, cunhados do dr. Magalhães Pinto.

 

Bibliografia

1. Enciclopédia Brasileira Globo - Editora Globo, 12 vols. Porto Alegre, 1977.

2. Enciclopédia Mirador Internacional - Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda., 20 vols, São Paulo, Rio de Janeiro, 1981.

3. Torres, João Camilo de Oliveira História de Minas Gerais, Difusão Pan - Americana do Livro, 5 vols., Belo Horizonte.

4. Sales , Fritz Teixeira de Vila Rica do Pilar, Editora Itatiaia Limitada, Belo Horizonte, 1965.

5. Estrada, Edgar Duque - Comandante da forças de ocupação de Santa Rita do Jacutinga, em 1930 - "Carta" escrita a pessoa aqui residente, datada de 31 de janeiro de 1931. Fotocópia.