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Garoto Um, Menina Zero

 

Gabriele Greggersen
Doutora e Mestre em Educação - USP / luna@spider.usp.br
Professora do mestrado em teologia do Mackenzie e
Consultora pedagógica da Ad Homines

 

O conto, a seguir, inspira-se na história "The Day Boy and the Night Girl" do escritor britânico, George MacDonald (1824-1905) que, por sua originalidade, exerceu influência sobre outros clássicos, como C. S. Lewis, John Ruskin e Lewis Carroll. Entre seus amigos contam-se ainda Emerson, Whittier, Oliver Wendell Holmes e Mark Twain. Pretendemos seguir os passos destes autores clássicos da Literatura Infantil, que se destaca, ao mesmo tempo, pelo seu conteúdo místico cristão, que diz respeito também ao adulto.

 

Era uma vez uma mulher chamada Flora. Além de muito formosa, diziam que ela era uma feiticeira e que se dedicava à magia às noites. Morava sozinha em uma enorme mansão no bairro mais nobre daquela cidade. Tinha uma só criada, analfabeta, Firmina, que fazia tudo por ela e a admirava muito por seus conhecimentos e seus poderes míticos. Para tudo Flora tinha uma solução e Firmina executava suas ordens com entusiasmo, desculpando certos desmandos que a sua ama praticava por todo bairro. Era capaz de ser muito gentil, mas quando algo lhe subia à cabeça, diziam que ela se transformava em um lobo.

 

Um dia, a feiticeira, recebeu duas amigas da alta sociedade em alas separadas da sua mansão, sem que uma soubesse da outra. Uma das amigas, Aurora, era alva, esposa de um embaixador que morava muito longe. Mas a outra, Véspera, era uma viúva cega, raquítica e de tez escura. Ambas foram morar com a feiticeira na sua mansão, onde viveram por muitos anos, ignorando a existência uma da outra, graças a Firmina.

 

Aurora que morava na ala sul, era muito bem tratada, enquanto Véspera foi determinada a morar em uma parte antiga da mansão, remanescente das catacumbas dos egípcios. Ali ela era mantida a pão e água, em um quarto completamente escuro e isolado do mundo.

 

Por uma espécie de magia, a feiticeira fez com que Aurora desse à luz um filho magnífico e alvo, exceto pelos olhos, de azul pouco mais escuro que os dela. Chamou-o de Fotogênio. Alguns meses mais tarde, Véspera também deu à luz, debaixo da única lâmpada de que dispunham ali, uma filha idêntica a ela, Nicterícia, cega e moreninha, exceto pelos olhos, que, por estranha coincidência, guardavam semelhança com os de Aurora. Logo depois do parto, a feiticeira roubou Fotogênio para cuidar de lhe dar do bom e do melhor, e mandou Firmina esconder Nicterícia em uma câmara escura e disse às mães de ambas as crianças, que elas haviam morrido. Nenhuma das mães sobreviveu ao choque da notícia.

 

Foi assim que a feiticeira encarregou-se de uma educação rígida das crianças, que eram mantidas rigorosamente separadas, sem uma saber da outra, com ajuda da serviçal. Por ter nascido quase totalmente cega, a feiticeira mandou que Nicterícia fosse sempre mantida acordada à noite e dormindo de dia, enquanto Fotogênio - que sempre fora um menino reluzente e saudável e gozava de todas regalias e do favoritismo da feiticeira -, era proibido de ficar acordado à noite. Assim, desenvolvia suas habilidades de franco atirador e era conhecido por sua coragem. Treinava tiro ao alvo horas a fio durante o dia. A única restrição que a feiticeria impunha era que voltasse necessariamente antes do pôr do sol. Sob hipótese alguma podia voltar depois.

 

Enquanto isso, no seu quarto escuro, o único consolo que Nícterícia tinha para passar o tempo era uma lamparina de luz muito fraca. Assim, os anos foram passando e Nicterícia foi ficando cada vez mais cega e delicada (mas muito resistente), enquanto Fotogênio ficava robusto, ágil feito lince e ousado com as armas (mas muito estúpido).

 

Certo dia, a lamparina do quarto de Nicterícia apagou-se por descuido de Firmina, que estava ocupada com a feiticeira adoentada. Nicterícia viu-se, assim, obrigada a procurar uma forma de sair de sua câmara escura. Depois de muito apalpar no escuro, deseperada começou a duvidar de todas as lâmpadas, achando que tudo podia não ter passado de uma ilusão. Este episódio não foi o pior: depois que Firmina acendeu outra lâmpada bem mais fraca na câmara escura, ela simplesmente quebrou. Naquele dia, porém, por sorte, Firmina deixara uma porta secreta aberta. Depois de alguns trombões, Nicterícia finalmente encontrou a passagem que dava diretamente ao jardim da mansão, que, diziam as más líguas, abrigava ferozes feras. Mas ela nem ligou para isso, pois, para sorte dela, quando pôs os pés na grama, descobriu que era noite (se fosse dia, ela, que mal sabia o que era luz, teria ficado cega de vez).

 

Nem é preciso mencionar a felicidade dela quando, primeira vez, sentiu a grama debaixo dos pés e o frescor do rio, ouviu o som dos animais e tudo mais de interessante que se pode descobrir em um jardim. Ela acabou fazendo amizade com todos os animais e plantas. Foi lá também que encontrou, pela primeira vez, a Grande Lâmpada, a mãe de todas as lâmpadas, que imperava no meio do jardim e perto da qual a sua lamparina não era nada.

 

Fotogênio, por sua vez, também teve uma aventura diferente, certo dia. Quando estava voltando de mais uma de suas aulas de tiro: deu com a porta da mansão trancada por dentro. "Deve ter sido aquele servo esquecido, que foi cuidar da feiticeira. Isto foi até bom, assim posso treinar mais um pouco minha destreza com aquele ladrãozinho que escapou naquela esquina...". E voltou todo cheio de si, pois se achava o máximo da coragem e do heroísmo.

 

Mas, à medida que o sol ia se pondo, e a sombra dos carros e prédios da cidade iam se alongando, sua coragem foi definhando. E logo, no lugar de coragem, Fotogênio, que nunca havia visto a penumbra, muito menos a escuridão, passou de receio, a medo e a pavor. Quando resolveu voltar à mansão, já estava em um pânico tal, que corria à toda e pulou um alto muro do qual despencou bem no meio do jardim, do mesmo jardim por onde perambulava Nicterícia, e então, desmaiou. Nicterícia, quando tropeçou no corpo flácido de Fotogênio, achou primeiro que era um saco. Depois que notou que era algo parecido com ela mesma, começou a acolhê-lo, passando a cuidar dele. Quando começou a amanhecer, porém, quem passou a entrar em pânico foi ela. Ao amanhecer do dia, teve forças somente para trocar algumas palavras com Fotogênio já desperto, que se espantava com o espanto dela.

 

Começaram a discutir o suficiente para perceberem que o dia dele era muito diferente da noite dela. E então Nicterícia desmaiou. Fotogênio, quando viu o desmaio dela, pensou que ela era mesmo uma covarde e a abandonou. Mas lembrou-se dela assim que o sol se pôs. Quando chegou à mansão, já se fazia noite novamente e ele estava muito doente. A feiticeira, ao saber da doença do seu protegido, ficou mais doente ainda e começou a maltratá-lo. Então, Fotogênio lembrou-se ainda mais de Nicterícia e dos cuidados com os quais ela o assistira em sua fraqueza.

 

A malvada feiticeira chegou a bater nele, cobrando toda luz que ela havia investido nele e pouco se importando com Nicterícia, que continuava desmaiada no jardim, exposta ao pleno sol do meio-dia. Para surpresa de todos, os passarinhos nem sequer ousaram aproximar-se dela, pela amizade que tinham feito anteriormente com a menina e pelo vento, que sempre soprava a favor dela para enganar o faro de todas as feras que podiam estar à sua espreita. Fotogênio, lembrando da agonia da sua amiga, arrependeu-se de sua própria covardia e resolveu resgatá-la.

 

Neste meio tempo a Grande Lâmpada do jardim encarregou-se de iluminar a noite de Nicterícia. Foi debaixo dela que ela conseguia, aos poucos, recuperar-se do excesso de luz daquele dia, quando Fotogênio tomou coragem e foi encontrar-se com ela naquela noite. Recuperada, Nicterícia fez as pazes com Fotogênio e ambos juraram fidelidade eterna um ao outro. Depois de uma longa discussão sobre as vantagens da fuga, noturna, ou diurna, chegaram à conclusão que o que era preciso mesmo era fugir já. E traçaram o seguinte plano: Nicterícia encarregar-se-ia de guiar Fotogênio à noite e Fotogênio carregaria Nicterícia de dia. A fuga foi longa e cansativa. Na primeira noite, Nicterícia segurou as pontas de Fotogênio. Houve um momento em que ambos estavam tão exaustos que nenhum dos dois parecia mais poder ajudar ninguém.

 

No dia seguinte, porém, a feiticeira, que já estava no encalço dele, transformada definitivamente em lobo, assaltou e atacou Fotogênio pelas costas. Foi a oportunidade para Fotogênio mostrar a sua habilidade nas armas. Sacou o revólver como um raio e deu um tiro bem no coração do lobo. Quando Firmina veio enterrar sua ama, sem muita saudade, ela já voltara a sua forma original, e já havia sido devorada pelas feras do jardim da mansão da feiticeira.

 

De volta à mansão, o garoto número 1, casou-se com a garota 0 e formaram um casal nota mil, que ficou conhecido por contar mil e uma histórias. Quando o prefeito da cidade ficou sabendo dessa história e viu Nicterícia, logo reconheceu o azul dos olhos de Aurora, refletido no verde opaco dos olhos dela. E deu a eles toda mansão e terras que eram da feiticeira. E viveram felizes para todo o sempre, ou, pelo menos, diz George MacDonald, até um dia, que será tão grandioso para os habitantes daquela cidade, quanto era o dia de Fotogênio para a noite de Nicterícia.