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Moral no Catecismo da Igreja Católica

 

 Marli Pirozelli Navalho Silva
Mestre pela FEUSP
Profa. de Doutrina Social da Igreja - FEI
marlipiro@arqmed.com.br

Moral, hoje

 

A discussão sobre a moral, habitualmente confinada aos domínios filosóficos, adquiriu nas últimas décadas uma relevância social sem precedentes. Os temas morais tornaram-se objeto de conversas e incorporaram-se ao universo do homem comum, expressando a urgência de uma redefinição das relações sociais.

 

Defendemos com firmeza a liberdade de pensamento e ação, mas não nos damos conta de que a cultura dominante, impregnada pelo niilismo, por vezes nos impele a legitimar o poder, pois “se nada é verdadeiro, nem falso, bom ou mau, a regra será mostrar-se o mais eficaz, quer dizer, o mais forte”.(1)

 

É no enfrentamento dos problemas cotidianos que constatamos a ausência de critérios, a dificuldade em emitir juízos de valor, a atitude de hesitação e incerteza que paralisam o homem, gerando apenas uma indignação estéril.

 

Desta forma, vivemos uma situação paradoxal: de um lado a exaltação do instinto - sobretudo a partir de 1968 - e, de outro, a exaltação da lei. “Passou-se da exaltação do instinto, como único critério de ação (para o qual tudo é lícito, tudo é permitido), para a exaltação da lei, do ‘ser adequados para’(...). Todos são impelidos a fazer o que bem lhes parece, mas, se erram, se ultrapassam os limites, o peso da lei cai sobre suas cabeças.”(2)

 

Com efeito, é cada vez maior o número de leis, decretos e normas que procuram evitar o transbordamento da instintividade. Multiplicam-se os instrumentos que regulamentam o nível de instintividade socialmente aceitável.

 

Não é difícil constatar que o grande desafio deste final de século encontra-se, sem dúvida, no campo das questões morais, e que o grande problema de nosso tempo é o da Educação para a moral, para a realização do homem. É no campo das questões morais, que a cultura atual mostra sua face mais frágil. Atitudes que oscilam entre a total indiferença às questões morais, passando pelo relativismo, até a busca de normas que regulamentem com segurança os múltiplos aspectos da vida social, demonstram a confusão que se instaura quando entra em jogo o próprio homem, quando se questiona o sentido de seu agir.

 

A existência de uma “ordem científica”, completamente afastada de uma “ordem moral” exemplifica bem este fenômeno. As questões científicas, por vezes situam-se exclusivamente no nível das possilidades práticas, não levando em consideração a licitude dos atos.

 

Num contexto onde as certezas morais foram destruídas e a própria idéia de que há certezas em relação ao homem é considerada anacrônica e discutível, predomina uma visão tecnicista que relativiza os valores ou simplesmente prescinde deles.

 

A questão da legitimidade é para muitos algo já superado, incompatível com o grau de emancipação do homem atual, que não deve manter limitações de qualquer espécie, que possam comprometer o ideal de autonomia moderno. “Aquilo que é possível é legítimo fazer”. Esta é uma das máximas que se aplicam a todos os âmbitos da vida moderna.

 

Ao mesmo tempo, é cada vez maior a exigência de “moral” em todos os setores da vida pública, o que revela, por um lado, o esquecimento ou a inexistência de critérios morais que orientem o agir humano para além da reação imediata e por outro, expressam a necessidade urgente de um processo educativo que enfatize a reflexão sobre a natureza do homem e forneça critérios capazes de responder às suas necessidades pessoais e sociais.

 

Frente a este desafio, a leitura e análise do Novo Catecismo da Igreja Católica (doravante abreviado como CC) oferece-nos uma importante e atual contribuição, ao apresentar a doutrina da Igreja sobre a moral. Sendo um texto de alcance mundial e duradouro, oficial para os milhões de católicos de nosso país e do mundo e, mesmo para os não católicos, este documento expressa uma tomada de posição que - para além do âmbito especificamente religioso - recolhe a própria tradição de pensamento do Ocidente. Como pretendemos demonstrar, a própria Igreja reconhece que não há, em termos de conteúdo, uma moral especificamente católica: trata-se de uma proposta que pretende atingir a própria realização do ser humano enquanto tal.

 

Habitualmente, a moral católica é identificada com um código de normas anacrônicas, formuladas arbitrariamente e impostas pela Igreja aos seus membros. Em conseqüência disto, considera-se autoritária a atitude da Igreja que insistiria em impor regras consideradas ultrapassadas ou baseadas numa idealização do ser humano, que não encontrariam correspondência no mundo contemporâneo.

 

Na verdade, o que encontramos no CC é uma concepção de moral centrada na antropologia filosófica e voltada para a realização do próprio homem. O próprio título da parte dedicada ao tema moral - “Viver em Cristo” - já descarta a moral entendida como um manual de regras de conduta e aponta para uma profunda concepção de homem entendido em sua plenitude natural e aberto à participação da graça. É a afirmação do homem em sua totalidade e inserido em seu tempo. Passaremos então, a analisar a concepção de moral e os fundamentos sobre os quais ela se apóia, tal como nos é apresentada no CC.

 

O Catecismo da Igreja Católica

 

O CC foi editado em 1992 (edição definitiva em 1997), substituindo como texto oficial de referência o antigo Catecismo Romano, em vigor desde 1566.

 

O Catechismus Romanus ex decreto Concilii Tridentini ad Parochos, foi elaborado a partir do Concílio de Trento (1543-1565) sob a chancela do Papa Pio V e caracterizava-se por uma rígida normatização no campo da moral e da fé. Em 1912 foi reeditado numa versão resumida: O Catecismo de São Pio X e após o Concílio Vaticano II foi definitivamente abandonado, dando lugar a inúmeros subsídios catequéticos, diretórios e novos catecismos locais, que tentavam traduzir o espírito renovador do Vaticano II. (3)

 

Em 1985, durante a reunião do Sínodo Extraordinário, a discussão sobre a necessidade de um catecismo universal ganhou força e deu-se início ao projeto de elaboração de um novo catecismo católico. Foram elaboradas nove redações sucessivas e o projeto foi enviado a todos os bispos, Conferências Episcopais, Institutos de teologia e de catequética para apreciação e comentários. Após receber 24 mil emendas de todas as partes do mundo, o CC foi editado em 1992, como fruto de um trabalho coletivo realizado o longo de seis anos.

 

O CC exprime com clareza seu objetivo: “apresentar uma exposição orgânica e sintética dos conteúdos essenciais e fundamentais da doutrina católica tanto sobre a fé como sobre a moral (grifo nosso) à luz do Concílio Vaticano II e do conjunto da tradição da Igreja” (# 11)(4). O CC não se destina a substituir os catecismos locais nem a ser um instrumento de simples uniformidade, mas deve “servir como um ponto de referência para os catecismos ou compêndios que são elaborados nos diversos países” (#12), tendo em coeta as diversas situações e culturas, mas conservando “cuidadosamente a unidade da fé e a fidelidade à doutrina católica”(5).

 

Desta forma, o texto desponta como uma resposta concreta “à dupla exigência de unidade e de inculturação da fé” próprias de um mundo marcado pela fragmentação e pelo pluralismo cultural (6).

 

O CC é destinado em primeiro lugar aos bispos e aos responsáveis pela redação, aprovação ou adaptação de catecismos locais (teólogos, sacerdotes, religiosos e catequistas), mas também dirige-se aos leigos, sendo concebido como um instrumento para todos aqueles que procuram assumir com maturidade seu papel na Igreja, condividindo a responsabilidade da missão da Igreja. Retomando a ordem já seguida pelos grandes catecismos, o conteúdo articula-se em 4 partes interligadas: “A Profissão de Fé” (Credo), “A Celebração do Mistério Cristão” (liturgia e sacramentos); “A Vida em Cristo” (agir humano e os mandamentos) e “A Oração Cristã”.

 

A apresentação de princípios morais muitas vezes aplicados às situações concretas provocou reações contraditórias na sociedade. Questionavam-se as posições defendidas pela Igreja e a própria legitimidade de sua interferência em questões que deveriam ser resolvidas na esfera pessoal, social ou do Estado democrático. Na verdade, os posicionamentos assumidos pela Igreja no campo moral, ainda que conhecidos de forma parcial ou superficial, constituem sempre uma provocação à compreensão individual e à mentalidade vigente. Por isto, procuraremos explicitar a concepção de moral (muito criticada e pouco conhecida) e de seus fundamentos, contida no CC, instrumento privilegiado para aprofundar o conhecimento dos “conteúdos fundamentais e essenciais da fé e da moral católica, tais como eles são cridos, celebrados, vividos e pregados pela Igreja hoje”(7).

 

Essa concepção, presente no CC é - como pretendemos mostrar - essencialmente apoiada na antropologia filosófica e na ética de Santo Tomás de Aquino. Embora utilize diferentes fontes - tais como a Sagrada Escritura, os Padres da Igreja (tendo à frente Santo Agostinho), os Concílios (sobretudo o de Trento e Vaticano II), o magistério eclesiástico (especialmente o de João Paulo II), a obra de teólogos, santos e santas da Igreja - é no pensamento de S. Tomás que a moral exposta no CC encontra sua raiz(8), o que nos leva a afirmar, seguindo o exemplo de alguns estudiosos, a existência de uma moral gerada tendo Tomás como referencial.

 

Ao examinar em profundidade a natureza do ato humano, S. Tomás estabeleceu as bases para a doutrina sobre a moral. Como afirma João Paulo II: “A ordem moral prevalece sobre as outras ordens do operar humano. De fato, em outros setores, o homem tende para fins particulares; ao contrário, a ordem moral é a ordem do homem enquanto tal: 'In moralibus ordinatur (homo) ad finem communem totius humanae vitae' (I-II, 21, 2 ad 2). Uma tal compreensão da dimensão moral deve ser o ponto de partida e fundamento de todo o discurso do nosso tempo”(9).

 

Desta forma, justifica-se a identificação entre a doutrina moral apresentada pelo CC e o pensamento de S. Tomás, assim como nossa opção em evidenciá-la através da abreviação: CC/ Tomás(10). Embora apresente os fundamentos antropológicos da moral. o CC não o faz de forma orgânica. Procuraremos sistematizar e explicitar a estrutura do pensamento sobre a moral ao menos em seus pontos fundamentais. Estes pontos fundamentais são de duas ordens: natural (conceitos de natura e creatio) e sobrenatural (conceitos de gratia e participatio).

 

Introdução à moral em Tomás de Aquino

 

Como já assinalamos anteriormente, a concepção de moral contida no CC está muito distante da idéia de proibições e regras impostas pela sociedade. Na perspectiva do CC é somente a partir do reconhecimento da natureza humana, do ser do homem, que o discurso moral encontra sua origem e sentido. Como diz o CC:

 

#354. Respeitar as leis inscritas na criação e as relações que derivam da natureza das coisas é princípio de sabedoria e fundamento da moral.

 

Para compreender a raiz desta concepção de moral será necessário realizar uma breve incursão no pensamento de Santo Tomás de Aquino. Uma primeira aproximação das idéias de Santo Tomás sobre a moral revela-nos que : “Ele nem sequer poderia conceber a moral como algo imposto, nem como 'assunto reservado a religiosos' e, menos ainda, como algo constrangedor ou repressivo da liberdade humana! O que, sim ele diz, é que a moral é o ser do homem(11), doutrina sobre o que o homem é e está chamado a ser. Sim, porque para Tomás a moral é entendida como um processo de auto-realização do homem(12); um processo levado a cabo livre e responsavelmente e que incide sobre o nível mais fundamental, o do ser-homem: 'Quando porém se trata da moral, a ação humana é vista como afetando, não um aspecto particular, mas a totalidade do ser do homem...; ela diz respeito ao que se é enquanto homem'"(13).

 

Como pretendemos mostrar, toda a parte dedicada a moral no CC expressa a visão de que o homem é ontologicamente constituído pela exigência de realização plena, por perguntas inextirpáveis sobre o sentido último da vida, que referem-se portanto, não a aspectos particulares, mas à totalidade da existência. É o desejo de felicidade, de “realização (no singular) e não de realizações (plural) nos diversos aspectos setoriais da vida: financeiro, saúde, status, etc... (...)”(14) presente em cada homem que dá sentido e ordena toda a vida moral. Santo Tomás compreende o homem como alguém em movimento, que procura continuamente a felicidade, a satisfação plena mas nunca consegue alcançá-la: “Na vida presente não pode haver felicidade completa. Este é o sentido do conceito de ‘status viatoris’. Existir como homem significa estar ‘no caminho’ desta realização”, movimentar-se na direção que corresponde à sua natureza (15).

 

# 1711. Dotada de alma espiritual, inteligência e vontade, a pessoa humana, desde sua concepção, é ordenada para Deus e destinada à bem-aventurança eterna. Busca sua perfeição na “procura e no amor da verdade e do bem”.

 

Tal compreensão sobre a moral revela a existência de um nexo vital entre o bem moral e o destino do homem. Tratar da moral portanto, significa pôr em questão a plenitude de significado da vida. “Esta é efetivamente a aspiração que está no âmago de cada decisão e de cada ação humana, a inquietude secreta e o impulso íntimo que move a liberdade”(16).

 

De acordo com Tomás a moral deriva da natureza ou essência do ser humano e toda a criação, não tem origem em si mesma, mas é obra de toda a Santíssima Trindade: do poder Criador do Pai, através da inteligência do Verbo, que dá leis às criaturas. “Todo ente tem, portanto, uma essência, uma natureza, um modo de ser pensado, planejado por Deus; está organizado ou estruturado segundo um "projeto" divino. O homem (e cada coisa criada) é o que é, possui uma natureza humana, precisamente por ter sido criativamente criado pelo Verbo. Daí que haja uma verdade e um bem objetivos para o homem, porque seu ser não é caótico ou aleatório, mas procede de um design divino.” Para estabelecermos uma comparação(17), poderíamos dizer que assim como o manual de instruções de um complicado aparelho elétrico não é outra coisa que uma decorrência do design, do processo de criação e de fabricação daquela máquina, assim também a moral deve ser entendida não como um conjunto de imposições arbitrárias ou convencionais, mas pura e simplesmente como o reconhecimento da verdadeira natureza humana, tal como projetada por Deus. E da mesma forma que não ficamos revoltados contra o fabricante que nos indica: "Não ligarás em 220V", ou "Conservarás em lugar seco", mas lhe agradecemos essas informações, assim também devemos enxergar, digamos, os Dez Mandamentos não como imposições arbitrárias, mas como verdades elementares sobre o ser do homem”(18).

 

Por isto podemos constatar a existência de um lei moral natural, inerente a todo ser humano, que não resulta de um consenso ou imposição externa, mas da natureza especifica e original do homem. De acordo com Tomás a lei natural “não é mais do que a luz da inteligência infundida por Deus em nós. Graças a ela, conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar” Esta luz e esta lei, Deus a concedeu na criação” (19).

 

Isto significa que o homem possui em si mesmo uma lei, cujo caráter racional (universalmente compreensível e comunicável) permite que ela seja reconhecida por ele:

 

“O intelecto é naturalmente apto a entender tudo o que há na natureza das coisas.

Intellectus... natus est omnia quae sunt in rerum natura intelligere (CG 3,59)”(20).

 

Por isto, através de sua consciência o homem pode emitir um juízo sobre seus atos e agir em acordo ou desacordo com sua própria natureza, agredindo em primeiro lugar, a si mesmo. “Nesta perspectiva, toda norma moral deve ser entendida como um enunciado a respeito do ser do homem; e toda transgressão moral, o pecado, traz consigo uma agressão ao que o homem é. Os imperativos dos mandamentos (‘Farás x......’, ‘Não farás y...’) são no fundo, enunciados sobre a natureza humana: ‘O homem é um ser tal que sua felicidade, sua realização, requer x e é incompatível com y’”(21). De acordo com Tomás:

 

“Somos senhores de nossas ações no sentido de que podemos escolher isto ou aquilo. Não há escolha, porém, no que diz respeito ao fim, somente sobre ‘o que se ordena ao fim’(como se diz na Ética de Aristóteles). Daí que o querer o último fim não seja uma daquelas coisas de que somos senhores.

 

Sumus domini nostrorum actuum secundum quod possumus hoc vel illud eligere. Electio autem non est de fine, sed ‘de his quae sunt ad finem’, ut dicitur in III Ethicorum. unde appetitus ultimi finis non est de his, quorum domini sumus (I, 82, 1 ad 3)”(22).

 

A própria definição de pecado apresentada pelo CC expressa com clareza esta visão:

#1872. O pecado é um ato contrário à razão. Fere a natureza do homem e ofende a solidariedade humana.

 

Concluindo com o pensamento de Santo Tomás:

"O moral pressupõe o natural”.

Naturalia praesupponuntur moralibus (Corr. Frat. I ad 5)”.

 

Criação

 

Para examinarmos o conceito central de criação no CC/Tomás, é necessário compreender a dimensão que este conceito adquire em Tomás. Seu ponto de partida é a constatação de que toda a realidade não tem origem em si mesma, não se produz a si mesma, mas é “criação: productio rerum in esse, produção das coisas no ser”(23). Neste sentido, o homem mostra-se limitado: ele é capaz de conferir novas formas às coisas existentes, ordená-las e transformá-las de acordo com suas necessidades. Sua criatividade permite-lhe arriscar, estabelecer novas conexões e descobrir novas possibilidades naquilo que lhe é dado. Sua atuação portanto, dá-se sobre algo que já existe, que lhe é dado, pois o homem, assim como todas as criaturas não é capaz de conferir o ser às coisas. Como afirma o CC/Tomás:

 

# 318. Nenhuma criatura tem o poder infinito que é necessário para “criar” no sentido próprio da palavra, isto é, produzir e dar o ser àquilo que não o tinha de modo algum (chamar à existência “ex-nihilo”).

 

Esta constatação remete à existência de um Outro que faz com que tudo exista: “assim, o ser que está presente nas coisas criadas, pode somente remontar-se ao ser divino”.(24)

 

# 290. “No princípio, Deus criou o céu e a terra”(Gn 1,1). Três coisas são afirmadas nestas primeiras palavras da Escritura: o Deus eterno pôs um começo a tudo o que existe fora dele. Só ele é Criador ( o verbo “criar”- em hebraico “bara”- sempre tem como sujeito a Deus). Tudo o que existe ( expresso pela fórmula “o céu e a terra”) depende daquele que dá o ser.

 

“Deus é o ente cuja natureza é ser, não ser isto ou aquilo, mas ser sem mais, puro ato de ser”. É “Ipsum esse subsistens, o próprio ser subsistente, a realidade propriamente dita”(25).

 

“ Em Deus não há essência que não o seu próprio ser. Deus é o que é.” Portanto, “sendo Deus o próprio ser por essência, necessariamente o ser de cada coisa criada é um feito próprio d’Ele, como queimar é próprio do fogo (...) E por isso Deus necessariamente está presente nas coisas do modo mais profundo e íntimo”(26).

 

O CC/Tomás sublinha a presença do Criador no ente criado: uma presença que não se encontra apenas na origem de todas as criaturas, mas sustenta-as permitindo sua existência a cada momento.

 

# 300. Deus é infinitamente maior que todas as suas obras. “Sua majestade é mais alta do que os céus”(Sl 8,2),”é incalculável a sua grandeza”(Sl 145,3). Mas por ser o Criador soberano e livre, causa primeira de tudo o que existe, ele está presente no mais íntimo das suas criaturas: “Nele vivemos, nos movemos e existimos”(At 17,28). Segundo as palavras de Sto. Agostinho, ele “superior summo meo et intereor intimo meo - maior do que o que há de maior em mim e mais íntimo do que há de mais íntimo em mim”.

 

Todas as criaturas portanto, são um reflexo de Deus, trazem em si algo que as transcende e de algum modo espelham a Deus. “Todas as coisas, na medida em que são assemelham-se a Deus, que é o ser primeiro e principal”.(27). Esta é a fonte da dignidade do homem: criatura que carrega em si a imagem de Deus.

 

# 355. “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou”(Gn 1, 27). O homem ocupa um lugar único na criação: ele é “à imagem de Deus; na sua própria natureza une o mundo espiritual e material; é criado “homem e mulher”; Deus o estabeleceu na sua amizade.

 

# 356. De todas as criaturas visíveis, só o homem é “capaz de conhecer e amar o seu Criador”, ele é “a única criatura que Deus quis em si mesma”, só ele é chamado a compartilhar, pelo conhecimento e o amor, a vida de Deus. Foi para este fim que o homem foi criado, e aí reside a razão fundamental da sua dignidade: "Que motivo vos fez constituir o homem em dignidade tão grande? O amor inestimável pelo qual enxergastes em vós mesmo a vossa criatura, e vos apaixonastes por ela; pois foi por amor que a criastes, foi por amor que lhes destes um ser capaz de degustar o vosso Bem eterno".

 

# 1700. A dignidade da pessoa humana se fundamenta em sua criação à imagem e semelhança de Deus.

 

Esta afirmação é repetida exaustivamente no CC/Tomás, para ressaltar a singularidade do homem entre todas as criaturas da natureza - criado à imagem de Deus (dotado de razão, alma, liberdade e chamado à realização) - e as conseqüências desta concepção no plano pessoal e nos relacionamentos com os outros homens. Qualquer forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa, seja ela social ou cultural, ou que se fundamente no sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião deve ser superada e eliminada, porque contrária ao plano de Deus.

 

A compreensão do conceito de “criação” completa-se com a constatação de que o “naturalismo” presente em Tomás (CC/Tomás) apoia-se num fundamento sobrenatural. Trata-se de ressaltar que a Criação não é obra de Deus Pai, mas de toda a Trindade. A Criação é o ato inteligente de Deus, é obra do Verbo, compreendido como Logos, como princípio da Criação, que confere inteligibilidade à todas as criaturas e à toda realidade. Assim se expressa o CC/Tomás:

 

# 291. “No princípio era o Verbo... e o Verbo era Deus... Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito”(Jo 1,1-3). O Novo Testamento revela que Deus criou tudo através do Verbo Eterno, seu Filho bem-amado. Foi nele “que foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra... tudo foi criado por Ele e para Ele. Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste”(Cl 1,16-17). A fé da Igreja afirma outrossim a ação criadora do Espírito Santo. Ele é o “doador de vida”. “o Espírito Criador”(Veni, Creator Spiritus”), a “Fonte de todo bem”.

 

Em latim, “verbum significa não só palavra, a palavra exterior vocalmente proferida, mas também o verbum interius (verbum mentis ou verbum cordis), a ‘palavra’ interior, o conceito, a idéia que corresponde à palavra exterior. Verbum significa ainda o Filho, a segunda Pessoa da Ssma. Trindade ( Jesus Cristo)”(28). Como afirma Tomás: “Assim como a palavra audível manifesta a palavra interior, assim também a criatura manifesta a concepção divina (...); as criaturas são como palavras que manifestam o Verbo de Deus” pois elas encerram em si mesmas um projeto divino(29).

 

# 299. Já que Deus cria com sabedoria, a criação é ordenada: “Tu dispuseste tudo com medida, número e peso”(Sb 11,20). Feita no e através do Verbo eterno, “imagem do Deus invisível”(Cl 1,15), a criação está destinada, dirigida ao homem, imagem de Deus, chamado a uma relação pessoal com Deus. Nossa inteligência, que participa da luz do Intelecto divino, pode entender o que Deus nos diz pela sua criação, sem dúvida não sem grande esforço e num espírito de humildade e de respeito diante do Criador e da sua obra. Originada da bondade divina, a criação participa desta bondade(...)” (Gn 1,4.10.12.18.21.31).

 

Pela criação, portanto, Deus dá o ser às criaturas, mas não de qualquer maneira. Por ser obra do Pensamento criador de Deus - obra do Verbo - o ser das criaturas não é caótico, mas estruturado, planejado, ordenado em função de uma finalidade.

 

Natureza/Razão

 

Inicialmente, frisemos uma tese fundamental: o conteúdo da moral é essencialmente natural. Neste sentido não existe uma “moral católica” e quando a Igreja intervém veementemente em questões morais ela o faz não em nome de outra coisa que não seja a verdade a respeito do homem.

 

O que então, o CC/Tomás e Santo Tomás entendem por natureza humana? Que relação estabelecem entre natureza e moral?

 

Retomando o pensamento de Santo Tomás podemos constatar que a palavra "natureza" é comumente utilizada como sinônimo de essência, ou mais precisamente para ressaltar o aspecto da essência como princípio de operações (falar, pensar, andar, florescer, frutificar, latir, cantar, etc.).

 

Aqui faz-se necessária uma retomada do binômio ato de ser/ essência, base da metafísica de Tomás: todo o ente é, e é algo. Ele é (exerce o ato de ser) de um modo determinado (essência): é um ser humano ou um animal por exemplo. A essência é o modo, é a medida da recepção do ato de ser. Não se justapõe ao ser, mas “está unida ao ente real e concreto: como definição, delimitação determinação, isto é estabelecendo os limites, o fim, o término da recepção do ato de ser por este ente concreto.” Todo ente “tem uma essência (é pedra, árvore, cão ou homem) por receber o actus essendi em tal e tal forma, em tal medida”(30).

 

Quando falamos da natureza humana portanto, falamos daquilo que constitui o homem enquanto tal, de algo que existe em razão da criação. (31)De acordo com Tomás: “Natureza” procede de nascer. (Natura a nascendo est dictum et sumptum. III,2,1) (32). É portanto, o ser que o homem recebe pelo nascimento que o torna capaz de agir especificamente como um homem e não como um animal. O que é então, próprio da natureza humana? Em suas sentenças, Tomás afirma:

 

“O primeiro princípio de todas as ações humanas é a razão e quaisquer outros princípios que se encontrem para as ações humanas obedecem, de algum modo, à razão.

 

Omnium humanorum operum principium primum ratio est, et quaecumque alia principia humanorum operum inveniantur, quodammodo rationi obediunt (I-II,58,2)”.

 

“A razão é a natureza do homem. Daí que tudo o que é contra a razão é contra a natureza do homem.

 

Ratio hominis est natura, unde quidquid est contra rationem, est contra hominis naturam (Mal. 14,2 ad 8)”.

 

A razão portanto, é a estrutura interna do homem e a capacidade intelectual de compreensão da natureza de todas as coisas. Lembremos que “razão, não deve aqui ser entendida como a razão do "racionalismo", nem sequer somente como a faculdade racional humana. Dentre os múltiplos significados da palavra latina ratio (que acompanha alguns dos diversos sentidos do vocábulo grego logos), interessam-nos principalmente dois: um que aponta para algo intrínseco à realidade das coisas; e, outro, para um peculiar relacionamento com a realidade”(33).

 

Aqui é necessário ressaltar, como nos explica Lauand, que cada coisa real “sendo criada pelo Verbo, tem uma ratio, uma natureza, um conteúdo, um significado, ‘um quê’, uma verdade que, por um lado, faz com que a coisa seja aquilo que é e, por outro, a torna cognoscitível para a inteligência humana. Um conhecimento que será tanto mais adequado quanto maior for a objetividade com que se abrir à realidade contida no objeto.(...) É precisamente essa ratio que, por um lado, estrutura por dentro qualquer ente que, por outro, permite, como dizíamos, o acesso intelectual humano a esse ente (34).

 

Assim como toda a realidade é fruto da Criação através do Verbo, o ser humano também procede da Inteligência criadora de Deus e por isto, tem incorporado em si uma racionalidade que o estrutura internamente, que o constitui e lhe confere inteligibilidade. Através da razão o homem pode conhecer, entrar em contato com a racionalidade inerente à toda realidade. Por isto pode-se afirmar a existência de uma “ordem” , que corresponde à estruturação racional (projeto divino) existente em todas os seres em virtude da Criação:

 

# 354. Respeitar as leis inscritas na criação e as relações que derivam da natureza das coisas é princípio de sabedoria e fundamento da moral.

 

A moralidade, portanto, deriva da própria natureza humana. A lei moral não é um conjunto de exigências exteriores ao homem, mas expressão de sua natureza, tal como ela foi constituída em virtude da criação e torna-se conhecida através da razão.

 

O CC/Tomás assinala a existência da lei moral natural(35), por vezes chamada de ”lei natural e divina” para ressaltar sua origem: a verdade que orienta o agir, encontra-se no ser do homem, em sua natureza que deriva do Criador . É esta a verdade que o instrui.

 

# 1955. A lei “divina e natural” mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. A lei natural enuncia os preceitos primeiros e essenciais que regem a vida moral. Tem como esteio a aspiração e a submissão a Deus, fonte e juiz de todo bem, assim como sentir o outro como igual a si mesmo. Está exposta, em seus principais preceitos, no Decálogo. Essa lei é denominada natural, não em referência à natureza dos seres irracionais, mas porque a razão que a promulga pertence com algo próprio à natureza humana(...).

 

# 1955. A lei natural outra coisa não é senão a luz da inteligência posta em nós por Deus. Por ela, conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar. Esta luz ou esta lei, deu-a Deus à criação.”

 

Ter uma razão é a natureza do homem, por isto a lei natural impõe-se a todo ser dotado de razão, ainda que este se encontre em circunstâncias culturais e épocas distintas. Por isto o CC/Tomás ressalta que a lei natural é universal, imutável e não diz respeito apenas à conduta moral de cada homem em particular, mas de toda a sociedade. A própria concepção de autoridade, seu exercício legítimo e a busca do bem comum, encontram seu fundamento na lei natural:

 

# 1902. A legislação humana não goza do caráter de lei senão na medida em que se conforma à justa razão; donde se vê que ela recebe o seu vigor da lei eterna. Na medida em que ela se afastasse da razão, seria necessário declará-la injusta, pois não realizaria a noção de lei; seria antes uma forma de violência.

 

Na condição de criatura, que traz em si algo do Criador, o homem busca sua realização. A busca da felicidade, nada mais é do que a expressão natural da ordenação do homem ao seu fim último, à sua plenitude. Como afirma Santo Tomás: “O homem quer a felicidade por natureza e por necessidade”. “A criatura espiritual deseja naturalmente ser feliz; por isso, ela não pode não querer ser feliz’. “Querer ser feliz não é objeto de decisão livre” pois “O desejo do último fim não está entre os objetos dos quais somos senhores”(36).

 

A afirmação de que “ O homem aspira, por natureza à felicidade”, ressalta a conexão profunda entre natureza e felicidade. Como nos explica Pieper: “Se, faz parte da definição do espírito criado (criatura) que ele recebeu seu ser e o complemento imediato de sua vida de outrem, ab alio, isto é, do ato da criação que produz o seu ser, então, necessariamente, está incluído que em meio ao espírito criado algo sucede que é ato dele próprio, e, portanto, espiritual, mas ao mesmo tempo sucede “por causa da criação”, um fato natural. É este precisamente o caso do desejo da felicidade; é um “querer natural”, isto é, ao mesmo tempo ato espiritual e ato natural.(37). Nas palavras do CC/Tomás:

 

# 1704. A pessoa humana participa da luz e da força do Espírito divino. Pela razão é capaz de compreender a ordem das coisas estabelecida pelo Criador. Por sua vontade, ela é capaz de ir ao encontro de seu verdadeiro bem. Encontra sua perfeição na “busca e no amor da verdade e do bem”.

 

Como ensina Pieper: “Todo desejo de felicidade do homem, por menores que sejam as satisfações em que se possa perder, se orienta infalivelmente para uma satisfação suprema que é o que na realidade ele procura”(38). Da mesma forma, o CC/ Tomás afirma que o desejo de felicidade que só encontra correspondência nas bem-aventuranças, está na raiz de todos os atos humanos, é a expressão mais genuína da natureza humana, pois indica sua origem e aponta para seu destino.

 

# 1718. As bem-aventuranças respondem ao desejo natural de felicidade. Este desejo é de origem divina: Deus o colocou no coração do homem a fim de atraí-lo para si, pois só ele pode satisfazê-lo. Todos certamente queremos viver felizes e não existe no gênero humano pessoa que não concorde com esta proposição mesmo antes de ser formulada por inteiro. Então, como vos hei de procurar, Senhor? Quando vos procuro, meu Deus, busco a vida eterna.

 

Por seus atos deliberados, o ser humano pode orientar sua vida na direção das bem-aventuranças ( felicidade, fim último). Através de sua consciência o homem reconhece os preceitos da lei natural, que o conduzem à plenitude e usando de sua liberdade pode aceitá-los ou rejeitá-los:

 

# 1777. Presente no coração da pessoa, a consciência moral lhe impõe, no momento oportuno, fazer o bem e evitar o mal. Julga, portanto, as escolhas concretas, aprovando as boas e denunciando as más. Atesta a autoridade da verdade referente ao Bem supremo, de quem a pessoa humana sente a atração e acolhe os mandamentos. Quando escuta a consciência moral, o homem pode ouvir Deus, que fala.

 

# 1794. Quanto mais prevalecer a consciência reta, tanto mais as pessoas e os grupos se afastam de um arbítrio e se esforçam por conformar-se às normas objetivas da moralidade.

 

É na ação do homem que se concretiza a relação entre a liberdade e o bem supremo, pois é através de seus atos que o homem se aperfeiçoa como homem, “como homem chamado a procurar espontaneamente o seu Criador e a chegar livremente pela adesão à ele, à perfeição total e beatífica” (39). Desta forma, “o agir é moralmente bom quando exprime a ordenação voluntária da pessoa para o fim último e a conformidade da ação concreta com o bem humano, tal como é reconhecido na sua verdade pela razão”(40). Quando a ação do homem não está em sintonia com o seu verdadeiro bem, podemos afirmar que esta ação é moralmente má, pois o afasta de seu fim último, de sua plenitude, isto é do próprio Deus.

 

# 1747. A liberdade faz do homem um sujeito moral. Quando age de forma deliberada, o homem é, por assim dizer, pai de seus atos. Os atos humanos, isto é livremente escolhidos após um juízo da consciência, são qualificáveis moralmente. São bons ou maus.

 

# 1761. Existem comportamentos concretos cuja escolha é sempre errônea, porque escolhê-los significa uma desordem da vontade, isto é, um mal moral. Não é permitido fazer o mal para que dele resulte um bem.

 

Daí segue-se a definição de pecado:

 

# 1849. O pecado é uma falta grave contra a razão, a verdade , a consciência reta: é uma falta ao amor verdadeiro, para com Deus e para com o próximo, por causa de um apego perverso a certos bens. Fere a natureza do homem e ofende a solidariedade humana. Foi definido como “uma palavra, um ato ou um desejo contrários à lei eterna”.

 

É portanto na natureza do homem que vamos encontrar as razões e o sentido do agir humano. Utilizando as palavras de E. Gilson: “O fundamento da moral é a própria natureza humana. O bem moral é todo o objeto, toda operação que permite ao homem realizar as capacidades de sua natureza e atualizar-se segundo a norma de sua essência, que é a de um ser dotado de razão”(41).

 

Graça e Participação

 

A partir dos conceitos de graça e participação saímos da esfera da moral exclusivamente natural, aceitando-a integralmente, mas acrescentando algo que transcende a natureza: o sobrenatural.

 

Graça e participação não prescindem da natureza, nem das leis que a constituem e a ordenam, mas indicam realidades que estão além da natureza e que atuando no homem, conferem-lhe um significado diferente: toda a realidade humana na unidade alma e corpo não é essencialmente alterada, mas assumida num outro plano.

 

O que possibilita ao homem entrar na órbita de uma vida sobre-humana? Como compreender a presença do divino no humano, caraterística da ordem sobrenatural? Comecemos por examinar o conceito de participação.

 

A palavra participação admite vários significados, mas aquele que nos interessa “é expresso pela palavra metékhein: “ter com”, um “com ter”; ou simplesmente “ter” em oposição a “ser”; um “ter” pela união (participação) com outro que “é”(42).

 

Quando nos detemos exclusivamente no plano natural, podemos afirmar que todas as criaturas participam do ser de Deus, recebem de Deus (ato puro de ser) o ser que as constitui. Por isto toda criatura é sempre um reflexo, uma imagem do Criador: “Todas as coisas, na medida em que são, reproduzem de algum modo a essência divina; mas não a reproduzem todas da mesma maneira, mas de modos diferentes e em diversos graus.”

 

Quando porém passamos ao plano sobrenatural, o conceito de participação adquire outro significado: não mais a participação no ser, mas em Deus enquanto tal, na própria vida divina.

 

Este é o significado mais pertinente da graça: participação da vida íntima de Deus. É nesse sentido que falam Heb 3,14: "Somos participantes de Cristo" e 2Pd. 1,4: "Participamos da natureza divina".

 

Santo Tomás descreve de diferentes formas esse participar de Deus: “A graça é uma certa semelhança com Deus de que o homem participa”; “O primeiro efeito da graça é conferir um ser de alguma forma divino”; “Pela graça santificante, toda a Trindade passa a habitar na alma”(43). Estas formulações são assumidas na íntegra pelo CC/Tomás da seguinte forma:

 

# 1997. A graça é uma participação na vida divina; introduz-nos na intimidade da vida trinitária.

 

É algo totalmente sobrenatural, na medida em que:

 

# 1998. Depende integralmente da iniciativa gratuita de Deus, pois apenas ele pode se revelar e dar-se a si mesmo. Ultrapassa as capacidades da inteligência e as forças da vontade do homem, como também de qualquer criatura.

 

Desta forma, graça designa “antes de tudo uma relação, um encontro, uma ruptura de compartimentos estanques, nos quais o divino e o humano permaneceriam incomunicáveis, uma subversão da pirâmide ontológica , tal e qual a pensaram os gregos, segundo a qual o homem está abaixo e Deus está acima. Graça significa que Deus se abaixou, condescendeu com o homem; que o homem transcendeu até Deus; que, por conseguinte, a fronteira entre o divino e o humano não é impenetrável, mas se tornou permeável. E que, enfim, tudo isto acontece gratuitamente: Deus não tem nenhuma obrigação de tratar assim o homem; o homem não tem nenhum direito a ser tratado assim por Deus”(44).

 

A graça (participação na vida divina) confere ao homem uma filiação divina, que não deve ser confundida com a que ele e as demais criaturas obtém ao participarem do ser pela Criação.

 

Trata-se de uma filiação totalmente nova: o cristão participa de Cristo, que é Filho de Deus e adquire uma filiação divina. Como “filho adotivo” (a filiação natural pertence somente a Cristo) o cristão pode até mesmo dirigir-se a Deus como Pai, como nos explica o CC/Tomás:

 

# 1996. A graça é o favor, o socorro gratuito que Deus nos dá para responder a seu convite: tornar-nos filhos de Deus, filhos adotivos, participantes da natureza divina, da Vida Eterna.

 

Através do batismo, o homem pode participar da natureza divina, ocorrendo assim, um verdadeiro “renascimento”.A ação da presença infinita de Deus no homem produz, não um “quid superadditum”, mas um novo modo de ser, uma nova conformação ontológica que se expressa através de atos.

 

# 1999. Se alguém está em Cristo, é nova criatura. passaram-se as coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova. Tudo isto vem de Deus, que nos reconciliou consigo por Cristo (2Cor. 5,17-18).

 

Neste ponto vale lembrar uma das principais sentenças de Santo Tomás: “A graça não suprime a natureza, aperfeiçoa-a”(45).

 

A graça, portanto não prescinde nem diminui a natureza humana, mas situa-a no interior de uma realidade sobrenatural. O próprio Tomás reconhece que o homem, por natureza, busca o infinito, é capax infiniti (capaz do infinito) e ao mesmo tempo, é incapaz de atingí-lo por seus próprios meios.

 

Como sintetiza O.H. Pesch: “graça é o chegar do amor eterno de Deus à alma, ou, dizendo modernamente, ao eu íntimo do homem. Deus dá ao homem, nesse amor, não algo, (...) dá-se a si mesmo. E essa auto doação divina opera no homem a capacidade e a propensão (inalcançáveis de outro modo) para corresponder ao amor de Deus com uma entrega análoga, ou seja, espontânea e gozosa. O saldo resultante é amizade em recíproca comunicação, que compromete todo o agir humano, condensando-o num único movimento fundamental para Deus”(46).

 

Ao realizar esta breve síntese, o autor já indica de modo inequívoco a relação entre a graça e conteúdo da moral.

 

Ainda que o conteúdo moral encontre-se no interior do próprio homem, ainda que as leis morais existentes na natureza possam ser reconhecidas por cada homem indicando o caminho para sua plenitude, do ponto de vista cristão, isto só pode ocorrer com a ajuda da graça. Comentando a importância da lei antiga (Decálogo), cujo conteúdo exprime verdades naturalmente acessíveis à razão, o CC/ Tomás objeta que:

 

# 1963. Como um pedagogo, ela (a lei) mostra o que se deve fazer, mas não dá por si mesma a força, a graça para cumpri-la. Por causa do pecado que não pode tirar, é ainda uma lei de servidão.

 

Dito de outra forma: “a graça é condição para o agir humano”, (47) pois a coerência com os preceitos morais não é fruto de um esforço puramente humano (quase sempre triste e desesperado), mas da graça.

 

Não se trata, pois do frio cumprimento de uma "lei", mas de uma questão de amor, da consciência de ser uma nova criatura, portadora da vida divina. É o que diz o Apóstolo: "Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo? E haverei de tomar eu os membros de Cristo para torná-los membros de uma prostituta? De modo algum!" (I Cor 6:15).

 

Se, como dizíamos, não há uma "moral católica" no que diz respeito a conteúdos, ela existe quanto ao aspecto formal, quanto à motivação, à vivência da Moral pelo cristão que se sabe participante da divindade de Cristo. Não por acaso a parte III do CC intitula-se "Viver em Cristo" e repete, como lema da vida moral, a sentença de S. Leão Magno: "Agnosce christiane dignitatem tuam".

 

#1691. “Cristão, reconhece a tua dignidade. Por participares agora da natureza divina, não te degeneres retornando à decadência de tua vida passada. Lembra-te da Cabeça a que pertences e do Corpo de que és membro. Lembra-te de que foste arrancado do poder das trevas e transferido para a luz e o Reino de Deus.

 

Concluindo, o conhecimento dos fundamentos da moral no CC parece-nos ser de extraordinária importância para o educador de hoje, na medida em que expressa não só a doutrina oficial da Igreja à qual se filia a grande maioria da população brasileira, como também por apresentar uma proposta sólida, coerente e fundamentada da moral, de extrema atualidade e vinculada às raízes da grande tradição de pensamento ocidental. Proposta que se mostra tanto mais relevante se temos em conta a escassez de alternativas em educação moral.

 

De acordo com o CC/Tomás a moral - para além de regras, normas, convenções ou imposições sociais - diz respeito ao próprio ser do homem: à sua auto-realização.

 

Este é precisamente o sentido do conceito de criação, “fundamento da moral” (# 354). O conceito de criação, participação no ser de Deus, confere ao homem uma natureza dinâmica, que pelo seu agir livre e responsável pode caminhar em direção àquela realização prevista pelo Verbum, o pensamento criador divino.

 

Assim se compreende também o conceito de razão, entendida como a presença de um logos no homem: “existe, sem dúvida, uma verdadeira lei: é a reta razão” (1956).”

 

O plano sobrenatural não acrescenta nada de substantivo ao conteúdo da moral, mas dá ao cristão uma perspectiva nova quanto à motivação e a dignidade de seus atos. "Agnosce christiane dignitatem tuam” repete o CC/ Tomás para lembrar ao cristão a essencial doutrina da graça, que, por participação, o faz filho de Deus em Cristo, “viver em Cristo”.

 

Assim, o cristão que é ele mesmo “outro Cristo”(Gl 2, 20) e vê nos outros homens “outros Cristos” transcende a moral “da lei” e passa a viver a moral do amor.

 

Desta forma, a educação para a moral pressupõe o conhecimento sobre aquilo que a fundamenta: o próprio ser do homem, a natureza humana, que participa do ser divino em virtude da criação. A grande tarefa dos educadores hoje é portanto, ajudar o homem a tomar consciência de si mesmo, reconhecendo aquilo que o constitui e o qualifica como tal.

 

(1) Em sua obra O Homem Revoltado Albert Camus realiza uma análise profunda do pensamento de Nietzsche e do niilismo levado às últimas consequências no âmbito moral. Camus, Albert O Homem Revoltado, Rio de Janeiro, Record, 1996, p.15.

(2) Carrón, Julián “Haec est generatio quaerentium Eum, quaerentium faciem Dei Iacob”, Revista Litterae Communionis, ano XIII, no 65, 1998, p.20.

(3) Enquadram-se nesta categoria o Catecismo Holandês, bastante difundido na década de 60, bem como o Norte-americano (An American Catholic Catechism) na década de 70 e o Francês (Pierres vivantes) na década de 80. Várias Conferências Episcopais publicaram catecismos nacionais (Itália em 1981, Bélgica e Moçambique em 1987) ou um Diretório catequético como no Brasil e Espanha em 1983.

(4) Catecismo da Igreja Católica, R.J.-S.P., Vozes-Loyola, 1993. Sempre que citarmos o CC indicaremos com o sinal # o número do ponto a que refere. Por exemplo: # 1897 é o ponto 1897 do CC.

(5) Ratzinger, J./Schonborn, Ch. Breve introduzione al Catechismo della Chiesa Cattolica, Roma, Città Nuova Editrice, 1994.

(6) Fillipi, N. “La vita in Cristo nel Catechismo della Chiesa Cattolica”. Studia Moralia XXXII,, Roma, 1994, p.8.

(7) “Particular motivo de reconhecimento pelo dom do CC - Carta de João Paulo II aos sacerdotes por ocasião da Quinta-feira santa de 1993”, L’Osservatore Romano, ed. semanal em português, N. 13, 28 de março de 1993.

(8) Vidal, M. “La matriz Tomista de la moral general en el Catecismo de la Iglesia Catolica”, Studia Moralia, vol. XXXII/1, Roma, Ed. Academiae Alphonsianae, 1994.

(9) João Paulo II “La perenne validità dell’etica tomista”, Doctor Comunnis, ano XLV, Roma, N. 1, 1992, p.4.

(10). Como o CC é fortemente apoiado em Tomás, a forma Tomás/CC indica que nos referimos indistintamente a ambos ou à dimensão tomista do CC (a rigor, deveríamos dizer: tomasiana),

(11) Cfr. p. ex. o Prólogo da parte II da Suma Teológica.

(12) É o que significa, por exemplo, a caracterização, tantas vezes por ele repetida, da virtude como ultimum potentiae.

(13). I-II,21,2 ad 2.

(14) Lauand, Luiz Jean Oriente & Ocidente - Razão, Natureza, e Graça: Tomás de Aquino em Sentenças, S. Paulo, DLO - FFLCHUSP, 1995, p.25.

(15) Pieper, Josef Felicidade e Contemplação, Lazer e Culto, S. Paulo, Herder, 1969, pp. 17-18.

(16) Encíclica Veritatis Splendor, S.Paulo, Ed. Paulinas, 1993, N. 7.

(17) Comparação necessariamente limitada, na medida em que o ato criador divino transcende infinitamente o âmbito da produção de objetos artificiais.

(18) Lauand, Luiz Jean Oriente & Ocidente - Razão..., pp.25-26.

(19) S. Tomás de Aquino, In duo praecepta caritatis et in decem legis praecepta. Prologus: Opuscula theologica, II, N. 1129. Ed. Taurines, 247; cf. Summa Theologiae, I-II, Q. 91, a 2;.

(20) Lauand, Jean, L. Oriente & Ocidente - Razão... p. 46. A partir de agora sempre que utilizarmos sentenças (bilíngues) de Tomás na formatação abaixo, tratam-se de citações dessa obra.

(21) Lauand, Luiz Jean Oriente & Ocidente - Razão..., p. 26.

(22) Ibidem, p.60.

(23) Lauand, Luiz Jean Tomás de Aquino Hoje, Curitiba-S. Paulo, PUC-PR, 1993, p.34.

(24) Lauand, Luiz Jean Oriente & Ocidente - Razão..., p.20.

(25) Lauand, Luiz Jean Tomás de Aquino Hoje, Curitiba - S.P., PUC-PR / GDR, 1993, p.33-34.

(26) Tomás cit. por Lauand, L.J. Tomás de Aquino Hoje, ed. cit., p.34.

(27) Lauand, L.J. Tomás de Aquino Hoje, ed. cit., p.34.

(28) Sobre a diferença entre a Palavra Divina e a Humana, (estudo introd., trad. e notas Prof. Dr. Luiz J. Lauand), S.Paulo, GDR, 1993, p.8.

(29) Tomás de Aquino Sobre a diferença..., ed. cit.,p.11.

(30) Lauand, L.J. Oriente & Ocidente - Razão..., p.19.

(31) Pieper, Josef Felicidade e Contemplação - Lazer e Culto, ed. cit., p.13

(32) Lauand, L.J. Oriente & Ocidente - Razão..., p.45,

(33) Lauand, L.J. Oriente & Ocidente - Razão..., p.34.

(34) Lauand, L.J. Oriente & Ocidente - Razão..., p.35.

(35) O conceito de “lei natural” remonta à filosofia pré-cristã e foi ulteriormente desenvolvido pelos Padres e pela filosofia e teologia medieval no contexto cristão, mas teve uma atualidade e uma urgência interiramente nova no início da época moderna. Os grandes filósofos do direito, espanhóis e holandeses, encontraram no conceito de direito natural (de lei natural) o instrumento, para formular e defender os direitos dos povos não cristãos, diante das prevaricações dos dominadores coloniais. Estes povos não eram membros da comunidade de direito cristã, mas - assim explicaram estes filósofos - nem por isso não tem direitos, porque a natureza confere direitos ao homem mesmmo e enquanto tal.” Ratzinger, Joseph “ A Encíclica Veritatis Splendor”, L’Osservatore Romano, edição semanal em português, N. 42, 17 de outubro de 1993, pp.8-9.

(36) Pieper, Josef Felicidade e Contemplação - Lazer e Culto, ed. cit., p.11.

(37) Ibidem, p.13.

(38) Ibidem, p.10.

(39) Encíclica Veritatis Splendor, S. Paulo, Paulinas, 1993, N. 71.

(40) Ibidem, N. 72.

(41) Simon, R. Moral - Curso de Filosofia Tomista, Barcelona, Herder, 1987, p. 207.

(42) Lauand, L.J. Oriente & Ocidente - Razão..., p.30.

(43) Lauand, L.J. Oriente & Ocidente - Razão..., p.31.

(44) Ruiz de la Peña, Juan L. O Dom de Deus: antropologia teológica, Vozes, 1996, p.311.

(45) Lauand, L.J. Oriente & Ocidente - Razão..., p.61.

(46) Ruiz de la Peña, Juan L. O Dom de Deus: antropologia teológica, ed. cit., p. 324.

(47) Constituição Apostólica Fidei Depositum, R.J., Vozes-Loyola, 1993, p.10.