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Formação de Alunos em Psicologia  

 

Maria Gertrudes Vasconcellos Eisenlohr
Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, com
a dissertação "Formação de Alunos em Psicologia: uma possibilidade
para educadores" - Instituto de Psicologia da USP, 1997.
Psicóloga do Serviço de Aconselhamento Psicológico do IPUSP.

     A preocupação com a formação de alunos em Psicologia, as condições em que ela se dá e a possibilidade de oferecer-lhes algo a mais como contribuição para uma maior e melhor elaboração de suas experiências durante o curso universitário foram as idéias centrais que originaram o trabalho com alunos ingressantes em 1990 no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).

     Tal trabalho consistiu no oferecimento de encontros semanais, em grupo, com profissionais interessados na multiplicidade de fatores que envolvem a formação de psicólogos, sobretudo no que tange a aspectos pessoais destes alunos.

     O Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da USP, sua filiação à Psicologia Humanista e de modo particular, à Abordagem Centrada na Pessoa, constituíram o lugar e as condições para o desenvolvimento teórico e prático dessa iniciativa.

     Como método de trabalho com os alunos, propusemos encontros em grupo para facilitação da aprendizagem significativa.

     As atitudes presentes, tanto nos encontros com os alunos, como para a compreensão e elaboração dos mesmos, são as que Rogers (1972) propõe para o trabalho com pessoas, seja em psicoterapia, seja em ensino: empatia, aceitação positiva incondicional e congruência.

     Todo esse trabalho pretendeu aplicar, em todas as suas fases, as fundamentações teórico e práticas da Abordagem Centrada na Pessoa, procurando tornar evidente algo que se situa além da minha opção profissional por esta forma de trabalho em Psicologia.

     Trata-se de, mais uma vez, revelar a tradição que marca a origem e a experiência do Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, valorizando, principalmente do ponto de vista teórico e metodológico, uma prática exercida desde sua implantação, em 1969, tanto para o atendimento da comunidade que procura acompanhamento psicológico, quanto para a formação de alunos nas disciplinas de Aconselhamento Psicológico.

     Esta forma de trabalho tem sido reconhecida por eles e também por profissionais de outras instituições de ensino, como um lugar de excelência na formação de futuros psicólogos.

     Esse trabalho pretendeu mostrar o que fazemos, mas principalmente como fazemos nosso trabalho cotidiano, atentos aos nossos alunos não apenas nos aspectos de sua profissionalização, mas sobretudo nos aspectos que envolvem toda a nossa pessoa quando nos relacionamos com outro ser humano, que ali diante de nós, lembra-nos uma dimensão maior, da qual este encontro é apenas um sinal. Sinal que sugere respeito ao outro, tornando-nos conscientes de que nossas atitudes, a cada passo desta complexa formação, são significativas não apenas para os alunos, mas para nós também, pois constituem a expressão mais profundamente pessoal do nosso trabalho como educadores, tal como explicitado por Alves (1984), nestas palavras: "... professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é profissão: é vocação. E toda vocação nasce de um grande amor, de uma grande esperança."

     Uma das questões que o trabalho procurou abordar, diz respeito às experiências vividas pelos alunos em seu último semestre de graduação, consistindo este período, o alvo principal de nossas investigações.

     No entanto, durante todo o tempo de existência desse grupo, algumas perguntas permearam nosso trabalho: o grupo contribui para a formação destes alunos? De que forma isso se dá? o que estamos lhes oferecendo a partir da nossa acolhida voltada para a experiência pessoal de cada um deles?

     Foi ficando evidente para os facilitadores, entre os quais me incluo, que o grupo atendia a certas necessidades dos alunos sendo um espaço continente aos diversos momentos pelos quais passaram os seus membros, desde o primeiro até o final do quinto ano. Adquiriu um caráter de estabilidade, apesar da flutuação de alguns dos participantes. Permaneceu, desde o início, opcional, garantindo a liberdade, tanto de alunos como de facilitadores, para entrarem, saírem, tornarem a entrar. Manteve o enquadramento inicial de ser um grupo aberto e de não ter um tema a priori, a não ser a garantia de estarmos juntos, semanalmente, num determinado local, horário e dia, recontratados a cada semestre.

     A apresentação da proposta, desde seu início, fora descrita de maneira simples, como "um espaço em grupo, integrador de vivências e informações teóricas durante a formação destes profissionais" (Morato et al, 1993:99).

     Reconsiderando agora esta descrição, procuro não tomar por óbvias as palavras "integração", "vivência" e "formação". Busco um sentido que as relacione e forme um conjunto compreensível e significativo desta experiência.

     A Psicologia oferece algumas formas para abordar tal experiência, às quais poderia recorrer, visando uma maior explicitação das perguntas anteriormente formuladas. Minha necessidade, no entanto, volta-se para buscar um modo de considerar, não a experiência fragmentada de tal grupo, mas que me permita olhá-lo de forma abrangente. Busco o significado da existência do grupo, no contexto da formação dos alunos.

     Ainda que disséssemos que uma das nossas preocupações era com a profissionalização dos alunos visando o mercado de trabalho, esta constituía-se mais como conseqüência da nossa proposta do que propriamente como o objetivo dela. Senão, teríamos nos contentado em oferecer outras oportunidades de estágio com maiores e variadas experiências, prática essa habitual no Serviço de Aconselhamento.

     Tratava-se porém, no presente grupo, de um outro enfoque. O que seria?

     Já dizíamos desde a formulação da nossa proposta de trabalho, que nos preocupávamos com a pessoa do aluno. Isto supõe, olhar a formação de modo mais abrangente, para além da mera profissionalização.

     Por um feliz acaso, enquanto me deparava com estas questões, entrei em contato com o livro "O que é uma universidade?" (Lauand, 1987), que tem por objetivo formular questões sobre a universidade, o papel do professor, o ensinar e o aprender, a formação acadêmica, distinguindo-a da profissionalização. Adotando a atitude filosófica de Josef Pieper, filósofo alemão contemporâneo (1904-1997), autor de várias obras sobre o homem, a universidade e o filosofar, busca os fundamentos antropológicos da Filosofia da Educação e da Universidade.

     Ainda que não seja meu objetivo aprofundar todos estes temas, considero bastante interessante acompanhar, de modo sucinto, a trajetória do pensamento destes dois autores. Deles recortarei referências ao encontro "do método de filosofar" com o propósito educacional para a formação de alunos na universidade.

     Pieper (apud Lauand, 1987:41) define filosofar como "uma atitude humana fundamental diante do mundo". Esta vem acompanhada do "mirandum", que é a capacidade do homem se admirar com o mundo, levando-o a considerá-lo "mais profundo, mais amplo e mais misterioso do que pode parecer ao conhecimento comum" (ibid :110).

     O ato de filosofar como experiência humana "é algo que tem sentido em si mesmo, sua legitimidade não decorre de que sirva para isto ou para aquilo e, precisamente por isso, é livre" (Lauand, 1987:64). Esta outra característica do filosofar em que é ultrapassado o mundo do trabalho e das atividades que produzem resultados e fins imediatos é assinalada aqui como uma outra atividade do ser humano, sobre a qual não se faz juízo de valor.

     Quando pensamos na formação de nossos alunos como "profissionalização", estamos colocando nossa atividade ao nível de trabalho e neste sentido, propondo que se atinja um produto: a instrução. No entanto, quando consideramos nossa atividade como ação, propiciamos uma abertura de possibilidades que não se sujeita a nenhum fim imediato.

     No contexto da Universidade, podemos falar do exercício da função de professor ou da ação do educador. E neste sentido ele é: "um fundador de mundos, mediador de esperanças, pastor de projetos" (Alves, 1984:28). Realiza-se o salto da função para a pessoa.

     Esta abertura à totalidade é uma postura oferecida aos alunos, a partir da própria atitude do professor diante da vida, da existência, do mundo e esta "nenhuma metodologia pode conferir" (Lauand, 1987:122).

     Para que ocorra verdadeira aprendizagem o aluno precisa ser despertado na sua capacidade de admirar-se com o mundo. Isto torna-se possível se o professor tem em si desenvolvida esta capacidade e a comunica aos alunos. É através deste relacionamento que "cada um se apropria do que, em princípio, era só do outro" (ibid:124).

     A ênfase é colocada no encontro entre professor e aluno, que torna possível ao primeiro "a simplicidade e a capacidade para admirar a realidade sem no entanto perder a maturidade e a experiência do espírito formado" (Pieper apud Lauand 1987:124).

     De que modo isto pode acontecer, já que se apresenta como uma aparente contradição?

     Para Lauand, o professor precisa ser capaz de identificar-se com os seus alunos, colocar-se na posição deles e a abertura para esta atitude fundamenta-se na capacidade de doação amorosa do professor a seus alunos e na reciprocidade dentro deste relacionamento. E assim "... aprender (sempre que se trate do genuíno aprender) é crescer numa realidade em que o estudante não teria ingresso, mas que lhe é tornada acessível por sua união confiada com o mestre, pela identificação amorosa com quem ensina" (Lauand, 1987:125).

     Dado o caráter aberto dos encontros, já mencionado, e, principalmente, a inexistência de qualquer outra finalidade para esses encontros (já que não se tratava de grupo de sensibilização, nem de treinamento de atitudes, nem de estudo ou supervisão) além daquele de refletir sobre a experiência de ser aluno de Psicologia, podemos levantar a possibilidade de que neste grupo, abrimos espaço para viver a universidade no sentido que Pieper dá ao termo, ou seja, de modo filosófico.

     Busca-se oferecer um espaço para a compreensão/reflexão/tematização da experiência vivida. Como tal concepção é absolutamente inusual no ambiente de formação em Psicologia, não é de se admirar que esta idéia jamais houvesse ocorrido a qualquer um de nós, facilitadores e alunos enquanto vivíamos a experiência.

     Da falta de lugar para a Filosofia, enquanto disciplina que fundamenta as teorias psicológicas que estudamos, já nos acostumamos, ainda que não concordemos com isto. Com freqüência, vemo-nos diante de questões fundamentais: o que é o Homem? qual a concepção de Homem para este ou aquele autor em Psicologia? E, ainda mais especificamente na Abordagem Centrada na Pessoa, quando perguntamos acerca das bases do conceito de Pessoa para Rogers e outros psicólogos humanistas.

     Nestes momentos, recorremos a alguns filósofos existenciais e a fenomenólogos para buscar os fundamentos do nosso trabalho, seja em clínica, seja em educação, geralmente por iniciativa e necessidades pessoais. Mas oferecer um espaço com essa qualidade para um grupo de pessoas, onde estas perguntas possam emergir e ser compartilhadas, é novo, também para nós, em relação à formação de alunos.

     Pieper chama a atenção para esta possibilidade, ao dizer que: "só as pessoas que constituem a Universidade é que podem realizar esta abertura para a totalidade da qual estamos falando. É necessário, pois, que os estudantes, por mais que se limitem a um aspecto parcialmente formulado da realidade (aliás, pela própria disciplina científica), individualmente sejam postos em condições, sejam estimulados, continuamente provocados, a olhar, de modo pessoal, o todo do mundo e da existência" (apud Lauand, 1987:121).

     Também Benjamin, ao analisar a vida dos estudantes e a vida na Universidade, declara que a totalidade é uma aspiração de todo indivíduo atuante e propõe que algumas perguntas sejam dirigidas à comunidade para aquilatar-se o seu valor espiritual.

     Em suas palavras: "... expressa-se nela a totalidade do indivíduo atuante? o ser humano integral está comprometido com ela? ele lhe é imprescindível? Ou a comunidade é prescindível a cada um na mesma medida que ele a ela?" (Benjamin: 1984:33).

     Ao olhar para este grupo de formação nesta nova perspectiva, não pude deixar de constatar que de dentro desse trabalho conhecido teórica e praticamente — a Comunidade de Aprendizagem da Abordagem Centrada na Pessoa — emergia uma nova fisionomia, mais profunda e abrangente.

     Ao acompanhar estes alunos por seus anos de formação, refazia também o meu próprio caminho como aluna de Psicologia e podia, sem perder a condição de facilitadora, fruto de maturidade pessoal e profissional, identificar a experiência vivida por eles e identificar-me com eles em seus passos iniciais, a cada nova etapa do curso, além de retomar também para mim as perguntas que eles se faziam, provavelmente pela primeira vez. Refiro-me especialmente a este aspecto, porque em mim, esta experiência era intensa e intensivamente renovado a cada encontro com eles.

     Como venho reiteradas vezes, ao longo da minha vida profissional retomando as perguntas...:

     - quem é o psicólogo?;

     - como desenvolve o seu trabalho?;

     -como é a sua formação?;

     - como formamos nossos alunos?;

     - quem sou eu neste contexto?;

     - quem sou eu diante das perguntas fundamentais sobre o Homem?;

     - quem sou eu no trabalho com o outro ser humano?;

     - como sou psicóloga?;

     ...aproximo-me da compreensão daquele outro ali — o aluno — que está inaugurando estas mesmas questões.

     E vou me reaproximando, movida não apenas por uma questão de eficiência profissional, nem muito menos pelo cumprimento de uma obrigação funcional (a proposta para a existência desse grupo surgiu de uma escolha por parte dos profissionais nele envolvidos...), mas totalmente por uma "amorosa identificação com os que começam" (Lauand, 1987: 124).

     Pelo fato de sabermos, pelos anos de trabalho com alunos, que havia a necessidade de um outro espaço que pudesse contribuir para a sua formação e por desejarmos tornar viável esta possibilidade é que nos colocamos pessoal e profissionalmente "a serviço" deles.

     Outros aspectos importantes, que constituíram marcas no desenvolvimento dos encontros, foram a liberdade de escolha em participar (para todos os membros do grupo), a responsabilidade pessoal de vir aos encontros e a confiança estabelecida entre nós, tanto quanto ao conteúdo do que se falava quanto ao respeito e discrição com o qual acolhíamos uns aos outros.

     Estávamos ali porque interessava a cada um de nós estar presente e nos acompanharmos.

     Não nos propúnhamos a nada, além dessa convivência que enriquecia a todos.

     Posso dizer que o grupo não tinha um outro fim, não existia para alguma outra coisa, não implicava em nada de prático, não se ligava a nenhuma função exterior a si mesmo, transcendia portanto o "mundo do trabalho": "... não estar imerso no mundo do trabalho, não estar a serviço de nenhuma finalidade prática, é, na realidade, uma distinção de dignidade que é necessário reivindicar, afirmar e defender" (Lauand, 1987:64).

     A tentativa de procurar uma função para a existência do grupo, externa a ele, nos acompanhou durante considerável tempo do trabalho, movidos certamente pela mentalidade à qual estamos habituados. Pensar de forma diversa desta, surpreende-me também, obviamente. Não ter função prática, no entanto, não significa em hipótese alguma, não ter valor. Aliás, é justamente aí que reside o seu valor.

     Um corte no cotidiano, nos aspectos práticos do mundo do trabalho (e do estudo), das funções e tarefas a serem cumpridas, um momento para reflexão, para encontro com o outro, para falar de si e da vida, para estar em companhia de professores interessados na sua formação, para saborear descobertas, para formular questões e para intrigar-se com elas, para não ter pressa nas respostas, para deixá-las calar no interior de cada um, para estar em silêncio!

     Um encontro que abre possibilidade de criação de sentidos.

     Como o filosofar, em Pieper. Esta atividade humana que ao ser vivida, torna o homem: "um ser que existe para seu próprio aperfeiçoamento" (Pieper apud Lauand, 1987:70).

     Na elaboração da Dissertação, posso dizer que realizei um "trabalho", na medida em que surge uma produção, um texto, que pode ser utilizado por outras pessoas que também se dedicam à formação de alunos e compartilham destas mesmas preocupações.

     Porém, é certamente mais que isso.

     É a comunicação de uma ação, que revela quem sou, na medida que mostra como é a minha forma de conviver com os alunos e envolver-me neste projeto mais amplo que é a formação de psicólogos.

Bibliografia

Alves, R. (1984 ) "O Preparo do Educador" in Brandão, C. R.(org) O Educador: vida e morte. Rio de Janeiro, Edições Graal.

Benjamin, W. (1984) Reflexões: a criança, o briquedo e a educação. São Paulo: Summus.

Lauand, L. J. (1987) O que é uma Universidade?: introdução à filosofia da educação de Josef Pieper. São Paulo: Perspectiva / Editora da USP

Morato, H.T.P. et al (1993) "Um Serviço a serviço de alunos de Psicologia: a história de um projeto ". Boletim de Psicologia, São Paulo (XLII) 98/99 :95-110.

Rogers, C. R. (1972) Liberdade para Aprender. Belo Horizonte; Interlivros de Minas Gerais.