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Introdução a um Antibarbarorum Liber

  

Gabriel Perissé
Mestre em Literatura Brasileira - USP
Autor do livro Ler, Pensar e Escrever
Criador do Projeto Literário Mosaico - Escola de Escritores
e-mail: perisse@uol.com.br

 

 As trevas da Idade Mídia são as trevas do vazio comunicativo.

 

Nossa cultura tecnológica dispõe de meios e recursos desmesurados para comunicar tudo a qualquer hora, mas, comparativamente, a contrapartida do conteúdo é escassa. Se há tentáculos inumeráveis para dizer - jornais, livros, revistas, rádio, Internet, televisão etc. -, faltam-nos opiniões vivas e palavras inesquecíveis. Há uma quantidade excessiva de mensagens insubstanciais, de imagens intoxicadoras, de superficialidade confundida com entretenimento, ou de pura dispersão.

 

Fala-se muito e diz-se pouco. Transmite-se muito e orienta-se pouco. Informa-se muito e ensina-se pouco.

 

Numa sociedade assim desmoralizada, a primeira coisa que começa a cheirar mal são as palavras. A linguagem apodrece, e é fácil detectar o mau hálito de alguns livros, cartas, discursos, conversas, letras de música, contratos, monografias, sermões, roteiros de TV, redações escolares, piadas, relatórios, palestras, e até de singelos cartões de Natal!

 

No entanto, todo renascimento cultural surge das entranhas da própria decadência humanística. O repúdio ao tédio e à mentira é um primeiro movimento, cujo sucesso depende da busca concreta de saídas intelectuais, estéticas e educacionais.

 

Dizia um humorista que os jornalistas distinguem o joio do trigo, e publicam o joio. O discernimento cultural, ao contrário, consiste em localizar as novidades nos arquivos do passado, detectar as idéias novas contidas nos livros antigos, elogiar o que há de revolucionário nos velhos conselhos.

Erasmo de Rotherdam foi uma dessas pontes entre passado e futuro, um paradigma para qualquer etapa de transição civilizacional. Apaixonado pela verdade escondida nas palavras, ele soube lavar o rosto com a água suja da educação decadente em que fora obrigado a banhar-se, e redescobrir as pistas, por dentro das selvas medievais, que o levariam de volta às melhores fontes do período cristão e pré-cristão. Ainda jovem, escreveu o Antibarbarorum liber, um livro contra os supersticiosos disfarçados de professores, contra os doutos indoutos que pululavam na Europa do século XVI, um livro revoltado que nascia do desejo de aprender tudo, e tudo com a música de fundo do bom gosto e da beleza.

 

Não obstante todos os recursos de que dispomos, somos bárbaros. Bárbaros modernos, com uma expectativa de vida mais alta, com transportes mais eficazes, mas que perderam de vista valores essenciais para se viver uma vida humana num nível mais profundo que o da eficácia material. Um único sinal dessa barbárie é a violência generalizada, claramente covarde ou dissimulada. Violência bélica, de povos contra povos. Violência caseira, de parentes entre si, de vizinhos contra vizinhos. Violência urbana, de concidadãos entre si. Violência multiforme, sofisticada, institucionalizada, de governo contra povo, de empresa contra empregados, de médicos contra pacientes, de pessoas com instrução universitária, força econômica, acesso a todas as informações, mas sem referências éticas para gerar harmonia e crescimento humanos.

 

Autores neo-renascentistas, contando com todos os recursos tecnológicos disponíveis, deveriam reaver hoje princípios essenciais, capsulados em palavras que começam a perder sua validade: justiça, solidariedade, confiança, veracidade etc.

 

Uma intuição de fundo, base para uma reviravolta cultural é a da importância insubstituível da palavra. Uma palavra nova em folha, que renovasse a consciência e revigorasse as práticas da convivência.

 

Ortega y Gasset comumente escrevia a frase "é urgente que"... Sentia ele a urgência de pensar e de fazer pensar. E de enseñar, no sentido genuíno da palavra: mostrar, fazer ver.

 

Às portas desta virada de milênio, que, como um excepcional fim de ano, poderia ser uma ocasião de repensar nossos valores, algumas urgências parecem-me evidentes.

 

É urgente, em primeiro lugar, tomarmos consciência de que pertencemos à Idade Mídia. Um tempo em que, para se obter visibilidade (uma das expressões preferidas do marketing), precisa-se aparecer nos jornais e revistas, falar no rádio, surgir na televisão (e seus multicanais), plugar-se na Internet, responder aos e-mails, carregar na cintura o pager de um lado e o celular de outro, pilotar o fax (no trabalho e, se possível, em casa também), ter um telefone comercial (no mínimo), o residencial (claro), e secretária eletrônica ligada nos dois, sem falar de um motoboy à mão, que vá costurando em alta velocidade pelo trânsito intransitável, e leve a mensagem ainda quente ao destinatário inquieto.

 

É urgente, em segundo lugar, admitir que, tendo ao alcance todos esses rapidíssimos e amplíssimos instrumentos de comunicação, nem sempre dispomos da palavra certa, da palavra contundente, da palavra coerente e, sobretudo, da palavra verdadeira. No horário político, nos púlpitos esotéricos, no telejornal assintático, nas revistas superficiais, nas palestras repetitivas, nas aulas caóticas, nas conversas vazias, ouvimos e lemos tanto, e tão pouco.

 

Se o Renascimento embutido na própria Idade Mídia já irrompeu antes mesmo do fim da era que, mal ou bem, o gerou, trata-se de um renascimento da palavra, que é urgente também perceber. Perceber e propiciar.

 

Nietzsche comparava as opiniões vivas aos peixes vivos, que precisamos pescar, utilizando a técnica adequada, tendo paciência e contando com a sorte. Um texto, uma exposição verbal vivos não provêm de estruturas fossilizadas ou, pior, de peixes que bóiam no aquário do comodismo intelectual, e exalam o cheiro podre dos lugares-comuns.

 

Uma sociedade que deseja recompor-se precisa construir uma linguagem nova em folha, própria dos que redescobrem a ousadia da gratidão, a aventura do casamento, as exigências do trabalho, as exigências ainda mais importantes do ócio criativo, a verdadeira função do lucro, a pureza do sexo, o papel da universidade etc.

 

Expressar-se com mais criatividade e bom senso é um passo revolucionário radical.

 

Clarice Lispector segredou certa vez: "Todos os dias, quando acordo, vou correndo tirar a poeira da palavra amor." E não há tarefa mais urgente do que a de desempoeirar os conceitos, desde os mais sagrados aos mais cotidianos.

 

Tal lucidez (marcadamente estética) reage contra a violência que atinge também e degrada as palavras, transformando-as em meros instrumentos de poder (para impor o silêncio) ou de hipnotismo social (para impor o mimetismo).

 

Neste sentido, é indiscutível que os dois grandes protagonistas dessa revolução serão o filósofo e o poeta, ou, mais precisamente, o filósofo sensível à poesia e o poeta sensível à filosofia.

 

Em Ave, palavra, obra póstuma de Guimarães Rosa, este anúncio e este elogio à palavra convida-nos a voar e a inaugurar um tempo de sensibilidade, num tom de otimismo que é a marca das verdadeiras revoluções. Rosa escreve, por exemplo: "Só não existe remédio é para a sede do peixe."(1) Uma vez que por sua própria natureza já está mergulhado no que mata a sede. Em outras palavras, tudo tem solução, e se o peixe viesse a sentir sede, bastaria beber um pouco do elemento que tudo lhe dá.

 

Uma só frase faz vislumbrar. Uma só frase oferece horas de reflexão e faz-nos economizar o tempo perdido. Uma só palavra salva-nos do suicídio. Como uma palavra grega que não chegou até nós:avarent.gif (1222 bytes) isto é, aquele que come excrementos, palavra que tinha na antigüidade a conotação de avarento. O avarento tem o defeito de reter (não guardar) o dinheiro que, como a água, deve circular para não apodrecer. A avareza não tem o menor sentido. O dinheiro não tem o menor sentido se não é para fazer o bem aos outros, para ser distribuído com inteligência, justiça e amor.

 

Uma só palavra faz pensar. Sócrates, por exemplo, condenado à morte no primeiro escrutínio do seu julgamento, teve a chance de defender-se antes da segunda e definitiva votação. E voltando-se para os que o absolviam, exclamou: "Juízes..."; e para os que o condenavam: "Atenienses..." Pois só merece chamar-se juiz quem julga acertadamente.

 

A imagem do homem moderno como um navio superdotado, capacitado para longas viagens, com radares e armas poderosos, mas que não sabe para onde vai é, infelizmente, uma boa imagem. Mas podemos redescobrir o porto, com a ajuda de novos e antigos pensadores-poetas.

 

A palavra bem escolhida, renovada, funciona como um periscópio que nos ajuda a ver o que nos rodeia.

 

É a palavra iluminada, precisa, acertada, que nos dá as verdadeiras notícias da vida. News...

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 Notícias dos quatro cantos do mundo: North, East, West e South, autêntica orientação num momento de desnorteamento.

 

O homem moderno está, como expressa um neologismo francês, déboussolé, sem a sua bússola, sem saber o norte e o oriente, ainda que possa ler o jornal todos os dias e consultar mapas eletrônicos.

 

O homem (até mesmo o que se considera bem informado e... informatizado) precisa reaprender a olhar e interpretar as estrelas, as palavras sábias que, fixas no horizonte, são a condição do movimento.

 

O homem (até mesmo o que se considera um navegador privilegiado dos céus e da Internet) deve parar e ler um poema de Mario Quintana. Pedir socorro:

 

SOS

O poema é uma garrafa de náufrago jogada ao mar.
Quem a encontra
Salva-se a si mesmo(2)


1. 3a edição, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, pág. 175.

2. A cor do invisível. 4a edição, São Paulo, Globo, 1997, pág. 108.