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Aeronautas, Profissão:
Ar, Fogo, Terra e Mar...

 

Jennifer Lou Crawford
Cmra. de Bordo - Varig

 

A aviação, tal como o mercado financeiro, é imprevisível!

Nossa profissão, a do grupo de vôo, é vista popularmente pela ótica mítica: quem não gosta de viajar? Na verdade, acho que só os tripulantes...

É difícil para quem é de fora entender quando um tripulante diz que prefere ficar em casa de folga em vez de ir para Los Angeles, Roma ou Frankfurt.

É simples: quem acha isso um absurdo é porque nunca foi para um desses lugares ou foi de passageiro; nós, os tripulantes, levamos o vôo, trabalhamos e estamos a bordo para que os “senhores passageiros” viajem com segurança, conforto e despreocupação... Precisamente este empenho estressa nosso lado psicológico, pois apesar de parecermos tranqüilos, em nosso íntimo estamos tensos. Só relaxamos quando o vôo retorna, trazendo-nos de volta para casa, pois a tensão continua nos hotéis – em maior ou menor grau, dependendo de onde estamos pernoitando -, em alguns lugares precisamos estar atentos aos alarmes e cientes de nossa localização, direção e, principalmente, a quantos passos estamos da escada de incêndio, caso dispare o alarme por denúncia de bomba (como já me aconteceu em Madri ou Buenos Aires), incêndio (Londres ou Los Angeles), ou quando sentimos a terra tremer e necessitamos nos proteger sob uma viga (ainda no meu caso, México e Japão).

O fetiche também está embutido na aviação. Mas a aviação é mais do que viagem e fetiche, a aviação é uma Universidade nas relações humanas, pois, temos ao redor em cada vôo pessoas diferentes, tanto os próprios tripulantes como os passageiros.

Os passageiros são de todas as partes do mundo, cada qual com seus costumes, idiomas, fusos e vírus.

Todo tripulante passa por três fases na aviação, a primeira é o deslumbre das viagens, lugares diferentes, bons hotéis, passeios...; a segunda é quando começa a dar dicas de bons restaurantes, lugares onde se compra mais barato, descontos aqui e ali etc.; a terceira é a “fase da farmácia”, toda vez que chega no lugar de destino a primeira pergunta para o recepcionista do hotel é: “onde fica a farmácia mais próxima?”.

Aprendemos na aviação a explorar nossa “intuição”, a hora do embarque, por exemplo, conforme o “bom dia” (“tarde” ou “noite”) do passageiro recepcionado conseguimos antever os prováveis aborrecimentos que poderão acontecer durante o vôo, na maioria das vezes consegue-se reverter o humor daquele passageiro que poderia vir a ser o “mala” e, no final do vôo, ele se despede sorrindo.

O ser humano tem medo de tudo sobre o que não exerce domínio e a forma de demonstração desse medo é chamando atenção sobre si, falando alto, solicitando bebida alcoólica logo no embarque, sudorese excessiva, mau humor, etc.

Mesmo sem sermos jogadores de futebol temos de estar preparados para driblar situações que nos são impostas através do jogo de cintura, imediatismo, criatividade e bom senso. Com a mistura de idiomas diferentes por causa dos passageiros e dos lugares por onde os aviões nos levam, também o convívio com os colegas contratados de diversas regiões do país, cria-se um sotaque próprio que nos diferencia, causando curiosidade nas pessoas que encontramos e que freqüentemente perguntam: “de onde você é?”.

Existe também na aviação um linguajar específico, misturam-se termos técnicos, gírias, somam-se palavras de origem desconhecida, enfim, quem escuta um grupo de tripulantes falando provavelmente entende a conversa pela metade ou não entende nada. Por exemplo:

“Vou arremeter o cinema porque o aqüé não saiu” (não vou ao cinema porque não saiu o pagamento).

“Deram a Elza na minha caneta” (sumiram).

“Pega a bailarina na galley, por favor” (sacarrolha).

“Que vôo uó!” (chato).

“Ih! coió logo de manhã cedo?” (bronca).

“Guarda a mala no sarcófago” (alojamento com beliches para os técnicos, em geral mais velhos...).

Na aviação temos a oportunidade de assistir a um musical em sua estréia na Broadway numa semana e na próxima estarmos no outro lado do Atlântico saboreando o melhor bacalhau regado a um excelente vinho verde no Porto ou cercados dos melhores chocolates do mundo na Suíça.

Esse acesso fácil de estarmos “in loco” em diferentes lugares, participando do quotidiano nos vários cantos do mundo faz com que desenvolvamos naturalmente um “controle de qualidade” não só no que se refere ao paladar, vestuário, ou no meio cultural; adquirimos os mais variados hábitos de “refinamento”.

Também na aviação passamos a prestar atenção nas pessoas, as diferenças em seus costumes e educação, o abominável “oba oba” dos grupos brasileiros em férias (embora a tripulação mantenha a imperturbabilidade que a postura profissional exige, nas conversas descontraídas fora do serviço, esse “oba oba” é campeão de aversão entre os colegas: só perde para times de futebol e suas comitivas e grupos de políticos), a tradição imperial do japoneses (que unem a simplicidade à uma requintada educação : considerados os melhores pax do mundo), a auto-suficiência desses argentinos bem arrumados e com muito gel no cabelo (parece piada mas já ouvi em vôo o seguinte: "no es que quiera molestar señorita, pero necesito dos almohadas más, una frasada, una aspirina, um vaso de água etc.“, não só a AFA (Associação dos Fofoqueiros de Aeroportos, nacional), mas a entidade correspondente em nível mundial, unanimemente conferiu-lhes o Oscar na categoria “uó”), o carinho fraterno dos mexicanos e por aí vai-se percebendo a característica forte de cada povo.

Quando escolhi essa profissão “no ar” não sabia que além de uma opção profissional eu estava fazendo principalmente uma opção de vida.

Opção de vida, que para muitos é considerada “maluca” (no bom sentido, é claro!), pois nossa vida não está inserida no trabalho diário, semanal constituído por turnos e tudo que foge à qualquer convenção é considerado anormal, maluco, mas garanto que nós tripulantes somos normalíssimos se não fôssemos não nos exporíamos à 10.000 m à uma velocidade de 900 km por hora em uma cabine pressurizada à uma temperatura artificial com baixa umidade respirando 50% de oxigênio mais ar rarefeito ...

Bom, é isso, fico por aqui porque chegou a hora ... retoco o batom, escuto o som do zíper fechando a saia e este é o sinal, estou pronta para mais uma travessia, um último telefonema e saio ...