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Entre Brocas e Beijos - dente

Notas de uma Odontopediatra

 

Adriana T. Grossi
Cirurgiã Dentista -Especialista em Odontopediatria

 

 

O editor de Videtur - inicialmente (um impaciente...) paciente e, hoje, um grande amigo - incumbiu-me da difícil missão de redigir estas notas sobre o que sente o profissional, diante da ansiedade, do receio e das expectativas do paciente ante a figura do cirurgião dentista.

 

Durante anos estigmatizados cruel e injustamente pela sociedade, somos talvez os prestadores de serviços mais evitados, embora extremamente necessários.

 

Quem um dia se importou em saber o que sente este profissional no exercício de sua função? Profissão que escolheu desde cedo e que exigiu dele anos de dedicação e estudo. E que requer também o desenvolvimento de uma capacidade de compreensão e empatia, que lhe permita avaliar o comportamento emocional de seus pacientes.

 

Para começar, há a preocupação, digamos assim, "social" do paciente, onde há, evidentemente, aspectos psicológicos e estéticos: o indivíduo chega muitas vezes ao consultório carregando um pesado fardo nas costas, onde vem escrito o velho chavão: "seu sorriso é seu cartão de visitas", e o descarrega sobre nós como quem diz: "Preciso de você. De você, depende que eu sorria naturalmente e conviva socialmente feliz".

 

Além disso, se sempre o cirurgião dentista deve saber reconhecer as variações de personalidade de seus pacientes, seus conflitos emocionais e suas fobias ao tratamento dentário, e se a relação profissional/paciente deve ser agradável, coordenada e simpática, tudo isto se potencia para nós que trabalhamos em odontopediatria...

 

A odontologia não é uma profissão estática, o dentista é também um artesão que - contrariamente a quem é meramente artista -, não tem total liberdade de criação, pois lida com o fator humano, que é divergente e delicado. Cada indivíduo é único e cada solução deve ser imediata. Em poucos momentos, anos de estudo se misturam em nossa cabeça em busca da melhor solução para cada caso, o que nos deixa apreensivos e concentrados a maior parte do tempo.

 

Tudo isso deve ser aliado à calma, ao profissionalismo, ao bom humor (especialmente na odontopediatria) e nunca (ou quase nunca...) deixar que fatos externos ou problemas particulares interfiram em nosso trabalho e em nossas atitudes. Como seria fácil e até confortável que, a partir do momento que se sentassem em nossas cadeiras, os pacientes se tornassem bocas, sem o conteúdo humano (carregado de expectativas...), ou, não custa fantasiar, se dissessem : - Deixo minha boca aqui e na semana que vem passo para retirá-la. Isto talvez nos tirasse parte da responsabilidade de estarmos lidando com pessoas, com vidas e com o encargo de cuidar da saúde e do bem-estar dessas pessoas. Lidar com esta expectativa e ansiedade é como prometer flores, se pudéssemos ter a garantia da chuva, pois cada organismo reage de uma maneira diversa.

 

E o pior... na ânsia de reduzir a monotonia daquele momento interminável, o dentista promove um exercício de "egocentrismo" onde tenta travar uma conversa com alguém que jaz à sua frente, de boca aberta, incomunicável, ao qual só resta escutar-nos e em cuja mente provavelmente esteja passando algo do tipo: -Tudo bem, mas... falta muito para acabar? Falo isto, acreditem, com a autoridade de alguém que também necessita, de vez em quando, sentar-se à cadeira deste profissional.

 

A odontopediatria é já um capítulo à parte. Além de suas diversas exigências específicas (que transcendem o âmbito meramente "técnico-profissional", pois para além das preocupações com a decoração adequada ou com o sabor da anestesia etc.) é necessário um exercício humano de profunda empatia para entabular carinhoso diálogo com a criança, que nem sequer pode responder. É preciso além de tudo o mais, administrar uma relação à três, pois mais difícil, por vezes, são as mães, que passam agora a dividir uma intimidade, até então só delas, com um "desconhecido".

 

Uma relação bonita e complicada: em suas primeiras visitas com seus filhos ao consultório, há mamães que vêm munidas de câmeras e máquinas fotográficas, sem querer perder nenhum detalhe de nada. Há também aquelas mais afoitas, as quais costumo denominar "papagaios de pirata", que, debruçadas sobre nós, questionam-nos sobre tudo, para terem certeza de que sua prole está nas melhores mãos. Já dizia um colega: - Se quisermos ter bons pacientes infantis, devemos educar os pais. Principalmente, no sentido de não passarem ansiedade para as crianças ("pode ficar tranqüilo que não vai doer, não vai sangrar, se você não chorar, ganha um presente... etc!"). E também não esperar que o problema se torne agudo na criança, para só então apresentá-la ao dentista. Sem falar dos pais que ameaçam as crianças com o dentista... Ou dos que falam na frente das crianças sobre seus próprios temores de ir ao dentista.

 

Uma vez resolvidos os problemas com os pais, devemos então conhecer melhor a criança com a qual vamos trabalhar. Assim poderemos entender o que podemos pedir a ela, como pedir e quais as possíveis reações e, principalmente , de que maneira isto a atingirá emocionalmente, pois é de memórias e de experiências vividas que construímos nosso comportamento frente a fatos já conhecidos e àqueles que nos são desconhecidos.

 

Trata-se, dizia, de qualidades humanas: o importante é gostar de desafios, gostar da criança, conquistar o carinho da criança (como se sabe, isto não pode ser adquirido "operacionalmente" nem há manuais que o ensinem e, além do mais, a criança sabe muito bem distinguir o carinho verdadeiro do falso: de quem só quer que ela fique quietinha e não atrapalhe o tratamento).

 

Muitas vezes a criança nos parece um enigma, ora incapaz de compreender o que queremos, ora totalmente compreensiva e sentindo-se na obrigação de discernir a maneira correta de comportar-se. Sua capa-cidade e limitação precisam ser reconhecidas, compreendidas e nunca menosprezadas. Em uma palavra: respeito! Assim, o melhor é estabelecer um "contrato ético" de trabalho com a criança: não mentir jamais, a criança gosta de saber que nós, dentistas, somos seres humanos iguais a eles, que temos nossos medos, incertezas etc.

 

A fórmula? "Amor, carinho, dedicação, paciência e conhecimento técnico-científico".

 

Diante deste breve raio-X de minha experiência profissional, espero que em seus retornos aos consultórios, possam encontrar meus colegas cientes de que eles não são indiferentes ao que se passa por dentro de vocês e que não existe nada de mecânico neste ato profissional tão gratificante. Tanto é assim, que não só há amigos que se tornam bons pacientes, mas também pacientes que se tornam grandes amigos.

 

Ilustrações do título:
http://dentistryforchildren.net/whatis.html e http://www.clark.net/pub/dentist/braces.html