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A Ciência e a Bioética

 

Rogério Lacaz-Ruiz
Professor de Metodologia Científica e
Microbiologia da FZEA/USP
e-mail roglruiz@usp.br

Fernanda C.P. Castro
Pós-Graduanda Esalq/USP
e-mail fcpcastr@carpa.ciagri.us.br

 

Existe um já quase ditado popular, que diz: o problema não é especializar, mas o especialista generalizar. A ciência se constitui enquanto tal definindo, delimitando seu objeto e, portanto, renunciando à consideração global de seus objetos. Cada ciência diz: "ocupo-me de tal aspecto e o resto não me interessa". Definição, determinação e delimitação são o que constitui propriamente cada ciência. Justamente por esta razão, existem várias ciências estudando por exemplo o homem; cada uma “recorta” o homem de forma diferente: Psicologia, Sociologia, Bioquímica, Antropologia, Medicina. A precisão da ciência (precisio = recorte) decorre precisamente dessa sua renúncia a tudo que esta fora de seu peculiar objeto.

Quando se pretende transformar o recorte em absoluto começam os problemas. Cada uma das ciências só vê uma parte, e a ciência bioquímica deixaria de sê-la se estudasse as interações sociais, passando a ser sociologia.

Mas do mesmo modo que as ciências recortam para ganhar em precisão e se estabelecerem como independentes, há saberes que não se sujeitam a qualquer tipo de recorte. Assim é a filosofia. Segundo Alfred Nord Whitehead (1861-1947) “Phylosophy asks the simple question: What is it all about?” Não que a filosofia seja encarada como a “compreensão do absoluto” como queria Hegel, mas no seu sentido original proposto por Platão, e lembrado por Pieper - de quem, aliás, procedem boa parte das idéias que recolhemos nesta comunicação: “ninguém é sábio senão Deus, mas o homem pode procurar amorosamente essa sabedoria e alcançar a verdade, portanto, ser philosophos”. O filósofo contempla a realidade na medida em que pode ser vista, sem se preocupar só com o princípio cartesiano do para quê, mas principalmente no por quê. Julián Marías diz “que a filosofia consiste em fazer as perguntas radicais, aquelas que afetam à própria realidade e que constituem condição para toda verdadeira compreensão”. E filosofar significa olhar o real, buscar a verdade; e esta tarefa é exigente. Muitas vezes é mais fácil abandonar a filosofia e buscar somente parte da realidade, o recorte científico, afinal de contas, isto é fazer ciência. Neste sentido, se entende a inquietante sentença de Julius Robert Oppenheimer (1904-1967), descrevendo a sensação dos cientistas que trabalhavam no Projeto Manhattan quando realmente surgiu a oportunidade de fazer a primeira bomba atômica: “From a technical point of view it was a sweet and lovely and beautyfull job”. (Os grifos são nossos.) Os que foram atingidos pela bomba atômica, talvez não achassem o mesmo que Oppenheimer. Assim é possível entender que somente o saber que busca o all about, a filosofia e os filósofos (e mesmo o cientista enquanto filósofo) podem avaliar as conseqüências das coisas sem recortes.

Um tema que aparece cada vez com maior freqüência na grande mídia é o da bioética. Muitos pesquisadores que militam nas áreas afins das ciências moleculares, animados pelos sucessos e benefícios indiscutíveis para o homem, começam a se sentir à vontade para propor metas para clonar animais num primeiro momento, para depois sonharem com o clone humano. Mas decisão de clonagem do ser humano foge do recorte da biologia, mesmo que seja um sweet and lovely job, para entrar no âmbito da filosofia que se pergunta: what is it all about?

Assim fica fácil entender a insegurança de tantos cientistas e médicos, tão habilmente explorada pela mídia, para falarem do tema. Afinal de contas, a ciência é campo mais seguro de discussões, mas o mesmo não se pode afirmar da filosofia. Se as regras do jogo da ciência são mais claras, se a busca da verdade é a postura básica, se a moeda comum pode ser resumida no provérbio o combinado não sai caro, é preciso conhecer as regras e jogar dentro delas.

Como nestes últimos séculos os cientistas descobriram tantas coisas que nos maravilham e nos fazem viver com maior dignidade como seres humanos, a palavra ciência impõe respeito. O cientista passou a ser admirado e a palavra da ciência confundida com a do cientista. Hoje em dia, a ciência é personificada como um deus, e deste modo, é comum escutar nos diferentes meios de comunicação, que a ciência resolverá este problema ou a ciência está preparando um próximo milênio melhor.

Uma pessoa se conhece quando assume o poder. Assim como a mídia, os cientistas têm consciência do seu poder. Desta forma, os cientistas podem cair no conhecido extremismo intelectual conhecido como cientismo, uma postura de só admitir como válido as proposições científicas.

Na apresentação dos Fundamentos da Bioética de Francesco Bellino, professor de bioética na Universidade de Bari, o autor nos recorda que, no passado, ciência, filosofia e ética estavam juntas e eram convergentes, mas a tecnociência colocou em crise a moral, por dissociar ciência e valores.

Muitos hoje acreditam que a “ciência” e os pesquisadores não podem sofrer restrições das autoridades para o seu desenvolvimento intelectual, bem como de suas pesquisas. Em função desta opinião, questionam a autoridade do Presidente dos Estados Unidos em proibir a clonagem do ser humano. A idéia defendida é a de que o ser humano pode clonar outro humano, e se isto não for bom, ele mesmo haverá de reconhecê-lo a posteriori. A reação dentro do próprio meio científico existe, e se manifesta com opiniões do tipo: - Você já imaginou estarmos conversando, e estar presente um clone seu? Qual seria sua reação? Nós os cientistas não somos deuses, e não precisamos criar Hitlers para depois ver que os criamos. E a réplica: - Mas quem somos nós, e quem tem autoridade para impedir algo que talvez seja o destino da ciência e da humanidade?(1) A discussão não terá fim, se não houver abertura, e humildade. Assim como duas crianças dificilmente poderão opinar algo sobre física nuclear, o cientista que não filosofe deve ser levado a observar os problemas à margem de seu “recorte”.

A ciência muitas vezes tem objetivos pontuais, e trabalha com técnicas que podem obter um produto final. E no caso de se clonar um ser humano, imaginam talvez que o produto será um ser humano simplesmente biológico, esquecendo sua infinita complexidade existencial. Os filósofos já definiram o homem como um ser que esquece. O cientista muitas vezes esquece que o ser humano é muito mais do que um conjunto de células altamente especializadas. É, segundo Boécio (sec.V), uma substância individual de natureza racional. Possui uma identidade, tem uma história, é gregário, nasce, vive e algum dia formará uma família.

O conceito de homem vem sofrendo nos últimos séculos um tipo de reducionismo, chegando a ser tratado como uma coisa, ou um simples número. E desta forma, com o ser humano reduzido a coisa, os fins justificam os meios para atingir este fim. Mas o homem é muito mais do que podemos imaginar. É a única criatura que possui liberdade, que não tem um protocolo rígido em seu ser, e na sua própria essência está impresso este valor. Um cientista que trabalha com biologia molecular quer, com razão, que as pessoas de outras áreas e até mesmo a sociedade que o sustenta respeitem os resultados de suas pesquisas. Mas ao propor a clonagem de um ser humano, o biologista molecular precisa ter a postura recíproca em relação aos cientistas de outras áreas: o que dizem a filosofia, a psicologia, a sociologia, a antropologia e tantas outras ciências? Se a regra do jogo, a moeda comum é a ciência, o resultado da busca da verdade de uma delas deve se levar em conta como aceitável e verdadeira. Não se pode esquecer que existe um ser pessoal e um ser social. Se alguém por mera satisfação intelectual pretende clonar seu semelhante para mostrar o potencial de seu ser individual (biológico ou intelectual), não pode esquecer que vive em sociedade e para tanto deve se questionar diante dela. Tenho o direito de exercer o meu potencial intelectual para construir algo que vá contra a sociedade? Para isto estão as leis, para isto é que servem os códigos de ética.

A aventura de achar que o socialmente aceito, ou as vigencias (para empregar a linguagem de Ortega) vale mais do que a filosofia tem conseqüências imprevisíveis. Deste ponto, para o aparecimento de uma nova forma de tirania moderna não existe grande distância. Pois, a partir do momento em que o homem é coisificado e os fins justificam os meios, só haverá tempo para lamentações a posteriori.

Sim, cada um sabe como cidadão, o custo da ciência. Basta lembrar dos impostos, e que uma parcela dele é aplicada para resolver os problemas sociais, e não criar problemas sociais. Conversar sobre assunto, é uma forma de resgatar o que está esquecido, de viver a cidadania, de evitar algo que acontece com freqüência: de nascermos originais, e terminarmos como uma cópia. Talvez pior do que isto, é já nascer uma cópia.

Muitos ainda recordam a novela escrita por Aldous Huxley Admirável mundo novo (1932). Pessoas coisificadas eram produzidas pelas autoridades. Mas se formos recordar, a expressão “admirável mundo novo” está em A tempestade (1611) de William Shakespeare (1564-1616), dentro de um contexto bastante diferente. Ela é uma afirmação de Miranda, filha de Próspero. A menina que dos três anos de idade até os 15 só conhecia as figuras do amargo pai e do escravo Caliban numa ilha do Mediterrâneo, é apresentada aos inimigos de seu pai. E então ela afirma: Como é bela a humanidade! Ó admirável mundo novo em que vivem tais pessoas! O pai, Próspero, conhecendo as maquinações interiores dos seres humanos, sabe que o mundo novo proclamado pela filha, é velho, e assim é difícil admirá-lo. Por este motivo responde à filha: - É novo para ti. Como vemos, a história nos mostra também, a grandeza e a miséria humana, as ambições e decepções. É preciso enxergar, e agradecer os avanços das ciências, mas não se iludir com eles. O homem sempre será mais que a ciência, e as ciências moleculares ferramentas de trabalho. A obsessão pode ser considerada uma doença. Quando o cientista esta obcecado por algo, isto pode ser bom ou ruim, dependendo dos fins e dos meios que empregará para atingir este fim; mas se o fim já é anunciado por outras ciências como algo ruim, é preciso ter a humildade de reconhecer, que há muito mais coisas, entre o céu e a terra, do que sonha a sua vã filosofia...

O que está em jogo é uma nova concepção do que significa ser-humano e de sua dignidade. Uma substituição da consciência ética por outra denominada consciência técnica, levaria a uma perda do que se é em sua essência, para ser algo (im)previsível, com critérios humanos, limitados e sujeitos ao erro.

Outro conceito que está em jogo é o da finalidade. Se para a biologia a descoberta das funções, é o objetivo da própria ciência biológica; para a filosofia, o ponto de vista de finalidade diz que “todo ser age tendo em vista um fim” ou “toda atividade está determinada pela natureza deste ser”. E a finalidade do ser humano é a felicidade. Todo ser humano busca a felicidade, e privar a priori alguns direitos do possível ser humano clonado é comprometer sua felicidade. Se este é um aspecto negativo (privar) pode-se imaginar em “induzir características desejáveis”, como atitude positiva, e ai cabe a pergunta filosófica: por quê? Que direito tem alguém de produzir clones humanos, e com que finalidade? Todo avanço que reforce o ser humano segundo a sua natureza e sua finalidade, sempre será visto com bons olhos, mas para um ato humano ser bom, é necessário que o fim seja bom, e que os meios para atingir este fim, também o sejam.

O homem é uma criatura composta de corpo e alma. Não é só corpo, nem só alma.

Alguns acreditam que as discussões entre pessoas as afastam, e podem deixar seqüelas graves, mas isto só ocorre quando não se distingue as pessoas das idéias. Saber da dignidade da pessoa humana, leva a respeitá-la sempre como pessoa, e que desta forma é possível se chegar a verdade dentro dos parâmetros da ciência e da ética.

 


(1). Esta postura bastante difundida, tem suas raízes. No passado a moral buscava a harmonia com a natureza, mas desde que a Terra “deixou” de ser considerada o centro do universo, e de que Darwin “destronou” o homem do centro da criação, e Freud “volatilizou” a consciência humana, o protagonismo humano já não existe, e tudo que ocorre passou a ser obra do acaso, ninguém é responsável por nada. É em resumo a coisificação do ser humano. Os conceitos de natureza e particularmente natureza do ser humano estão sendo substituídos por uma “coisa humana” que é ao mesmo tempo sujeito e objeto, causa e efeito.