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Algumas Reflexões à Margem
de Cultures et Droits
de l’Homme,
de Sélim Abou

 

Mauro de Medeiros Keller
Doutorando FEUSP

 

A afirmação, ao longo do século XX, especialmente a partir dos movimentos de descolonização do 2o pós-guerra, dos chamados direitos humanos “de 3a geração”, aí incluídos em particular os chamados direitos “dos povos” e “das culturas”, vem suscitando, como era de se esperar, controvérsias e desafios de grande magnitude. É certo que para nós, brasileiros, nascidos e criados em um país multi-étnico e multi-racial, tais problemas não despertam um maior interesse: damos de ombros, e até achamos estranho e pouco crível que eles possam tirar o sono de tantos estudiosos, e neles ser gasta tanta tinta. Mas não é o que se passa em muitas partes do mundo. Tanto nos países recém-descolonizados, que sofrem os efeitos de um acentuada ocidentalização, como entre os próprios ex-colonizadores, por força dos intensos movimentos imigratórios, os choques de cultura têm provocado, como é natural, importantes reflexões e discussões sobre o papel da cultura na formação do indivíduo, sobre a primazia da cultura sobre o indivíduo ou deste sobre aquela, sobre o sentido em que se deve tomar a expressão “direito da cultura”, se se trata de um direito de determinadas comunidades a um estilo de vida próprio, com todas as suas idiossincrasias (inclusive de caráter moral), ou se se cuida, antes, de um direito do indivíduo a viver em determinada comunidade, preservando, para todos os efeitos, a sua autonomia e senso crítico.

É nesse contexto que alguns estudiosos dos direitos humanos vêm se debruçando sobre a matéria. Sélim Abou, por exemplo, a partir de sua condição de libanês, habitante de uma terra onde a simbiose cultural e religiosa é marcante, consagrou ao tema interessantes observações em sua obra “Cultures et Droits de l’Homme” (Paris: Hachette, 1992), fruto de um curso ministrado no Collège de France, em maio de 1990. O que nelas mais se destaca, à parte o aprofundamento filosófico (com base, sobretudo, em Kant e Hegel), parece ser a incisiva, poder-se-ia mesmo dizer contundente crítica que faz ao relativismo radical de muitas posturas contemporâneas, tais como a de Lévy-Strauss e vários antropólogos e sociólogos, para quem os juízos de valor que fazemos sobre as práticas e costumes de culturas que não a nossa traduzem necessariamente o modo de ver de nossa própria cultura, com toda a carga de preconceitos à mesma inerentes. Os “direitos de cultura” para os relativistas radicais (coerentes com tal posição) significam, em última análise, os direitos que têm as sociedades de impor aos seus membros os costumes que lhes são peculiares, sem que se mostre legítimo, a membros de outras culturas, criticá-los, por errôneos ou mesmo repulsivos que possam parecer. Abou assume posição diametralmente oposta: “Definindo o homem por sua cultura, o relativismo radical o reduz ao seu ser social; ele o despoja da razão teórica e prática que é ao mesmo tempo liberdade de pensamento e de ação;  interdita-lhe o uso dessa razão/liberdade que o torna capaz de tomar distância perante a sua sociedade e a sua cultura, para as criticar e as transformar”. E toma de empréstimo os expressivos dizeres de Jeannière Abel: “O homem não se define apenas pela sociedade política; ele se define do mesmo modo pela crítica permanente da sociedade na qual vive” (op. cit., págs. 32/33).

Em verdade, a questão do relativismo cultural longe está de ser nova. Vem acompanhando a humanidade, pelo menos, desde o alvorecer da história. Tornou-se, é certo, mais aguda, desde a descoberta, pelos europeus, do continente americano (confira-se o caso emblemático de Montaigne), e a partir do século XVIII, ou seja, a partir do confronto entre os enciclopedistas franceses, abertamente universalistas (movimento que atingiria o clímax na Revolução Francesa, com a Declaração dos Direitos do Homem), e a Ilustração germânica, que enaltecia os particularismos locais (Herder, o pré-romantismo). Ao longo do século XIX esse confronto não arrefeceu: a afirmação das nacionalidades dentro de Estados europeus multi-étnicos (por exemplo: dentro do Império Austro-Húngaro), ou de grupos nacionais contra as potências ocupantes (por exemplo, os irlandeses contra o Reino Unido), serviram-lhe de combustível. Para muitos desses movimentos nacionalistas, o mote bem poderia ser aquele dito de Joseph de Maistre (importante pensador católico ultra-tradicionalista de princípios do século XIX), lembrado por Abou: “Só conheço franceses, italianos, ingleses; e Montesquieu me ensinou que também existem os persas; mas o homem, essa criatura que chamam de homem, essa eu não vi em lugar nenhum”.

É curioso que boa parte dos cientistas sociais, a começar pelos antropólogos, compartilhe pontos de vista idênticos. Ao sobrepor a cultura sobre o homem individual, ao definir esse último em termos radicalmente culturalistas, ao privilegiar uma visão multiforme da espécie humana, praticamente relegando a identidade de todos os homens ao seu substrato biológico comum, a ciência social relativista bem poderia tornar suas as palavras de De Maistre. Ainda que se deva reconhecer que a motivação última possa ser de cunho ideológico oposto. O que transparece em muitos dos escritos dos relativistas contemporâneos é o desejo mal confessado de destruir o que consideram os “tabus” da civilização ocidental, o desejo iconoclasta de reduzir essa mesma civilização, com os seus valores próprios, a apenas uma dentre várias. E, contraditoriamente, alguns deles não se limitam a relativizá-la: avançam um pouco mais para criticá-la, o que, desde as categorias intelectuais de que se servem, estariam logicamente defesos de fazer. Sélim Abou pensa que por trás dessa atitude ilógica reside a má consciência do colonizador arrependido. Talvez se possa vislumbrar, antes, a intenção crítica em prol da mudança, uma demonstração inequívoca de que o homem se define tanto pela sua pertinência a um grupo social determinado, como pela sua capacidade de criticar e de transformar o grupo a que pertence.

O relativismo torna-se particularmente molesto quando invade a seara da ética. Aqui, usa e abusa das descrições de historiadores e antropólogos que ressaltam as diferenças de costumes e apreciações morais, como se pudesse comprovar a radical relatividade da consciência moral humana. A obsessão por ressaltar as diferenças joga uma penumbra (por vezes proposital, por vezes inconsciente) sobre as semelhanças, algumas realmente surpreendentes, entre as mais diversas culturas da espécie humana. Quando lemos no “Livro dos Mortos” do antigo Egito que devemos ser generosos com os nossos servidores, leais para com os nossos amigos, querer bem aos membros de nossas famílias, quando aprendemos o sentido das virtudes nos “Analectos” de Confúcio de forma tão similar à que os antigos gregos e ocidentais modernos as descreviam, como podemos restar indiferentes e atribuir as semelhanças a “meras coincidências”? Com que título os relativistas sobrepõem as diferenças às semelhanças, se há mais semelhanças que diferenças entre as culturas e entre as apreciações morais que se fazem nas diversas culturas? Entre nós, Jean Lauand esforçou-se recentemente por demonstrar, sobretudo em seus luminosos artigos “Tomás de Aquino e a Filosofia Tupi” e “Tomás de Aquino e a África – Língua e Filosofia Bantu” (incluídos na coletânea ‘’Etica e Antropologia”, São Paulo: Hottopos, 1997), como alguns conceitos e categorias da filosofia ocidental clássica encontram paralelo nas tradições de povos aborígenes, veiculada as mais das vezes nos usos linguísticos desses povos, a justificar aquilo que já dizia T. S. Eliot sobre o filósofo ideal: deveria conhecer todas as línguas do mundo.

Mas, e as diferenças? Não é certo que a consciência moral é variada? Sem dúvida, é tão variada entre os povos de um mesmo tempo dado, como ao longo da história de um mesmo povo dado. E decorrem, em última análise, ou da particular aplicação que é feita, tendo em vista certas circunstâncias, de princípios universais (que frequentemente subsiste por inércia, mesmo quando as circunstâncias já não mais se fazem presentes), ou da interferência de fatores irracionais fomentada pela prevalência de interesses determinados. Da primeira espécie são as práticas de rigorosa restrição sexual, próprias de sociedades de escassez, mas de grande potencial econômico, onde a poupança pessoal e familiar é valorizada. Ou as sanções severas naqueles lugares em que, pelas grandes frustrações (fome, por exemplo), os delinqüentes tendem a cometer os crimes movidos por impulsos mais fortes. Ou o canibalismo em sociedades extremamente subalimentadas. Da segunda espécie, a prática da escravidão, ao menos na Europa moderna e territórios colonizados, que era justificada em atenção à necessidade de se reunirem riquezas contra os otomanos, assim como porque representaria a justa recompensa a ser paga pelos próprios escravos em troca dos benefícios da civilização e da fé cristãs, mas que, na verdade, representava tão-somente o meio mais expedito de engordar as fortunas dos reis, dos nobres e dos próprios colonos europeus. Outro tanto se pode dizer, em nossos dias, do aborto, largamente praticado entre os ocidentais sob o argumento de que se trata de um direito da mulher ao próprio corpo ou de um meio de impedir a explosão populacional, quando na verdade esconde o interesse em prol da manutenção do conforto burguês, mantido o prazer da vida sexual sem quaisquer limites.

Se as avaliações morais variam, disto não se pode inferir, necessariamente, que haja uma multiplicidade de soluções de valor equivalente para os problemas morais. Como dizem com propriedade Denis Huisman e André Vergez, “ao lado de consciências morais corretas, há consciências morais errôneas. É certo que cada civilização tende a considerar válidos seus próprios julgamentos e a contestar os aplicados em outras civilizações. O moralista, portanto, evitará ceder a essa ilusão insistente, mas não se pode esquecer que determinadas morais parecerão sempre superiores a outras para consciências imparciais e esclarecidas. Certas concepções não passam de sobrevivências correspondentes a condições econômicas desaparecidas. A antopofagia ritual, por exemplo, poderia explicar-se em épocas de terrível subalimentação. Ela persiste pela força do hábito e da tradição quando melhoram as condições econômicas, mas, então, ela parece injustificada e escandalosa para uma consciência lúcida. Do mesmo modo, a moral ‘populacionista’, que impõe a toda mulher o dever de ter tantos filhos quantos a natureza lhe pode dar, é perfeitamente justificada nas épocas em que a fome e as epidemias fizeram a humanidade correr o perigo perpétuo de extinção. Mas nos países desenvolvidos, a extrema redução da mortalidade infantil, os progressos da cirurgia, os melhoramentos das condições econômicas, tornam desusada essa moral” (“Curso Moderno de Filosofia – A Ação”, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1966, págs. 194-195). E o mesmo poderiam esses autores dizer de práticas morais absolutamente injustificáveis, como a escravidão moderna, incompatível com o próprio nível de compreensão que já se tinha do que é o ser humano.

Tais considerações são inteiramente oportunas quando se tem em vista a problemática dos direitos humanos. A afirmação dos direitos inerentes à pessoa humana só se tornou possível na consciência daqueles povos que lograram superar o peso dos particularismos, que puderam vislumbrar por trás das peculiaridades de cada nação os traços comuns do ser homem, que foram capazes de concluir que acima da condição de nacional desta ou daquela terra, de membro desta ou daquela comunidade, o indivíduo pertence a uma espécie que é a mesma de que fazem parte todos os membros das demais comunidades. Ora, isso só se tornou realmente possível quando o indivíduo humano, enquanto tal, pôde ser devidamente valorizado. Em termos filosóficos, é inegável que foi na civilização ocidental que melhor se constatou o fenômeno: quer definindo-o como substância racional (Aristóteles, Boécio), quer como inteligência livre e autônoma (Kant), foi o pensamento ocidental que impôs com maior claridade a prevalência do indivíduo humano frente a todas as contingências que o prendem a um tipo certo de sociedade, lugar ou época.

Isso, todavia, não nos deve levar ao extremo de isolar, em termos de contraposição, o indivíduo e a cultura em que nasceu e se desenvolveu. O reconhecimento de que o indivíduo humano é um fim em si mesmo, e, como tal, encontra-se dotado de um poder – que não se lhe pode subtrair – de contemplar criticamente a sociedade em que vive, não nos deve levar a concluir tratar-se de algo abstrato, sem referências culturais, sem limitações sociais, em permanente e perpétua tensão com os demais indivíduos. Tão ou mais condenável que o culturalismo ou o historicismo relativista é o universalismo absoluto dos que tudo fazem para diminuir a importância dos aspectos culturais na formação e na vida dos indivíduos concretos. Esse é bem o caso do que o filósofo norte-americano Alasdair MacIntyre chama o “eu emotivista”: "O eu especificamente moderno... não encontra limites apropriados sobre os quais possa firmar um juízo, já que tais limites só poderiam derivar de critérios racionais de valoração e, como vimos, o eu emotivista carece de tais critérios” (“Tras la Virtud”, ed. espanhola de “After Virtue”; Barcelona: Crítica, 1989, pág. 50). Daí provém a capacidade (e necessidade) do eu desembaraçar-se de qualquer situação contingente a que esteja comprometido, e formular juízos a partir de um ponto de vista puramente abstrato frente a qualquer particularidade social. Tal é o eu de Sartre (o Sartre dos anos trinta), descrito como inteiramente livre de qualquer papel social concreto, alguma coisa radicalmente diversa da substância, um conjunto de possibilidades perpetuamente abertas. Tal é o eu de Erving Goffmann, para quem o eu não é mais que o prego no qual penduram-se os trajes de seus papéis sociais e ao qual nega-se qualquer eudade substancial, "revoluteando, impalpável, de uma situação solidamente estruturada num papel, em outra” (ibid., pág. 51).

Encarado o eu deste modo, "todos e ninguém pode ser agente moral, já que é no eu e não em papéis e práticas sociais onde se há de localizar a atividade moral. O contraste entre esta democratização da atividade moral e o monopólio da perícia gerencial e terapêutica não poderia ser mais agudo. Qualquer agente minimamente racional considera-se um agente moral; no entanto, gerentes e terapeutas desfrutam do seu privilégio em virtude de sua pertinência a hierarquias que supõem destreza e conhecimento. No terreno dos fatos há procedimentos para eliminar o desacordo; no da moral, a inevitabilidade do desacordo dignifica-se mediante o rótulo de 'pluralismo’” (ibid.).

É o que sucede com os debates políticos, que freqüentemente se apresentam em termos de uma suposta oposição entre um individualismo tendente à anarquia e uma engenharia social tendente ao coletivismo. "O crucial, na realidade, é o ponto em que as duas partes contendentes estão de acordo, a saber, que temos abertos apenas dois modos alternativos de vida social, um em que são soberanas as opções livres e arbitrárias dos indivíduos, e outro em que a burocracia é soberana para limitar, precisamente, as opções livres e arbitrárias dos indivíduos. Dado este profundo acordo cultural, não é surpreendente que a política das sociedades modernas oscile entre uma liberdade que não é senão o abandono da regulamentação da conduta individual e umas formas de controle coletivo idealizadas somente para limitar a anarquia do interesse egoísta” (ibid,).

Tais são as consequências de uma compreensão abstracionista do ser humano: conduzem a um tipo de relativismo anárquico-individualista não menos nocivo que o de matiz culturalista. O homem é razão autônoma, mas é razão autônoma inserto num contexto social determinado. Por conseguinte, a sua realização como ser, a sua perfectibilidade, depende em larga medida desta inerência radical ao grupo social, à cultura, em que nasceu e se desenvolveu. Aqui reside a raiz do “direito da cultura”, que, como tal, só pode ser entendido como o direito que os povos têm de formar os seus membros de acordo com padrões culturais próprios visando à maior e melhor realização de cada um deles, incluída aí a sua maior capacitação para um aprimorado senso crítico sobre si mesmos e a própria cultura que os formou e educou. É dentro da cultura, e sujeito às práticas peculiares desta cultura, que o indivíduo, por exemplo, aprende o valor das virtudes (lealdade, fortaleza, coragem, temperança). Mas o fim a que esse aprendizado deve se orientar não pode ser outro senão o de dotar o indivíduo a ver e a agir com lucidez em busca da sua felicidade como pessoa (o que, dada a sua radical socialidade, não se pode lograr sem a felicidade do todo social a que pertence). Em suma, a cultura é um meio, não um fim. Mas não pode ser ignorada, sob pena de frustrarmos a operacionalização de um meio indispensável a que o fim próprio de cada ser humano se realize.

Tendo presentes essas noções, podemos concluir, ainda que sumariamente, que certos traços culturais específicos desta ou daquela cultura não só podem como devem ser hostilizados por qualquer consciência esclarecida. São inaceitáveis, por exemplo, a escravidão e a discriminação do sexo feminino, pouco importando se praticadas por ocidentais ou pelos ianomâmis da Amazônia. São toleráveis, ao contrário, certas práticas para nós não aceitáveis, mas profundamente enraizadas em certos povos, e que, esperamos, a evolução proveniente da aculturação possa deixar para trás, muito embora, hoje, constituam meios concretos que essas culturas têm de ensinar e formar seus membros (é o caso de certos castigos infamantes de que se servem os povos orientais: lembre-se das chibatadas nos grafiteiros que emporcalham as grandes cidades, pena aplicada em Cingapura). Devem, por sua vez, ser incentivadas todas as práticas que promovem diretamente o bem-estar, a liberdade e a igualdade entre os homens.

Os direitos humanos não constituem um código perfeito e acabado, que uma inteligência brilhante estabeleceu uma vez para todo o sempre. São fruto de muita reflexão e de um processo histórico de desvelamento, o qual não se fez sem hesitações, erros e retrocessos. Fruto, antes de mais nada da prudência, dessa visão límpida das coisas, que depende da coragem diante da verdade, do senso aprumado da justiça e do equilíbrio temperante capaz de impedir que os nossos interesses gritem mais alto que a razão. Coragem, justiça, temperança praticados segundo critérios e valorações culturalmente situados ... É a sina e a grandeza do homem: depender da cultura para ser mais lúcido, inclusive para criticar essa mesma cultura e ultrapassá-la.