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Para que Serve a Teoria do Direito? [1]

 

Júlio Aguiar de Oliveira**

 

Quero inicialmente cumprimentar o professor Mário Lúcio Quintão e o público presente, com os quais divido o prazer do diálogo desta noite. Ao longo de toda esta semana, temos um encontro com a Teoria do Direito. Ontem nós ouvimos a professora Flaviane Pellegrini e o professor Alexandre Travessoni, hoje estou aqui com o professor Mário Lúcio e, até sexta-feira, teremos a oportunidade de conhecer as idéias de um grupo significativo de professores de Direito da PUC Minas.

Considerando o fato do tema deste seminário, a questão: “Para que serve a Teoria do Direito”, ser um e o mesmo para todos os palestrantes, acho que seria recomendável, a fim de evitar o enfado de muitas repetições, a opção por um enfoque o mais pessoal possível. O que pretendo desenvolver aqui, portanto, é a minha tentativa de resposta para a questão proposta. Não me preocupo, porém, em buscar apresentar uma resposta na qual a questão seja tratada de múltiplas perspectivas, nem em apresentar uma fundamentação minuciosamente desenvolvida. Muito pelo contrário. Pretendo mesmo que minha resposta seja a mais desafiadora e a menos fundamentada possível, para que, no espírito desse nosso encontro, ela funcione, se funcionar, como um ponto de partida e não como ponto de chegada.

Parece-me correto dizer-lhes que me considero uma das pessoas menos qualificadas para responder para que serve a Teoria do Direito. Isso por uma razão muito simples. Eu gosto muito de Teoria do Direito. Se não fosse pela Teoria do Direito, com qual tive a oportunidade de me envolver ainda no começo da graduação como participante do primeiro Programa de Aprimoramento Discente da Faculdade de Direito da UFMG, é bem possível que tivesse abandonado a Faculdade de Direito, que, naquele tempo, via-se desprovida de disciplinas estritamente teóricas já a partir do terceiro período. Portanto, eu gosto de Teoria do Direito e, normalmente, a gente não se pergunta pela utilidade daquilo que gosta. Pelo contrário. Até a própria formulação da pergunta soa como uma indiscrição, buscar respondê-la, então, soa algo indesculpável. Tão mais indesculpável quanto melhor a resposta.

Permitam-me ilustrar esse ponto. Na semana passada, pensando no que deveria lhes dizer aqui hoje, fiz a pergunta tema deste seminário para um grande amigo meu, o professor Eduardo Goulart Pimenta. Ele, que é professor de Direito Comercial, aqui na PUC Minas, na Graduação e na Pós-Graduação, respondeu-me de forma lapidar, de forma brilhante. Falou de improviso, na hora, mas era como se estivesse lendo os primeiros parágrafos de um belo tratado de Direito Comercial – uma obra que não demora ele escreve. Resumindo, o professor Eduardo falou da importância fundamental da Teoria do Direito na realização do Direito, na maneira pela qual ela dá sentido e ordem às normas e aos princípios do Direito. Falou da necessidade da Teoria do Direito como fonte de coerência do discurso dogmático e, enfim, como instrumento indispensável para o conhecimento do Direito.

Não sei se consegui resumir a resposta do Eduardo de forma a conservar todas as suas qualidades. Se não, peço-lhes que acreditem em mim: foi, realmente, uma excelente resposta. O que, como já lhes disse, deixou-me quase ofendido. Pensei comigo: petulância a do Eduardo de querer saber para que serve a Teoria do Direito, de querer fazer da Teoria do Direito uma auxiliar da dogmática jurídica (embora uma auxiliar importante).

Ora, diante da pergunta pela serventia de algo de que se gosta muito, a única resposta que se considera aceitável é a que afirma o pleno reconhecimento da dignidade da coisa em si mesma. É bem possível que, intimamente, tivesse ficado bem mais satisfeito se o Eduardo respondesse à questão com um provocador: “não serve para nada”.

Essa sentimental resistência à aceitação de uma justificação de natureza utilitária da Teoria do Direito merece um exame um pouco mais aprofundado. Convém lembrarmo-nos, neste momento, da distinção feita aqui ontem pelo professor Alexandre Travessoni. Há, segundo ele, duas visões possíveis da Teoria do Direito. Uma visão “purista”, que nos remete imediatamente à filosofia pré-moderna (aos gregos, antes de tudo), pela qual o fim do conhecimento é o próprio conhecimento, e uma visão “utilitarista”, que nos remete à modernidade, na qual o conhecimento é um meio para algum outro fim (TRAVESSONI GOMES, 2005).

Alexandre Travessoni faz a defesa da relevância de ambas as perspectivas. Concordo profundamente com seu posicionamento, o que me leva a rever minha postura anti-utilitária inicial. A Teoria do Direito é importante tanto enquanto busca desinteressada pelo conhecimento do Direito como por sua utilidade como instrumento auxiliar da dogmática jurídica, melhor dizendo, como instrumento de realização do Direito. Acredito, no entanto, ser possível encontrar, na filosofia antiga, um caminho para a combinação harmônica dessas duas dimensões, isto é, para a superação dessa dicotomia. Esse caminho passa pela recuperação do conceito aristotélico de prudência.

Talvez possa ir ainda um pouco além. Acredito ser possível aceitar que, mesmo na modernidade, essa combinação de raiz aristotélica se insinue nas brechas do discurso científico-utilitarista. E é justamente isso que gostaria de lhes mostrar, analisando um trecho da mais famosa obra de teoria do direito do século XX, sobre a qual não pesa, a princípio, a menor suspeita de aristotelismo. No último parágrafo de sua Teoria Pura do Direito, Kelsen escreve:

De resto, uma interpretação estritamente científica de uma lei que, baseada na análise crítica, revele todas as significações possíveis, mesmo aquelas que são politicamente indesejáveis, pode ter um efeito prático que supere de longe a vantagem política da ficção do sentido único: É que uma tal interpretação científica pode mostrar à autoridade legisladora quão longe está a sua obra de satisfazer à exigência técnico-jurídica de uma formulação de normas jurídicas o mais possível inequívocas ou, pelo menos, de uma formulação feita por maneira tal que a inevitável pluralidade de significações seja reduzida a um mínimo e, assim, se obtenha o maior grau possível de segurança jurídica. (KELSEN, 1998, p. 396-397).

Antes de seguir por esse caminho, ou seja, antes de apresentar minhas razões para a interpretação da Teoria Pura do Direito como um convite à redescoberta do conceito aristotélico de prudência, deixem-me dizer algumas coisas. Para mim, Hans Kelsen foi o mais importante teórico do Direito do século XX. Sua Teoria Pura do Direito representa a mais lúcida reflexão sobre o Direito de uma perspectiva positivista profundamente comprometida com o rigor e a coerência. E é por isso que ela significa, também, a mais poderosa crítica à adequação da perspectiva positivista à reflexão sobre o Direito. Não há juspositivista mais lúcido e coerente que Kelsen, não há crítico do juspositivismo mais arguto e profundo que Kelsen. Estamos aqui diante de um paradoxo, do “paradoxo Kelsen”.

Dito isto, voltemos, agora, ao trecho citado.

Nele, a segurança jurídica é apresentada como valor último. O grau de segurança jurídica é inversamente proporcional à quantidade de significados possíveis de uma norma jurídica. No limite, a máxima segurança jurídica é alcançada quando a norma apresenta apenas um significado possível. Kelsen, então, afirma que a Teoria do Direito serve à segurança jurídica, isto é, ela é útil porque produz segurança jurídica, a qual Kelsen equipara à univocidade ou, pelo menos, à limitação de sentidos da norma jurídica. No entanto, na conclusão, ele nos diz que o que a Teoria Pura do Direito tem a dizer é que a univocidade é impossível, mais precisamente, que ela é uma ficção, e que a pré-limitação perfeita dos possíveis sentidos da norma jurídica é também impossível.

A segurança jurídica, que ele eleva então como fim último da Ciência do Direito, não é mais do que um pálido simulacro daquela certeza que a Ciência do Direito não lhe pôde oferecer. As ciências na modernidade nos oferecem certezas (ou, pelo menos, pretendiam nos oferecer certezas), a Teoria Pura do Direito, expressão máxima da busca por uma abordagem absolutamente científica do Direito, remete-nos diretamente a esse anticlímax da percepção, certamente corajosa, de uma incerteza incontornável. As ciências na modernidade construíram-se a partir de uma ruptura com Aristóteles, a Teoria Pura do Direito, ao final, remete-nos, embora a contragosto, à prudência aristotélica.

É claro, então, que o fim original da Teoria Pura do Direito não era a segurança jurídica enquanto débil resultado de uma cuidadosa elaboração de normas jurídicas. Sua intenção era outra. A Teoria Pura do Direito, como qualquer outra teoria científica moderna, buscava a segurança que se funda na certeza. Não obstante, ela não só não foi capaz proporcionar a certeza, como ela também destrói toda a pretensão juspositivista ao método científico de aplicação do Direito.

Ao final da Teoria Pura do Direito, Kelsen conclui pela inexistência e impossibilidade de um método capaz de controlar a aplicação (interpretação/criação) da norma jurídica em seu progredir no sentido da determinação cada vez maior, ou seja, no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior. Nesse momento, Kelsen se encontra com Aristóteles, pois como observa Pierre Aubenque:

Aristóteles nunca espera poder deduzir o particular do universal: a falta, nos diz ele, não está na lei nem no legislador, mas na natureza da coisa, [...]. Onde Platão via uma fraqueza psicológica devido à ignorância dos homens, Aristóteles reconhece, como faz habitualmente, um obstáculo ontológico, um hiato que afeta a própria realidade e que nenhuma ciência poderá superar. (AUBENQUE, 2003, p. 75)

Esse obstáculo ontológico, que Charles Taylor, em Seguir uma regra, denominou “hiato fronético” (TAYLOR, 2000, p. 193), esse fosso que separa a norma jurídica da sua aplicação, a ciência do Direito kelseniana não pode ultrapassar. Ciência nenhuma poderá ultrapassar. É esse o legado último de Kelsen, a plena percepção da impossibilidade de se controlar normativamente a aplicação (interpretação) da norma jurídica, isto é, a percepção da iniludível relativa indeterminação do ato de aplicação do Direito. Ao afirmar isso, Kelsen colabora no sentido de nos libertar de uma das maiores tentações da modernidade: a tentação da imprudência, que Jean Lauand apresenta de forma precisa:

A grande tentação da imprudência (sempre no sentido clássico) é a de delegar a outras instâncias o peso da decisão que, para ser boa, depende só da visão da realidade. Há diversas formas dessa abdicação: [...] Uma das mais perigosas formas de renúncia a enfrentar a realidade (ou seja, renúncia à prudentia) é trocar essa fina sensibilidade de discernir o que, naquela situação concreta, a realidade exige por critérios operacionais rígidos, como um ‘Manual do Escoteiro Ético’ ou, no campo do direito, num estreito legalismo à margem da verdadeira justiça. (LAUAND, 2005)

Agora vejam, se a Teoria Pura do Direito, de acordo com a interpretação apresentada, trabalha para a nossa libertação da imprudência tipicamente moderna do legalismo uma vez que, ao deixar evidente a impossibilidade de um método científico capaz de encontrar a interpretação correta de uma norma (KELSEN, 1998, p. 391), nos convida à redescoberta de Aristóteles, não pretendo afirmar com isso que Kelsen tenha se dado conta da relevância da recuperação da prudência no campo do agir orientado por normas jurídicas. Parece-me que não, pois se voltarmos nossa atenção ainda mais uma vez para o parágrafo citado da Teoria Pura do Direito, veremos que Kelsen dirige seu último apelo à autoridade legisladora (KELSEN, 1998, p. 396). Nesse ponto, é como se Kelsen ficasse um passo aquém de si mesmo. O que, entretanto, não tira de sua obra o mérito de nos ter mostrado o beco sem saída da ciência juspositivista do método jurídico.

Para finalizar, permitam-me apresentar-lhes uma das mais célebres vítimas das modernas teorias da imprudência. Permitam-me apresentar-lhes o juiz Ivan Ilitch. À primeira vista, apenas um personagem de Tolstoi, um habitante do mundo da ficção. Mas não nos enganemos, Ivan Ilitch é mais do que real. Para Luiz Carlos Lisboa, ele é

[...] o homem comum do nosso tempo, imediatista e pragmático, dono desse tipo de mente ‘acumulativa’ tão característica dos grandes centros urbanos e da classe média que neles prospera. Somos quase todos Ivan Ilitch, na nossa eficiência especializada, na superficialidade com que passamos sobre os problemas fundamentais, na indiferença em relação à dor, à verdade, à precariedade da vida. Quando essa estrutura se depara com a doença, a morte e o egoísmo dos outros – não discursivamente mas num encontro frente a frente – sobrevém a angústia, o desespero, o poço sem fundo do sofrimento total. (LISBOA apud TOLSTOI, p. 5-6)

Ivan Ilitch dá um rosto à imprudência moderna. Ele é o juiz bem sucedido, que crê desempenhar perfeitamente o seu papel, ou seja, que “aplica” o Direito. Ele é o “escravo da lei”, a “boca da lei”, que no fundo no fundo sabe que tais coisas não existem, mas que age profissionalmente como se existissem. À semelhança dos médicos profissionais com os quais se depara ao longo de sua agonia e que, ali onde se encontra um homem a ser cuidado (um homem que sofre e que necessita de cuidados), só enxergam uma doença a ser eliminada, Ivan Ilitch também se mostra incapaz, durante toda sua vida como juiz, de levantar os olhos dos autos e dos códigos para ver os homens e seus problemas. Ele “aplica” o direito, mas não sabe (ou finge não saber) que o Direito não pode ser “aplicado” de uma forma mecânica. Sua prudência (no sentido moderno), que se manifesta em sua dócil submissão a um legalismo convenientemente apropriado ao carreirismo, é máxima imprudência (no sentido clássico). E por essa imprudência, Ivan Ilitch paga um preço alto. O preço da falta de sentido, cobrado na moeda de um sofrimento total.

Agora é hora de voltarmos à questão inicial: para que serve a Teoria do Direito? Peço que escutem o que nos dizem Hans Kelsen e Ivan Ilitch. De maneiras diferentes, ambos nos dizem a mesma coisa, porque igualmente a ambos se desvelou o vazio das teorias do Direito da modernidade. Acredito poder escuta-lhes dizendo: - A Teoria do Direito serve para nos salvar da Teoria do Direito.

Esse é o começo da nossa conversa. Muito obrigado.

Referências

AUBENQUE, Pierre. A Prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, 2003. 352p.

LAUAND, L. J. Prudentia, virtude intelectual: “lições de vida”. Notandum, n 12. Disponível em: <http://www.hottopos.com/notand12/jean.htm> Acesso em 10 mar. 2005.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 428 p. (Ensino Superior).

TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. Tradução de Udail Ubirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 2000. 311 p.

TOLSTOI, Leão. A Morte de Ivan Ilitch. Tradução de Joaquim Campelo Marques e Manuel Borges. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981. 86 p.

TRAVESSONI GOMES, Alexandre. Para que serve a teoria do Direito? Belo Horizonte: PUC Minas, 2005. Palestra proferida no Seminário “Para que serve a Teoria do Direito?” realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas, em Belo Horizonte, em 09/05/2005.



[1] Texto produzido a partir da palestra proferida, em 10 de maio de 2005, no Seminário “Para que serve a Teoria do Direito”, realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas, de 09 a 13 de maio de 2005.

**Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor de Filosofia do Direito no curso de Graduação e no Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas. Membro da Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito (ABRAFI).