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Trajetória da Fé - Dúvidas de Fé
- conclusão do ensaio

(parte inicial em Videtur 5) -

 

Romano Guardini
(Trad.: Sivar Hoeppner Ferreira)

 

Mostramos como a vida humana, forma um todo interdependente, no qual cada forma singular é conseqüência da precedente e a razão da subseqüente.

Com isso, os diversos períodos possuem o seu sentido não em si mesmos, mas no todo. Conexões transitam em tudo, em tudo as coisas continuam. A infância é o inicio, a juventude é seu desenvolvimento pleno, na idade madura a vida assume o seu poderio, a velhice vê as suas últimas conseqüências, para então terminar...

A vida, porém, possui um outro aspecto, tão verdadeiro como aqueles. Assim as diferentes idades da vida constituem formas fechadas, em si pequenas existências, por assim dizer.

Em si elas não surgem das precedentes mas o seu inicio é uma espécie de nascimento que precede uma morte. A infância morre realmente para que a juventude possa surgir e como é real a morte da juventude sabe-o aquele que se tornou maior. Cada vez é todo o ser que se acha em uma forma, apenas configurado por um determinado caráter. A força desta forma é grande, tão grande que se esforça por apoderar-se de toda a vida humana. Por vezes isto acontece realmente e surge o infantil, que nunca cresce, ou o homem eternamente juvenil e dissipado, ou então que até o fim permanece na agitação contínua da idade madura e nunca chega á tranqüilidade. Quando, porém, se pergunta qual destes elementos da existência é o mais importante a resposta só pode ser que ambos o são igualmente. O conjunto da vida consiste em que cada forma se realize vigorosamente. De outro modo cada uma destas formas conscientes apenas são autênticas quando se acham inseridas com justeza no todo. No devido tempo a pessoa se desprende e entra no espaço seguinte.

O homem sente como é dura a realidade interior e exterior. De inicio seu idealismo faz com que supere os insucessos; agora precisa admitir quão pouco ele alcançou; como é difícil modificar alguma coisa do seu próprio caráter e quão imutáveis são as condições da existência.

Assim a vontade idealista, que se apresenta como algo imaturo e quimérico, precisa triunfar nele até a perfeição e transformar o mundo a partir da fé.

Também desta crise surgem problemas de fé bem específicos. Apesar da diversidade dos casos, os detalhes parecem ter algo em comum: a pessoa que se torna mais velha começa a achar, ante a dureza da existência, o mundo da revelação como irreal e as suas exigências e metas utópicas. São as dúvidas do realismo.

Trata-se novamente de uma decisão: se a renovação geral da existência também se dará na direção da religião. O conteúdo de fé desvanece-se e transpõe-se um novo degrau da vida onde o modo de pensar é determinado pela realidade. Se se é bem sucedido, surge, então, a fé da pessoa adulta, da mulher e do homem. Isto é o que se pode chamar o caráter na fé. É aquela atitude de fé cujo conteúdo não está no entusiasmo ou na possibilidade infinita mas na firmeza face a realidade conhecendo as dificuldades, assumindo as responsabilidades construindo assim a fidelidade não pelo sentimento mas pelo caráter.

Esta forma também não é definitiva pois a vida continua. Se nos observarmos bem veremos que o sinal característico é a labuta diária, a luta constante contra a renitência da vida, cuja luta e esforço são de tal modo intensos que a força vital lentamente vai esmorecendo. O ímpeto interior já não flui como antes. A capacidade de renovação enfraquece. Os acontecimentos se repetem. A memória registra uma falha após a outra. Cada vez mais a vontade e a fidelidade substituem a segurança e a força criadora. É o tempo em que o trabalho e a responsabilidade se avolumam e é palpável um sobre-esforço contínuo. Cada vez mais a pessoa sente que é preciso suportar, persistir. Estreita-se o amplo horizonte que se descortinava da vida em ascensão. A imensidão como que desaparece. As reservas tornam-se menores. A pessoa vê o que é ainda possível. De tudo resulta um sentimento de cansaço, tédio, frustração...

Anuncia-se então o perigo de desconsiderar tudo o que ultrapassa a realidade mais próxima. Uma tendência para ver o dever a ser realizado diariamente como mais importante que o pensamento na eternidade. E o sentimento de que os filhos e, com a idade, os netos, os bens e o seu crescimento, as alegrias e os sofrimentos de cada dia – somente isso é que é importante. Este perigo age também na vida da fé e traz, visto de uma maneira geral, o perigo do ceticismo. Tudo o que há de relativo na vida cristã apresenta-se penetrante à consciência: o condicionamento da história e da vida social, a condição humana e mais-do-que-humana da Igreja, a falta de estrutura e a insuficiência das pessoas. O olhar vê tudo que há “por traz das cortinas” e uma ilusão cai após a outra. A resistência da natureza humana, tanto no seu próprio ser como nas circunstâncias gerais, gera um sentimento de fatalismo: “tudo é como é e os poderes, de que fala a fé, não podem mudar nada. O mundo pode mais do que a graça – se é que existe a graça e não se trata de uma experiência subjetiva. Poder, cálculo e astúcia podem mais do que a devoção.” Deus parece achar-se muito longe, irreal e impotente. A fé ameaça tornar-se sem sentido e simplesmente diminuir. De novo coloca-se uma decisão e uma transformação torna-se necessária: a da senectude.

Qual é então o significado da senectude?

Para melhor encontrá-lo pode-se partir do que, na etapa precedente era mais importante, ou seja a vivência da realidade. Com essa realidade acontece um coisa peculiar: sua dureza relaxa-se precisamente com a vivência do passado. Personalidades que na época pareciam insuportáveis, morrem. As pessoas que a circundavam desaparecem. Pais, mestres, antigos superiores em primeiro lugar; os contemporâneos os seguem: amigos, conhecidos da mocidade, companheiros de trabalho. A pessoa tem a sensação de que uma geração se acabou, a que o precede, e a sua própria começa a desfazer-se. Teve de interromper muitos empreendimentos, vê dissiparem-se muitas disposições. Assistiu ao fim de modas, atitudes intelectuais, maneiras de ver. Padrões de valor, figuras humanas, noções de certo e errado nas quais ele cresceu e nas quais acreditava, que simplesmente pertenciam à sua existência, perderam sua validade. É forte a impressão de estar vivendo a derrocada de um período histórico; não só de que a sua juventude coincidiu com o início do moderno, mas aquilo com que viveu a maior parte da sua vida, desagregou-se...

Em tudo a realidade é posta em dúvida. Não como pelo sentido de infinito da juventude, muito mais pela sensação de que esta realidade não seria tão real como antes lhe parecia, na época realista da idade madura. Com isto abre-se também uma dimensão nova. A dureza da realidade se esmaece no existente e no atual, enquanto que as formas isoladas se desarticulam o todo se apresenta à consciência. É como no outono, quando a folhagem se desprende das árvores, o espaço se amplia e tem-se o sentido da amplidão. A vontade pertence à realidade e mesmo esta se restringe ao que agora se pode procurar, fazer, conquistar ou dar forma. Com o correr dos anos o homem aprende a renunciar. A vontade começa a soltar-se. Ele abandona as coisas e o ânimo se volta para o todo, em especial para a existência.

Daí também surge uma decisão – pois a vida apresenta sempre novas decisões, pertencem mesmo à sua essência, que é ambígua. Sempre se pode ir para esquerda ou para a direita. A mesma sensação pode oscilar para o bom ou para o ruim. O mesmo valor pode causar fecundidade ou destruição. Assim também aqui. Aquela frouxidão da realidade, o desprendimento das coisas, a desimportância das questões, se uma coisa se faz assim ou assado, as decepções e renúncias acumuladas de uma longa vida, tudo isso pode significar simplesmente fim. A senectude torna-se então aquela época da existência a qual simplesmente se teme; a morte estendida por anos. Aquele todo, de que falamos, que ganha poder, torna-se algo desapiedado de toda a vida, que se afasta do isolado, para a indiferença da natureza que mata tão sem sentimento como da vida; pela brutalidade do ambiente que se sente incomodado pêlos velhos, pela crueldade dos jovens que se inserem na vida e exigem lugar...

Isso, porém, não é o verdadeiro sentido da senectude. Que a vontade se desapegue das coisas e dos deveres e ao mesmo tempo liberte as mãos – isto acontece apenas em uma dimensão, para que brilhe o verdadeiro e o último e ilumine o sentido da vida. Daí brota um nova, autêntica, forma de vida.

E também, em forma semelhante, da fé. O perigo em que se acha a senectude é de capitular ante a transitoriedade; não ter mais futuro e viver somente nas recordações; abandonar-se a uma existência que se torna vazia e agarrar-se ao acaso; ser ao mesmo tempo tirânico e fraco, tornar-se impotente e egoísta – estes perigos ameaçam igualmente a vida religiosa. Há um tipo de ceticismo que surge somente no idoso, o do cinismo da desesperança – ele se volta também contra a fé. É uma atitude onde a caducidade venceu. Nela governa o nada. A morte, do corpo e do coração, transforma-se em estado de espírito.

A isto se contrapõe a fé autêntica da senectude. Ela se desfez da segurança sonhadora da infância; renunciou às exigências infindas da juventude, viveu e viu a transitoriedade, como é fugidia a existência humana, como são duvidosas as coisas e as obras. Agora a vida, em perpétua mudança, toma uma nova direção. É a última e mais profunda que irrompe. A princípio parece ser propriamente ‘a vida’ que se expressa nas palavras risonhas ou dolorosas: “só se vive uma vez”. Por trás surge, porém, outra coisa: a eternidade. Atrás do mero Chegar-ao-Fim acha-se o Nada, o sombrio, vazio, horrível do qual o velho procura salvar-se agarrando-se ao mais próximo ou seja, a uma comida, a uma poltrona, a sua conta bancária ou a ser sempre ele a dizer em casa a última palavra. A eternidade é outra coisa. Diante dela acha-se a morte e ela própria é pura realidade, realização contínua. Todavia ela necessita ser sempre e continuamente alcançada com valentia e determinação. Se isso se dá, ela traz, então, á existência uma nova dimensão, uma nova tranqüilidade e santidade de novo gênero. Daí resulta a sabedoria; pois a sabedoria é o conhecimento de “como anda a vida”; isto porém só se sabe quando ela está perto do fim. Sabedoria é o conhecimento do fim – eis porque também não se pode aprendê-la mas adquiri-la por si mesmo através dos desatinos, através da amargura do seu próprio fim. Ela é o entendimento do isolado pelo todo; porém isto só se alcança quando o todo aparece, no seu termo. É o sentido do importante e do não importante; o sentido de medida; o conhecimento do que vale ao fim, para se alcançar quando é “muito tarde” no sentido de fazer diferente, mas ainda em tempo para arrepender-se, pedir perdão e deixar tudo nas mãos de Deus. Esta é também a fé da pessoa idosa. Sua atitude torna-se muito simples. Quase poder-se-ia falar em uma nova infância. O idoso infantil é a forma odiosa de algo que também pode ser muito belo: a segunda infância que, com a primeira tem em comum o sentimento de que tudo está de acordo, todos têm a mesma opinião, tudo vai sair bem. Esta fé é ampla, compreensiva, tolerante, plena de experiência. Ela possui humor. Coisa extraordinária é a alegria na crença pois traz todo o humano para a infinitude do amor de Deus, com suas insuficiências e singularidades; aspira a uma solução onde entendimento e atividade nada mais contemplem e um coração onde rigor e ardor tenham sido abandonados há muito...