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5. A problemática da Justiça Militar


          O relatório explica muito bem o tema, mas cabem duas ressalvas. Primeiro, que o Tribunal de Justiça Militar não é tribunal de exceção como se coloca no relatório. Tribunal de Exceção é aquele constituído "post factum" para julgamento de um fato específico, de uma pessoa específica. O Tribunal de Justiça Militar Estadual é constituído por lei regulamentar, e para todos os fatos e todos aqueles que se enquadrem em sua especificidade. Se considerássemos um foro privilegiado como juízo de exceção, teríamos que usar o mesmo raciocínio para os Presidentes da República, da Câmara e do Senado.

          Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça Militar possui uma organização interna que busca uma justiça mais perfeita. Sua filosofia é semelhante à do Tribunal do Júri, onde o civil é julgado por seus iguais; como já demonstramos o policial militar sustenta uma série de deveres e gravames que o tornam alguém com uma conduta pautada por sentimentos diversos dos do civil. Por este motivo, deve ser julgado por pessoas imbuídas dos mesmo sentimentos, a fim de que possam avaliar um delito cometido dentro do contexto em que foi cometido.

          Quanto às alegações de que o TJM é parcial, corporativista, instrumento da impunidade, há que se questionar. Os fatos devem ser sempre avaliados conforme sua época para que não se converta em traidor, um herói nacional. Certamente houve uma época em que alguns fatos foram considerados com maior brandura, mas igualmente havia uma filosofia diversa da atual reinando em todos os escalões da Administração Pública. A Polícia Militar e a Justiça Militar nunca foram causadoras destas filosofias - difundidas por homens que hoje, por vezes, militam na área de direitos humanos -, mas meros reflexos. Atualmente, pelo que sabemos, a Justiça Militar é por vezes mais rigorosa que a Justiça Comum, e que muitos casos de crimes contra a vida, absolvidos no Tribunal do Júri, teriam condenação na Justiça Militar.

 

6. Polícia Militar: a realidade dos ‘Homens da Lei’.


          Com um contingente tão numeroso - mais de setenta mil integrantes - a Polícia Militar do Estado de São Paulo consegue estar presente em todo o território do Estado. Desempenha inúmeras atividades dentre as quais pode-se destacar como mais significativas: Policiamento Preventivo Ostensivo Fardado, visando sua atividade primeira, a preservação da ordem pública; atividades de Defesa Civil desempenhada pelo Corpo de Bombeiros, órgão da PMESP; Policiamento de Trânsito; Policiamento Florestal e de Mananciais, forte agente de preservação do Meio Ambiente, diretamente relacionado com os Direitos Humanos; Policiamento Montado, realizado pelo Regimento de Cavalaria 9 de Julho; Controle de Distúrbios Civis através das tropas de choque; Rádio Patrulhamento Aéreo com apoio de oito helicópteros, etc.

          Para o controle disciplinar e administrativo de tantos homens e mulheres, a PMESP está estrategicamente dividida de tal sorte que cada grupo de trinta ou quarenta policiais esteja sob comando de um oficial; este por sua vez, com outros oficiais - normalmente Tenentes - estão sob comando de um Capitão, e assim sucessivamente até o nível de Coronel. Os oficiais são formados atualmente pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco, em um curso de quatro anos em período integral, onde recebem forte carga de formação jurídica, bem como uma ampla gama de informações sócio-culturais voltadas ao desempenho das funções de comando, no trato com civis, superiores e subordinados. Poderíamos destacar matérias como Sociologia, Deontologia, Comunicação Social e , mais recentemente, a cadeira de Direitos Humanos.

          Realmente ser policial, não é algo simples. O policial militar é um homem público; está em contato com todos os estamentos sociais, e nas mais variadas situações. Num mesmo dia tratará o homem da honestidade mais ilibada e o assassino ou traficante de drogas. Deverá ter para com aquele um "modus operandi" e um linguajar completamente distinto do que terá com este. Estará exposto, numa fração de segundos, a situações que poderão custar-lhe a vida. Em razão de seu trabalho profissional, o policial militar está à vista de todos, sejam cidadãos de bem, sejam mal-feitores. Uns o verão como um defensor, outros como inimigo. Estes últimos, entretanto agem sempre às escondidas, e não são identificáveis por uniformes ou dísticos como os homens e mulheres da Polícia Militar.

          Não tardará que ocorram circunstâncias em que o policial militar - que é um trabalhador como qualquer outro, que geralmente possui família, e via de regra é um homem de honestidade inquestionável -, ver-se-á no limite do legal, na estreita linha divisória que o separa do mundo do crime. Poderá ocorrer que se corrompa porque talvez não tenha motivação suficiente para permanecer irrepreensível; talvez, faltar-lhe-á formação humana e profissional suficiente para reconhecer a ilegalidade do seu ato. Poderá pensar no seu baixo salário, nas necessidades de sua família - talvez aquele filho que deseja cursar uma faculdade, ou aquela viagem de fim de ano que prometeu há anos, ou, ainda, o que é mais grave, o local onde mora que pode ser uma favela -, poderá pensar que mereceria ganhar mais pelo que faz, etc...

          Entretanto, muitos não reagem assim. Na imensa maioria não cederão, não compactuarão com o crime... e então ficarão marcados. Os marginais não costumam distinguir o homem de sua profissão, nem o policial de sua família. Muitas vezes, ameaçado de morte, e após recorrer a muitos meios sem sucesso, aquele homem honesto poderá ver-se tentado a fazer justiça com as próprias mãos... e então, fria e descaradamente, irá integrar as estatísticas do Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

          Não é simples ser policial. Os Direitos Humanos não valem para ele. Valem para os pobres, os negros, os ricos, os brancos, os índios. Valem para os marginais, os indiciados, os condenados, os criminosos (nada mais justo pois são todos iguais, todos homens e mulheres sujeitos de direitos), mas são as vítimas; o vilão é o policial. Para ele, só obrigações. Onde estão as abordagens da condição em que o Governo Estadual obriga seus policiais militares a trabalhar? Fornecem-se viaturas, fardas novas, mas o homem - que trata-se do elemento mais fundamental da atividade policial - é sucateado. Seu salário é vergonhoso, sua formação é elementar - não por culpa da Polícia Militar que não busca votos em eleições -, seus equipamentos obsoletos ou defeituosos, a legislação não o resguarda; ele é sempre o vilão, a presunção de veracidade dos atos administrativos, ne-le é questionada; a opinião pública, graças àquela propaganda fortemente ideológica e parcial, está contra ele. Quando age correta e até heroicamente, disso nem sequer se faz menção - pensa-se: "cumpriu com sua obrigação; para isto é pago".

          Com tão irrisórios salários, primeiro só buscam a profissão aqueles que não possuem muita qualificação - conseqüentemente a seleção é insatisfatória para os anseios da sociedade -; segundo, a grande maioria dos policiais vê-se obrigada a buscar uma atividade extra-corporação, o famoso "bico". Com uma má seleção, não se pode exigir que estes homens compreendam conceitos muitos elevados de cidadania nem que ajam com completa isenção diante de fatos criminosos que abalam e revoltam até os mais esclarecidos. Já a atividade extra-corporação acarreta sérias conseqüências tanto a nível profissional, como em termos pessoais.

          Profissionalmente o chamado ‘bico’, sendo exercido nas horas de folga, leva o policial ao "stress" físico e mental em pouco tempo. Muitas vezes trabalhando durante toda a noite na PM, policiais deixam o necessário repouso para trabalharem fora durante o dia, o que traz como conse-qüência que venha a dormir durante seu serviço, seja na PM seja no ‘bico’. Os que trabalham de manhã vivem o mesmo regime, apenas invertendo-se os horários. Neste dia-a-dia, muitos são vitimados nas ações por estarem fisicamente pouco dispostos.

          Ainda no campo profissional, ocorre que por vezes, o "bico" paga mais que o Governo, o que leva o policial a ser mais pontual e melhor cumpridor do seu dever fora da corporação, passando, em pouco tempo, a desprezar sua profissão principal. Com este sentimento acaba por ser um profissional tendente ao relaxo, ao pouco caso, à ausência de empenho.

          O "bico", é voraz, implacável; não concede folgas, não dá garantias, pode fazer do PM um mercenário. Logo o policial pode passar a ver a PM como "bico", e o "bico" como profissão. É no "bico" que muitos morrem, já que esta atividade, via de regra, constitui-se em segurança patrimonial ou pessoal; é no "bico" que surgem as corrupções, as inversões de papéis, sendo freqüente que o superior hierárquico seja comandado por seu subordinado.

          A vida pessoal do policial, também aí encontra sua ruína. Com pouco tempo para a família - já que nas horas de folga está trabalhando -, massacrado por um "stress" desumano, estará exposto a vícios de bebidas e drogas. O número de divórcios na PM é grande, mesmo assustador; os suicídios também ocorrem, mas não com tanta freqüência. A causa não é o regime militar como querem alguns, mas o baixo salário que leva o homem a buscar seu sustento fora da Corporação.

          Vemos que - como sempre aliás - ataca-se a PM por fatos dos quais ela é a primeira vítima. O Estado é o primeiro responsável pela pés-sima distribuição de rendas no país, pela insuportável concentração humana nos grandes centros, e pelas conseqüências claras destas omissões. Aí nascem as favelas, as crianças de rua, os inúmeros vícios, os crimes. A Polícia Militar sofre implacavelmente todos esses efeitos, pois como já dissemos, está visceralmente ligada a eles. Igualmente, é o próprio Estado que coloca o PM no interior de uma favela para perseguir traficantes armados até os dentes, com apenas um revólver nas mãos. Nesta circunstância a violação de direitos humanos é eminente já que o PM tem que cumprir seu dever e ao mesmo tempo defender sua vida.

 

7. Iniciativas em Prol da Cidadania.


          Não farei eco aqui de inúmeras operações e projetos, como a ‘Operação Polo’ e o ‘Rádio Patrulhamento Padrão’, que apesar de constituírem verdadeiras estratégia milimetricamente calculadas de combate ao crime, organizadas por cabeças ilustres do oficialato da Corporação Paulista, não atingiram seus objetivos graças a manobras politiqueiras de governadores que visavam seus interesses particulares. Cito apenas as atuais que procuram caminhar apesar de toda força contrária que enfrentam:

a) Visando fiscalizar melhor e promover o fiel cumprimento das disposições legais, foram instalados em todas as unidades da Corporação "Plantões de Polícia Judiciária Militar", compostos por equipes especialmente treinados nos procedimentos de Inquéritos Policiais Militares e Sindicâncias (contam com mais de cinco anos); estes PPJM(s) estão diretamente ligados à Corregedoria do Polícia Militar;

b) foi instituído um programa de reabilitação e acompanhamento de policiais que deram atendimento a ocorrências de resistência seguida de morte (conta com mais de quatro anos);

c) A cadeira de Direitos Humanos foi integrada em todos os cursos de formação e aperfeiçoamento da PMESP;

d) O atual Comandante Geral instituiu oficialmente o plano de Polícia Comunitária, visando aproximar o policial da comunidade onde exerce suas atividades, de tal sorte que o civil conheça cada policial que patrulha sua área;

e) foi editada para toda a corporação uma ‘Cartilha de Relações Públicas’, visando conscientizar o policial de uma série de atitudes que deve adotar perante a população;

f) igualmente editou-se um ‘Manual de Cidadania’, distribuído a toda a Corporação que visa relembrar os conceitos de direitos humanos, cidadania, garantias constitucionais, limites legais, etc. , tão debatidos na formação dos policiais.

          As atitudes do comando da PMESP não resolvem o problema; faltam fatores externos que não dependem da Corporação, e que já foram explanados. Acredito que este artigo já pôde acrescentar alguns dados omitidos no relatório.

          Ser policial militar é um meio de vida, e não de morte, de martírio. Não obstante estar atualmente há quatro anos sem um reajuste significativo de salários, a PMESP persiste no cumprimento fiel do seu dever, dando mostras de que realmente é uma "Legião de Idealistas", como reza seu hino institucional. Humildemente tem aceitado seus críticos mais exaltados; e fazendo calado silêncio por seus heróis de hoje e ontem, procura promover medidas que, dentro de suas competências, possam amenizar uma situação tão crítica.

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