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Identidades, Etnocentrismos e Romance
Histórico – Encontros e Desencontros no
Brasil Nascente e nas Raízes de Portugal

 

Paulo Ferreira da Cunha
Prof. Catedrático da Universidade do Porto
Director do Instituto Jurídico Interdisciplinar, FDUP

 

I- Introdução

1. Desafios do Novo Romance Histórico - Não sabemos até que ponto se encontrará reconhecido o valor histórico e filosófico do novo romance histórico. Há nele – e significativamente lembramos Marguerite Yourcenar como figura cimeira deste novo modo – toda uma preocupação de trabalhar sobre fontes a que não nos habituaram os primeiros epígonos de Sir Walter Scott. Assistimos assim a um resgate, a um renovo, e até a uma enorme pujança do romance histórico nos últimos anos. A fortuna que tal tipo de literatura encontra hoje junto das massas de cultura média é assim bem merecida, e encontra nas elites pensantes e documentadas plena coonestação, pois ao aventuroso, romanesco, pitoresco ou exótico da sua dimensão lúdica se junta honesto estudo, que não raro se nos desvenda nos seus alicerces e andaimes.

Ora, com essa preocupação documental surge um grande interesse do público mais especializado pelos factos narrados neste género, que se revestem para o historiador tout court de uma outra credibilidade. Por outro lado, talvez até porque suficientemente amparados na clara distinção entre o que são factos históricos, documentados, e o que é efabulação (o que não raro é comunicado ao leitor, em paratextos normalmente finais), os autores não temem recortar com clareza as suas teses. Elas são isso mesmo, teses, um hiper-argumento por cima e por dentro da trama ficcional, e, como ela, também não são História nem historiografia.

2. Historiografia Jurídico-política implícita no romance histórico - Um dos temas que nos tem interessado na indagação sobre resíduos e derivações [1] , originalidades e influências [2] em História do Direito, e muito em especial do Direito de língua portuguesa, é o do momento do encontro entre as civilizações. Para depois seguir a pista das relações estabelecidas, até hoje. Penosíssima mas apaixonante tarefa. A filosofia jurídica já hoje não desdenha a procura da filosofia implícita na literatura. Talvez seja chegada a vez de a historiografia jurídica, por seu turno, lhe passar a conferir um mais evidente lugar [3] .

II. Dois Encontros Civilizacionais

1. Margens do Douro e Baía de Guanabara - Ora precisamente dois livros recentes do género romance histórico têm a feliz virtualidade de procurarem surpreender dois momentos cruciais do encontro de civilizações que nos interessam. O primeiro, Uma Deusa na Bruma [4] , transporta-nos aos primeiros contactos entre Romanos e Calaicos. O segundo, Rouge Brésil ou Pau Brasil ou Vermelho Brasil [5] , efabula sobre a relação triangular que no Brasil do século XVI se estabeleceu entre franceses, portugueses e índios autóctones.

No séc. XVI, na Baía de Guanabara, teria lugar a ocupação portuguesa de um forte fantasma em que durante um tempo utópico se pretendeu fundar uma França no Brasil. Ou, talvez melhor, arquitectar uma França “austral” em vez do Brasil…

No séc. II, junto ao rio Douro, talvez cinquenta mil Calaicos perderam a vida e seis mil a liberdade frente às legiões de Roma: para este últimos, fora, em geral, o seu primeiro encontro [6] .

Num caso como noutro, procura-se uma visão compreensiva, assimiladora de todo o legado anti-etnocêntrico do século que findou. Mas vejamos até que ponto.

2. Entre Romanos e Calaicos - João Aguiar confessa a sua dupla veneração (ou “interesse afectivo”) pelos Calaicos e pelos Romanos, ambos nossos antepassados, e sem os quais (uns e outros) este Portugal não teria sido, evidentemente, possível [7] . A personagem central, o “brácaro de Tarróbriga” Túrio, encontra-se dividida até ao fim entre a consagração ao deus guerreiro Bandua, que apela à resistência ao invasor, e o apelo da deusa Nábia, que desde sempre sabia que um novo mundo está a nascer ao qual de nada vale opor resistência [8] . Uma outra perspectiva da ambivalência deste encontro é a do seu amigo mais velho Antubelo, que tendo caído nas mãos dos romanos e entre eles permanecido escravo (mas havendo sido muito bem tratado), conseguiria finalmente retornar a casa, embora ferido pela nostalgia dos livros, do azeite na comida, de melhor vinho…e de maior humanidade no tratamento dos prisioneiros, que seus irmãos Calaicos ainda sacrificavam aos deuses, em rituais sangrentos.

3. França Antártica ou Brasil? - Também Jean-Christophe Rufin narra uma derrota. Isso é historicamente inegável. Uma derrota histórica e retumbante. Há porém uma diferença “escatológica” essencial entre a derrota calaica e a derrota francesa.

Na romanização total da Península, que se seguiu à derrota primeiro de Lusitanos e depois de Calaicos, podemos hoje ver uma vitória do processo histórico. Portugal e os mundos que ao Mundo deu seriam também possíveis graças ao legado romano, desde logo plasmado nessa linguagem universal do direito romano – mal necessário à primeira globalização, a lusa (como poderíamos dizer, juntando as lições de Agostinho da Silva [9] e de Vamireh Chacon [10] ).

Já para a fuga dos franceses da pequena ilha na Baía de Guanabara, que efemeramente ocuparam, retalhados por dissenções religiosas entre católicos e protestantes, fustigados pela doença e sangrando em constantes deserções, será difícil encontrar qualquer sinal dos tempos anunciador de amanhãs que se conheçam hoje [11] . O autor é insofismavelmente partidário dos franceses, seus compatriotas, como se pode inferir até da nota final sobre as fontes [12] , onde transparece uma espécie de espanto por esta história não ter tido na hagiografia patriótica nacional melhor acolhimento. Mas não deixa também de os retratar de corpo inteiro com suas grandezas e misérias, e de como que os redimir (e com eles ao “invasor” europeu – num discurso que se salva do politicamente correcto por um estilo e uma psicologia de bom gosto) numa final aliança com os índios (Ersatz da luta directa com os portugueses) que aliás se segue a uma primeira opção pró-nativista da heróina, da qual só regressará (não se sabe quanto) pelo amor do príncipe encantado europeu, reencontrado.

Os índios são pintados claramente como os bons selvagens, embora também Rufin sinta a necessidade da intermediação de um “mutante”, de origem europeia (inglesa), Pay-Lo, para no-los apresentar. A mesma personagem “independente”, com algum desprendimento, como convém, afirma que, tal como alguns franceses, chegara ao Brasil antes de Cabral – o qual só teria aportado em 1501! [13] . As comemorações do achamento estão, assim erradas…teremos de concluir. E sobretudo os protagonistas.

Se Antubelo reflecte as nossas reticências “direito-humanistas” (também ditas antropodikeiras) hodiernas contra os sacrifícios humanos dos Calaicos, Pay-Lo será confrontado com a missão de procurar primeiro explicar e depois abolir (pretensamente sem os moralismos e os etnocentrismos dos jesuítas) a antropofagia dos índios do Brasil. Em todo o caso, Colombe, a heroína convertida ao despojamento índio, se encarregará de nos evidenciar (e bem) o contraste entre a natureza e a perversão cultural dos franceses, que na ruptura derivada da discussão teológica sobre a Presença de Cristo na hóstia teria a sua admirável apoteose [14] .

Implacável o autor é apenas para com os portugueses. O governador Mem de Sá surge como um semi-mentecapto, nas poucas passagens do livro que seriam cómicas se não rondassem o grotesco e o inverosímil…além de injustificadamente sectário. Apenas balbucia (o autor diz que grunhe “em guisa de resposta cortês” [15] ) a sua monomania, que, aliás, pela fuga dos franceses se não viria a verificar (ironia tragicómica!): “No Rio, vai ser preciso fazer a guerra [16] .

Fá-lo repetidamente, sem mais palavras. No Brasil, tem medo ao sol, e anda de chapéu de aba larga enterrado. Pode ser até que haja documentos que nisso falem. Mas de que lado? E mesmo que assim fosse, não é isso um tópico adjuvante desta tese que devemos transcrever: “Nunca os Portugueses haviam experimentado tamanha impressão de poder. Na Europa, eram demasiado pequenos para desafiar quem quer que fosse, e, nas Américas, ainda só haviam ocupado costas desertas, ou quase. Mas, desta vez, iam combater”? [17] .

Que admirável conhecimento da história militar portuguesa!...

A figura de Villegagnon, o comandante francês utopista que desejou um dia disputar terreno aos portugueses para construir nos trópicos uma “França Antártica” é extraordinariamente bem pintada numa evolução trágica que o leva de um humanismo optimista, desejoso de conciliar os cristãos desavindos, a um cinismo desesperado que precisamente teria eclodido no momento em que, em debate com os calvinistas, descobriria que eles não gostavam do Homem. Acabará por perseguir os protestantes pelo ferro e pelo fogo, e por aceitar de Portugal trinta mil escudos pelos seus eventuais direitos sobre Guanabara [18] .

III. Conclusão

São muito diferentes a tarefa e a radicação de um e outro dos autores. Calaicos e Romanos são antepassados remotos, cujo sangue se uniu nas nossas veias. Franceses e Portugueses, povos tradicionalmente amigos, contudo estão vivos. E há um Brasil que fala português e não uma França Antártica.

Julgamos ser interessante meditar sobre os partidos que tomamos – insensivelmente às vezes, militantemente noutras, até em demanda e em construção de identidades [19] - ainda hoje, na História, pela História (por causa dela e através dela). Num tempo que afecta o anti-etnocentrismo até ao limite do excesso (quando não do ridículo – como quando assimila raças de cães a raças de cachorros ou a cores de cabelos [20] ), não deixa de ser irónico que sejamos por gregos ou por troianos, combatendo hoje do lado de vencedores ou de perdedores, que encarnemos os que julgamos haverem sido nossos antepassados, de sangue, domicílio ou alma.

E também é interessante ver como parece haver dois pesos e duas medidas no julgamento do etnocentrismo: o dos Descobridores e Colonizadores clássicos é demonizado. Mas precisamente outros etnocentrismos subtis parecem mais tolerados, e até com algum crédito.

A reflexão de João Aguiar é perturbadora, e lembra o julgamento do celtista D’Arbois de Jubainville sobre os romanos – o invasor romano, ao ter sido civilizador, como que conquistou por dentro. Mas haverá sempre quem prefira Vercingetorix ou Viriato a César. Até que ponto e com que razão ou coração, são contos mais largos…

Em todo o caso, além de um e outro dos livros merecerem uma releitura em busca de usos, costumes, ecos de leis e outras coisas de direito mais ou menos explícitas, valeria a pena reler as fontes do francês, e ver outras, que não terá considerado eventualmente. Mas mais que tudo um e outro livro nos falam do passado para o presente e para o futuro. Em épocas de profunda viragem, como a presente, há sempre a possibilidade de optar por Bandua ou por Nábia. Como é sempre possível haver ou não haver uma França no Brasil…



[1] Cf., especialmente, Vilfredo PARETO — Traité de Sociologie Générale, com prefácio de Raymond Aron, Genève/Paris, Droz, 1968.

[2] Roland MORTIER — L'Originalité. Une nouvelle catégorie esthétique au siècle des Lumières,  Genève, Droz, 1982.

[3] E quiçá realmente tal comece a suceder, porquanto, estando este estudo já no prelo, lemos na Internet o anúncio da saída de um estudo de significativo título: Rui de Figueiredo MARCOS — O Romance Histórico e o Direito, in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. V, Coimbra, Almedina, 2003.

[4] João AGUIAR – Uma Deusa na Bruma, Porto, Asa, 2003, 334 pp..

[5] Jean-Christophe RUFIN – Rouge Brésil, trad. port. de Isabel St. Aubin, Paul-Brasil, Porto, Asa, 2002, 460 pp. Edição Brasileira: Vermelho Brasil.

[6] João AGUIAR – Uma Deusa na Bruma, p. 328.

[7] Ibidem, p. 327.

[8] Ibidem, p. 143 - designadamente com esta bela fórmula, cheia de sabedoria: “aprendei a voar com o vento novo se quereis ressurgir um dia”.

[9] Agostinho da SILVA – Vida Conversável, Lisboa, Assírio e Alvim, 1994, p. 107: “"Portugal recebeu, pois, aquela carga da Europa que era preciso exportar para o mundo inteiro […], que apesar da marca que eu acho hoje terrível do Direito Romano o mundo tinha de ter; Direito tão anticristão, mas que talvez fosse única maneira das populações, ao encontro das quais eles iam, terem um meio de comunicação racional entre si e com a Europa donde partia […]".

[10] Cf. Vamireh CHACON — O Futuro Político da Lusofonia, Lisboa, Verbo, 2002.

[11] Sobre o episódio, no plano historiográfico, já o clássico (e precisamente escrito em francês na sua versão original) Oliveira Lima – Formation Historique de la Nationalité Brésilienne, 1911, ed. port.  Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira, 3.ª ed., Rio de Janeiro e São Paulo, Topbooks e Publifolha, 2000, p. 54 ss.. A interpretação aí desenvolvida, assinalando quer a baixa e marginal extracção dos candidatos a conquistadores franceses, quer as dissensões religiosas internas, mal avaliadas pela chefia gaulesa, não corroborará, afinal, o início do tratamento do tema, decerto entusiasmante para um leitor francês, embora em si mesmo contenha restrição: “Pouco faltou para que o Brasil, ou pelo menos o Rio de Janeiro, se tornasse francês em 1555”.

[12] Jean-Christophe RUFIN – Pau-Brasil, 455 ss..

[13]  Ibidem, p. 260.

[14]   Ibidem, pp. 303-305.

[15] Ibidem, p. 308.

[16] Ibidem, pp. 308, 310.

[17] Ibidem, p. 438.

[18] Ibidem, p. 452.

[19] Cf., v.g., sobre estas construções, Cláudia Barcellos REZENDE / Yvonne MAGGIE (org.) – Raça como Retórica. A Construção da Diferença, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002; Deborah CURTIS – Creative Ethnicity. One Man’s Invention of Celtic Identity, in New Directions in Celtic Studies, ed. Por Amy Hale e Philip Payton, Exeter, University of Exeter Press, 2000.

[20] Estes exageros de proteccionismo de pseudo-segregados são reais, atestados, designadamente, por um pedido de asilo político para uma cachorra feito por uma advogada francesa, e por uma lei que pune as anedotas sobre loiras na Bósnia.