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A Oficina Cultural da Idade Média

(- resenha de "Cultura e Educação da Idade Média" de L. Jean Lauand, São Paulo, Martins Fontes, 1998)

 

Mario Bruno Sproviero

 

A secular depreciação da Idade Média, perpassando por toda a já caducante modernidade-e-pós-modernidade, nada mais é do que a fixação de um negativo do qual não se quer revelar a foto.

Apesar da inegável ruptura histórica que justifica a separação dessas duas épocas, não se deve desconceituar a continuidade. A ruptura que traz consigo a Idade Moderna, é marcada pelo divórcio entre razão e fé (filosofia e teologia). A entusiasta revalidação da herança greco-romana pelo Renascimento alterou a relação do homem com Deus, com a natureza e com a cultura. A Reforma, então, e as conseqüentes guerras religiosas - uma espécie de guerra "civil" no interior da Cristandade - acabou por destruir a unidade do mundo cristão, já abalada pelo Cisma do Oriente. No lugar da res publica cristã surge o sistema estatal europeu, propenso hoje a uma nova res publica, porém não cristã.

A continuidade entre as duas idades dá-se na fermentação que é a Idade Média, esse grande tempo de preparação, de processo civilizador, tempo de semeadura, sem o qual não teria sido consumado o Ocidente, síntese das culturas grega, romana e judaico-cristã. Como contrapartida, basta verificar a ancilose do mundo grego, sempre sobrepondo seu legado clássico ao cristão.

Houve, como é sabido, muitas tentativas de retomada do espírito medieval. O mais belo clamor de reanimação foi proferido pelo poeta-filósofo romântico Novalis, em seu fragmento de 1799: "Die Christenheit oder Europa" - "A Cristandade ou a Europa (!) -, que principia assim: "Belos, esplêndidos tempos: Europa era terra cristã e a Cristandade habitava una este recanto de mundo humanamente configurado..." (Es waren schöne glänzende Zeit, wo Europa ein christliches Land war, wo Eine Christenheit diesen menschlich gestalteten Weltteil bewohnte...). Acrescentaria, nesse momento romântico, que a Idade Moderna teria sido mais resplendentemente una, sem a ruptura.

Oportuna então uma obra que nos revele, em seu operar de laboratório, a cultura e educação medievais: são "vinte textos medievais, vinte encontros com a educação, o teatro, a filosofia, a teologia e a cultura popular da época".

O melhor do patrimônio medieval é sem dúvida a obra de Santo Tomás de Aquino, verdadeira síntese. No entanto, para alcançar essa síntese e depreender seu valor e verdade, é preciso um melhor conhecimento da cultura que lhe deu expressão. O contexto histórico-cultural deve ser estudado (é a verdade do historicismo) não porém para relativizar a verdade (é a falsidade do historicismo), mas para garimpá-la da cultura... Se realmente se tratar da verdade, essa verdade transcenderá tal tempo: daí seu caráter histórico. É histórico não o que passou com seu tempo, mas o que sobrevive a ele: o passado que não passa!

Através pois dessa publicação, poderemos visitar a oficina cultural medieval. Assim, apresenta Jean Lauand, especialista na matéria, o conteúdo do livro: "Os textos que apresentamos são uma amostra de diversos aspectos - tanto de alteridade como de proximidade em relação a nós - da cultura e da educação medievais que, como se sabe, estão centradas na religião. Já de início, o sermão como momento pedagógico privilegiado na cidade (Agostinho) e no campo (Cesário de Arles). O sermão de Agostinho "Sobre o saque de Roma" marca o fim da Antigüidade e o início de novos tempos: a Idade Média. As "Sentenças de Catão" indicam um referencial moral para o homem da época. A seguir, apresenta-se o relacionamento do homem medieval com a linguagem: a extrema atenção às etimologias (Isidoro de Sevilha) e ao significado dos nomes (Jerônimo). Com Boécio surge radicalmente o projeto escolástico: a razão investigando a fé. A memória como centro do trabalho educativo é auxiliada pela poesia (Rusticus Helpidus) e por Sentenças de sabedoria (Defensor), formação adequada à 'grande aprendizagem' que é a Idade Média. O caráter pedagógico dos contos e a encantadora ingenuidade do teatro medieval são, entre outros, alguns temas contemplados neste volume. De Tomás de Aquino, o principal pensador da época, recolhem-se o Tratado do Bom Humor e outros estudos pedagógicos e teológicos. Como dizíamos, nestes textos encontramos os valores da época: alguns inseparáveis da cosmovisão medieval; outros, atemporais. Em qualquer caso, o Outro medieval apresenta-se para nós como um sugestivo interlocutor, sobretudo no campo da educação informal".

Brilhante o estudo sobre Jerônimo e os nomes bíblicos. Com grande perícia pedagógica, aproxima o autor os temas medievais a exemplos de nossa cultura brasileira viva: "E quanto aos nomes próprios, lembremos duas canções de Chico Buarque nas quais o relato está, por assim dizer, concatenado com o nome: 'Pedro pedreiro, penseiro esperando o trem (...) que já vem, que já vem...'. Ora, também costuma ocorrer na Bíblia essa vinculação do nome ao papel do personagem...". Bastante ricas as análises lingüísticas do autor - professor do Centro de Estudos Árabes da USP - das línguas semitas.

Preciosa a escolha de uma carta de S. Tomás que trata do modo de estudar. O estudo é atividade própria do intelecto agens; o saber, seu resultado, é o conteúdo do intelecto patiens. Na listagem de conselhos práticos para o estudante, Tomás destaca: "Evita sobretudo a dispersão intelectual", tão simples e tão impossível de seguir em nossos dias. Lembro que para Kant a simples leitura do jornal da manhã é incompatível com a reflexão do espírito.

A seleção de textos é bastante ampla e representativa, preenchendo - entre outras - a lacuna de originais do teatro medieval entre nós. Uma seleção pautada pelo senso de humor e pelo apreço por manifestações populares de cultura. O autor parece ter privilegiado textos completos o que explica algumas ausências (eu, particularmente, teria incluído, por exemplo, os dois Petrus: Petrus Lombardus, o mestre das sentenças e o português de Lisboa Petrus Hispanus -papa João XXI) e a obra ficaria enriquecida se apresentasse índices remissivos.

"Cultura e Educação na Idade Média" deve ser recomendado para todos os que quiserem se aprofundar nos fundamentos da cultura ocidental, hoje ameaçada precisamente de desenraizamento por uma globalização que se perfaz por uma revolução planetária da tecnologia, à margem dos fundamentos civilizadores do Ocidente.