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Ética, Ciência e Biologia

(Intervenção no Encontro Anual da Academia Brasileira de Ciências, 31-05-04)

 

Dante Marcello Claramonte Gallian
Doutor em História Social pela FFLCH-USP
Diretor de Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da UNIFESP
Membro do NIBio - Núcelo Interdisciplinar de Bioética da UNIFESP

 

Vivemos um momento histórico interessante e empolgante. Um momento de crise, sem dúvida, com todos os aspectos perturbadores que isto pressupõe, mas também com toda uma gama de transformações e novas possibilidades que emergem em períodos como este. Penso que para nós, pessoas envolvidas com a ciência, isto se torna particularmente interessante e empolgante, não tanto pelas novas e incríveis conquistas que se alcançam e se esboçam a cada dia, mas principalmente pelas novas possibilidades que se abrem na maneira de se pensar e se fazer ciência. Acredito que estejamos passando por um novo renascimento, uma nova revolução no campo científico.

Digo isto baseado não apenas na leitura e estudo dos teóricos contemporâneos, mas também e principalmente na minha experiência enquanto professor de história e filosofia para os cursos de graduação e pós-graduação de medicina e ciências biomédicas da UNIFESP.

Numa época de impressionante especialização e sofisticação científica e tecnológica como a nossa - e de maneira especial no âmbito da pesquisa biomédica, onde atuo - não deixa de ser surpreendente o interesse e o envolvimento que muitos alunos de graduação e pós-graduação desta área acabam desenvolvendo pelos temas e discussões históricas e filosóficas. E o mais surpreendente e empolgante é observar como estas reflexões humanísticas acabam se constituindo não numa espécie de válvula de escape ou enriquecimento da "cultura geral" para um sujeito por demais ocupado com o universo da ciência, mas em elemento agregador e, muitas vezes, solucionador de questões especificamente técnicas. Não deixa de ser bastante curioso e ao mesmo tempo alentador para alguém, oriundo das humanidades como eu, ouvir e mesmo ler, nos relatórios e avaliações finais de um curso de história da medicina ou filosofia da ciência, um aluno comentar que ler e estudar Hipócrates, mais do que instruí-lo sobre a medicina do passado, ajudou-o a compreender a maneira como se deve considerar a multiplicidade de fatores que atuam no processo de adoecer e de curar. Ou de outro - este de pós-graduação - de como um poema de Manuel Bandeira, inspirou-o na solução de um impasse metodológico numa pesquisa sobre enzimas!

É incrível observar que no momento em que a ciência contemporânea parece atingir o seu mais alto grau de sofisticação técnica e especialização, ela parece querer se abrir - ou melhor, necessitar se abrir - para o universo de onde ela partiu mas do qual tanto se afastou: o universo das humanidades; o universo da filosofia, da história, da arte...

São muitos os autores que, há mais de um século, vinham apontando para esta realidade. Dentre eles gostaria de citar apenas um, Gaston Bachelard, que, sem dúvida, foi um dos grandes profetas desta nova revolução científica. Entretanto, somente agora, no alvorecer do Terceiro Milênio, que constatamos a efetividade desta "profecia" do século XX: de que o método científico se reencontraria com a reflexão, com a criatividade, com a poesia.

É pois dentro deste marco e desta leitura histórica que interpreto toda esta discussão e toda esta polêmica em torno ao Projeto de Lei de Biossegurança e, mais especificamente, em torno dos temas nele inseridos.

Julgo como muito oportuno e muito enriquecedor, toda esta mobilização da sociedade civil, em seus vários âmbitos, na participação deste denso debate a respeito dos organismos geneticamente modificados e da utilização das células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapêutica. Isto mostra como a questão da responsabilidade social e ética da ciência e do cientista deixa de estar apenas no terreno do discurso e passa a ser uma realidade efetivamente política. Isto mostra a nós, do mundo científico, que não estamos mais sozinhos; que não podemos mais decidir sozinhos; seja para nosso agrado ou desagrado. A nossa abertura para o "outro mundo", tornou-se inevitável, aliás necessária e, melhor, benfazeja. Em última análise, esta abertura da ciência para a sociedade, para o mundo "não científico" é, como vimos, sintoma e fator essencial de sua própria mudança, de sua própria sobrevivência.

Todo este novo cenário de diálogo entre o mundo científico e a sociedade, entretanto, é apenas um aspecto do fenômeno revolucionário pelo qual passa a ciência contemporânea. A abertura, a cisão, a "crise" - no sentido positivo e original do termo - está também no interior dela mesma, como bem vinha colocando há pouco. O surgimento da bioética enquanto território de reflexão configurado no interior das ciências biomédicas é um exemplo e sinal preciso disto. Na mesma proporção e velocidade em que os conhecimentos e possibilidades técnicas avançam, demanda-se a participação de novos conhecimentos e possibilidades reflexivas. Ou seja, à complexização da técnica, corresponde a complexização da reflexão. E isto é uma lógica que diz respeito não apenas ao "controle" da ciência pela humanidade, mas, fundamentalmente, ao próprio desenvolvimento e evolução da ciência. Na verdade, na medida em que incorpora, agrega reflexão, principalmente oriundas de outros campos que não os estritamente técnicos, a ciência se complexiza e, portanto, avança, evolui - é preciso ponderar que o conceito de evolução não pode mais estar atrelado à idéia de realização (o quanto a ciência pode realizar através da técnica), mas, principalmente à idéia de complexidade (o quanto a ciência pode agregar de conhecimento através da reflexão).

Neste sentido, as discussões que se tem desenvolvido em torno aos OGM, no interior mesmo da comunidade acadêmica, apresentam-se como fenômeno emblemático deste momento crucial da história da ciência, em particular das ciências biomédicas. Observamos aqui, de maneira privilegiada, a emergência da complexização da reflexão na própria prática científica. Particularmente no que tange a discussão sobre a pesquisa com células-tronco embrionárias, cuja tônica me é mais familiar e, por isto mesmo, a que tenho acompanhado mais de perto, os debates têm atingido um altíssimo grau de complexidade, proporcionando, sem dúvida, um incomensurável potencial de desenvolvimento da reflexão e do conhecimento científico em diversos âmbitos.

Toda a reflexão que o dilema ético de tal questão vem suscitando, principalmente no referente à concepção sobre a origem, qualidade e valor da vida humana, tem trazido contribuições inestimáveis para o conhecimento científico. Contribuições estas que repercutirão, sem dúvida, no desenvolvimento da própria prática científica, no âmbito da tecnologia. Aos defensores da concepção "cíclica" ou "continuista" da vida, se contrapõem agora os defensores da concepção "personalista" ou "genética" da vida humana. Na medida em que a vida humana deve ser entendida não apenas em uma dimensão genérica, da espécie, mas também e principalmente individual e irrepetível, a configuração de um novo ser, geneticamente definido, a partir da fusão nuclear, constituiria o ente pessoal per si, o que tornaria a sua manipulação ou destruição, mesmo para fins terapêuticos, eticamente condenável. E isto não apenas do ponto de vista de uma ética personalista, mas também do ponto de vista de uma ética humanitária, já que tendo a pessoa humana, com seu conteúdo genético e ontológico próprio e irrepetível, um valor insubstituível para a humanidade, atentar contra a pessoa, mesmo quando esta ainda se encontra em seu estágio embrionário, seria, em última análise, atentar contra a própria humanidade.

Esta visão "personalista" ou "genética", defendida por vários cientistas, dentre eles Gonzalo Herranz, vice-presidente do Conselho Europeu de Bioética, e Francesco D'Agostino, presidente do Comitê de Bioética italiano, tem suscitado uma crescente complexização do debate sobre a pesquisa com células-tronco embrionárias e, consequentemente, tem contribuído também para complexização do próprio conhecimento científico que, sem dúvida nenhuma é o caminho privilegiado de sua evolução.

Nós, cientistas que lutamos para acompanhar o passo da história e nos esforçamos por colocar a ciência brasileira no âmbito da vanguarda mundial, não podemos nos esquecer que a ciência hoje não se reduz à aplicabilidade técnica, mas se traduz, fundamentalmente, em potencialidade agregadora, em capacidade de agregar conhecimentos em níveis cada vez mais complexos. Neste sentido, devemos celebrar toda esse polemização e complexização oriunda das novas questões colocadas pelas pesquisas biomédicas e devemos aproveitar o momento para ampliar e aprofundar os debates e as reflexões. Não se trata mais do velho embate entre as "luzes" da ciência contra as "trevas" da ignorância e da religião. Trata-se do novo embate entre uma visão simplista e tecnicista de ciência contra uma visão agregadora e complexa de ciência, que se configura como um visão revolucionária. Gostaria portanto de convidá-los, de convidar-nos todos a recolocar a reflexão sobre estas questões éticas e científicas num novo plano: no plano mais amplo da história e no plano mais amplo do futuro no qual estamos convidados a sermos protagonistas.