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Antígona - o Crime Santo,
a Piedade Ímpia

 

 

Gilda Naécia Maciel de Barros
Fac. de Educação da Univ. de São Paulo

 

O mito de Antígona [1] prende-se à história da casa dos descendentes de Lábdaco, rei de Tebas. Na versão da tragédia, a jovem é filha de Édipo e Jocasta, irmã de Ismene, Polinices e Etéocles. [2]

Desgraças irreparáveis e grandes provações marcam o seu destino. A primeira desgraça prende-se ao seu nascimento, pois ela é fruto de incesto de Édipo com a própria mãe. A segunda consiste na pesada missão de guiar o pai, cego e banido de Tebas, por toda a vida, em sua peregrinação, amparando-o até a morte, em Colono.

A terceira grande infelicidade prende-se às conseqüências do combate entre os dois irmãos, Etéocles e Polinices, pelo poder em Tebas, combate no qual ambos pereceriam, amaldiçoados por Édipo, a quem expulsaram de Tebas, após se terem descoberto os seus crimes. É no contexto deste último episódio que se desenvolve o drama que ora examinamos.

Expulso Édipo de Tebas, seus dois filhos combinaram exercer o poder de forma alternada, por um ano, a começar por Etéocles. Este, porém, findo o tempo, recusou-se a entregar o trono a Polinices que, apoiado pelo reino de Argos, avança contra Tebas. Ocorre então o famoso episódio, tão explorado pela tragédia grega, referido como Sete contra Tebas.

Mortos os filhos de Édipo, o trono é ocupado pelo irmão de Jocasta, Creonte. O novo rei promulgou então um decreto pelo qual proibia que se prestassem honras fúnebres a Polinices, que considerava inimigo de Tebas.

Todavia, Antígona considera dever sagrado, imposto pelos deuses e leis não escritas, dar sepultura ao morto, em especial em se tratando de parente próximo. Viola a ordem do rei, espalha sobre o corpo de Polinices uma fina camada de pó, em gesto ritual suficiente para satisfazer a obrigação religiosa. Por este ato piedoso, foi condenada à morte e encerrada viva no túmulo de sua família. Enforca-se na prisão e o noivo Hémon, filho do rei, mata-se sobre seu cadáver. Eurídice, esposa de Creonte, diante da perda do filho, desesperada, suicida-se.

Diferentemente do que ocorre em Rei Édipo e Electra, tragédias nas quais a ação dramática concentra-se em uma só personagem, nesta peça a ação parece desdobrar-se entre Antígona e Creonte, em analogia ao que ocorre com outra peça de Sófocles, em que a força da ação se distribui entre Ajax, o herói que dá nome à tragédia, e seu rival, Odisseu.

Por isso pode dizer-se com Kitto [3] que Sófocles construiu essa tragédia sobre duplo alicerce, com forma de um díptico. [4] Ponderando sobre a importância de Antígona e de Creonte nesta peça, Kitto observa:

"O destino dela decide-se nos primeiros poucos versos e ela não pode deixar de ir ao seu encontro: a maior parte das forças dramáticas usadas na peça são desdobradas contra Creonte - a ligeira reserva com a qual o coro recebe o seu edicto (211-14), a notícias de que foi desafiado, também por uma mulher, a oposição de Hémon, a desaprovação da cidade (691 sqqs), a maquinação sobrenatural de Tirésias, a deserção do coro, (1098), a morte de Hémon (pressagiada), a morte de Eurídice (não pressagiada).

A nosso ver Sófocles compôs a personagem Antígona a partir de uma contraposição da jovem com a irmã, Ismene, de um lado e, de outro, com Creonte. Ismene, doce, tímida, submissa e acomodada, é o oposto de Antígona; Creonte, por sua vez, em sua oposição ferrenha à filha de Édipo, reforça nesta uma reação de obstinada resistência. Eles se completam e não é possível compreender inteiramente a situação de um sem considerar a do outro. Ambos têm alguns traços em comum, estão firmemente ancorados em suas razões e sofrem as conseqüências delas. Pois que força teria a figura de Antígona sem a do rei contra qual ela se afirma? O mesmo se diria de Creonte. Não fora a obstinação da jovem em sepultar Polinices seu édito teria sido cumprido. A estreita correlação entre esses dois tipos humanos, Antígona e Creonte é tão complexa que Maria Rosa Lida levanta a hipótese de Sófocles ter desdobrado entre eles a figura trágica, razão pela qual ambos representariam duas faces do mesmo erro de conduta. [5]

A intepretação mais conhecida e citada, que acabou sendo um divisor de águas nos estudos acerca do teatro de Sófocles é a de Hegel, para quem nessa peça se opõem o interesse familial, na figura de Antígona e, na de Creonte, a prosperidade comunitária. O bem público remeteria ao decreto do rei; a inumação se justificaria por um dever sagrado, fruto da piedade amorosa e fraterna, do temor respeitoso aos deuses ínferos (v. 451). [6]

A interpretação de Hegel, sempre citada, é, às vezes, questionada. Já se negou que um conflito de normas seja mesmo o tema central dessa peça. E uma questão difícil de resolver surge quando se considera a dimensão trágica de Creonte. Opor-se-iam, realmente, em Antígona, a lei divina e a lei humana? Teria Hegel razão em ver na peça um exemplo da fusão entre dois direitos parciais, a síntese mais alta? D. W. Lucas alega que, se Sófocles quisesse contrapor dois direitos não faria de Creonte um tirano (v. 667). [7] Já Kitto faz de Creonte a figura central da peça e Antígona seria a tragédia de Creonte. [8]

A questão tem algum sentido, pois se pode ver que, no desenvolvimento da ação dramática, Creonte tem, nessa tragédia, sua courbe, sua peripécia e seu próprio reconhecimento, que resulta de um auto-conhecimento.

De fato, tendo se tornado uma das mais conhecidas peças de Sófocles, Antígona pode ser vista por várias perspectivas, que em muitos pontos se completam. Em geral, os aspectos religiosos, éticos, políticos têm sido considerados em todas as interpretações, com maior ênfase neste ou naquele.

Há autores - é o caso de Maria Rosa Lida [9] , que vêem na Antígona a oposição entre a lei da família e a da polis. Outros pensam que nela se contrapõem o perene ao transitório, como K. Reinhardt, para quem a peça é um exemplo de conflito entre o decreto de Creonte, que é condicional e a norma não escrita, que é permanente. A seus olhos, Antígona age levada pelo nomos (lei), ao qual obedece por ato pessoal de vontade, sem constrangimento de qualquer natureza religiosa. Já a atitude de Creonte explicar-se-ia por suspeita de conspiração. [10] Por trás da expedição de Polinices, o rei veria a ação hostil de algum partido em Tebas, ansioso por assumir o poder, estimulando o inimigo externo.

Também há os que destacam a face política do drama. Assim se orienta Christian Meier, para quem a peça ilustra, como nenhuma outra, em que consiste a arte política da tragédia ática. Pela importância da discussão entre Creonte e seu filho Hémon, Meier a considera um monumento do pensamento político. [11]

Entre os que dão ênfase ao aspecto religioso do conflito, está F. Rodriguez Adrados, para quem o drama sofocliano, que não chegaria a conter uma teodicéia e nem uma teoria política, é, contudo, um poderoso testemunho de fé religiosa, fé que rejeita o imprevisível e o caótico, para submeter o mundo à ordem e à lei. [12]

Maria Rosa Lida, a quem já nos referimos, reforçando a inflexão religiosa de sua interpretação, diria que, nos antípodas de um Protágoras, Sófocles faz de deus a medida de todas as coisas. [13]

Contudo, o matiz político não deixa de ser contemplado por Adrados, para quem Sófocles, mais uma vez, mostra o apreço que tem ao tema do Estado e do tirano. Por temer que o Estado usurpe as esferas de ação do indivíduo, da família e da religião, Sófocles a ele teria oposto a forte e rebelde personalidade do herói, no caso a filha de Édipo. [14]

Adrados traz ainda uma contribuição interessante para a história dos ideais educativos na Grécia clássica, ao ressaltar a questão da excelência (areté) do herói. Sófocles substitui, observa Adrados, o antigo ideal heróico agonal por uma nova lei, que recomenda o comedimento (sophrosyne). [15] O herói partilha a areté tradicional - valor, honra, nobreza, mas, por sua própria natureza, acaba no excesso. De fato, ao converter a excelência (areté) em paixão, aquela degenera, e a desmedida arrasta-o para a desgraça. Confiando em si além da prudência, cai em erro e deixa de lado a lei divina. Ou, ainda quando age de acordo com ela, não sabe evitar o excesso. Inflexível, por esse traço de caráter mostra-se incapaz de aprender, até a queda, quando, então, o sofrimento o amadurece. [16]

De fato, em algumas intervenções a fala do coro observa quão mau é o caminho do excesso e como à mediania associam-se o êxito e a felicidade.

Por sua vez, destacando o aspecto da autodeterminação do indivíduo, J. C. Kamerbeek pondera que Sófocles representou o homem individual no seu isolamento, e pôs no centro da tragédia os sofrimentos e o destino dos indivíduos. [17] Esse isolamento da heroína, também ressaltado por Kitto, aparece claramente no momento em que se prepara para o castigo; o coro a abandona, ela desconfia dos deuses e duvida do próprio impulso. [18] Mas a desgraça não cai sobre Antígona sem a participação dela.

Nesse ponto a comparação com Ésquilo é inevitável. [19] A seu ver, em Ésquilo, sendo os caracteres determinados pelo mito, é também em função do mito que se compõem os personagens, enquanto em Sófocles os fatos míticos, apesar de relevantes, não estão em primeiro lugar e nem são indiferentes ao caráter da dramatis personae. Como lembra Maria Helena da Rocha Pereira, em vez de nos apresentar situações trágicas, como Ésquilo, Sófocles foca de preferência caracteres. [20] Ao apresentá-los, o poeta projeta no contexto em que a ação humana é inserida um ideal de conduta. Esse compromisso com o plano ético levou alguns autores a valorizar a observação aristotélica segundo a qual Sófocles, diferentemente de Eurípides, pintava seus heróis como deveriam ser. Kamerbeek, por exemplo, registra isso, lembrando que o herói sofocliano está acima da média e se guia por uma norma interior. É o caso de Antígona. A norma pela qual ela se conduz nasce de seu íntimo, e, embora esteja em harmonia com a lei religiosa, não se confunde com ela. Nisso residiria sua independência. [21] De fato, mais de uma vez, na peça, a autonomia da heroína é assinalada. [22]

O desdobramento religioso do drama é, a nosso ver, da mais alta importância e mereceu de alguns estudiosos uma atenção diferenciada. E. Rohde, para quem Antígona obedece tanto às normas não escritas quanto aos impulsos de sua physis, lembra que os gregos enterravam os mortos conforme procedimentos consagrados. [23] A razão dessa prática prende-se, de um lado, à piedade, que o ordena, de outro, à esperança de que o morto descançará no além, pois na hipótese de ficar insepulto, o seu espectro, rondando os vivos, poderia acarretar malefícios à comunidade. [24] De qualquer maneira, também a eles o culto era devido.

J. Romilly, para quem a heroína da Antígona age motivada por múltiplas razões [25] , vê nessa tragédia um conflito entre o Estado, de um lado e os deveres da consciência moral e religosa, de outro. Embora não haja indicação alguma de que o decreto de Creonte era texto escrito, para Romilly a ordem do rei fora promulgada e divulgada, tendo validez e força de lei (no/moj). [26]

Já é lugar comum citar Antígona como exemplo de um conflito de normas [27] , no qual se oporiam as leis naturais (que se poderiam entender como divinas) e as leis humanas. Todavia, se existe essa oposição, é preciso também lembrar, como o faz Romilly, que expressão lei natural não está em Sófocles. [28] Essa autora esclarece que, embora houvesse em Atenas, no século V, uma polêmica alimentada apelos sofistas opondo lei (no/moj) e natureza (fu/sij), a expressão lei natural só vai aparecer no século IV e é preciso esperar Aristóteles para que se constitua uma doutrina a respeito.

Merece ser citada a contribuição de J. de Romilly para a interpretação da célebre passo contido nos vv. 450-60, em que Antígona, enfrentando Creonte, invoca as leis não escritas. [29] Discutindo a evolução do conceito de nomos entre os gregos, ensina ela que, inicialmente, no/moj tinha caráter religioso - fosse ou não escrito. [30] Designava ritos, regras morais, ordem do mundo imposta pelos deuses. Considerando as leis da polis, portanto as leis positivas, relativamente às leis não escritas, Romilly insiste na amplitude dessas últimas, quer se lhes desse uma origem divina, como ocorreu nas origens, quer se as entendesse como produto da convenção entre os homens. Mas ela também informa que, ao tempo de Sófocles, alguns autores dão a essas leis conteúdo mais moral do que religioso. [31] Tal amplitude favoreceu a uma certa identificação das mesmas com as leis comuns dos gregos. [32] Os gregos reconheciam algumas práticas como deveres que ultrapassavam as fronteiras da polis. Assim, poupar prisioneiros e suplicantes, ser fiel ao juramento, respeitar hóspedes e, também, enterrar os mortos: [33] Romilly lembra que essas práticas em geral tinham origem religiosa.

Ora, o dever de sepultar os mortos, questão fulcral do conflito da Antígona, era, como demonstra Romilly, do mais alto valor na cultura grega. A autora reúne várias passagens que justificam essa assertiva. Assim, em Tucídides IV 97, 2 - um povo que recusa a enterrar os mortos, como os atenienses em Delos, é acusado de violar a lei comum dos gregos. Em Suplicantes, de Eurípides, em que se discute a recusa do rito do sepultamento, destacam-se três situações em que essa prática é valorizada. 1) v. 311: Aetra solicita a Teseu que impeça que os culpados transgridam as leis comuns dos gregos; 2) v. 526 Teseu exige seja cumprido o rito em atenção ao direito comum dos gregos; 3) v. 671 Teseu quer preservar a lei de todos os gregos. Isócrates, Panatenaico 168, relata que os atenienses não permitiriam aos tebanos impedir o sepultamento dos guerreiros que caíram às portas tebanas e, assim, violar as leis comuns dos gregos.

O santo crime, a piedade ímpia [34] - Como já ressaltamos, as questões ética, política, familiar e religiosa estão interligadas nessa peça. Contudo, como o desenvolvimento da ação dramática decorre de divergência acerca de um tema com implicações diretamente religiosas, o rito de sepultamento, tão valorizado entre os antigos, torna-se importante lembrar alguns aspectos do que era a piedade grega.

Tratando do valor que tinham a prática ritual e a exterioridade na conduta religiosa dos gregos, diz W. Burckert: "A religião grega não repousa na palavra, mas na tradição ritual". [35]

Esse mesmo autor ressalta a íntima relação que havia entre a fé cívica e a segurança da comunidade: "No antigo mundo da pólis a solidariedade humana era mais importante do que a exaltação da fé. A religião não era um caminho ou uma porta, mas ordem, integração consciente num mundo "dividido" e limitado." [36]

Como dever que era, a religião grega manifestava-se em mandamentos e ameaças de sanções severas, muitas vezes desproporcionadas em relação à transgressão. É da mais alta significação este esclarecimento: "A formação de um "super-ego" através da educação constitui um processo fundamental no desenvolvimento do indivíduo e religião é um fator decisivo desse processo: o facto de existirem deveres categóricos incondicionais é aqui pressuposto como absoluto. Não há moralidade sem autoridade. Na ética popular grega, isto aparecia como código básico: honrar os deuses e honrar os próprios pais. Ambos os preceitos se apoiam mutuamente e garantem a continuidade ao longo do tempo do grupo constituído de acordo com as suas regras de conduta." [37]

W. Burkert explica a importância do temor dos deuses: estes e tudo o que lhe dizia respeito - festivais, templos, sacrifícios - eram semná, "veneráveis", e o mesmo se aplicava aos trajes, estilos de discurso e comportamento durante os festivais em honra dos deuses." [38]

O temor manifestava-se por meio da piedade (eu)se/beia). Agir com piedade (sebesqai) implica em submeter o agir a uma dimensão do bem, cujo critério é o costume dos antepassados e da cidade (no/moj): "não mudar nada do que os nossos antepassados deixaram" (Isocr. 7, 30). Num dado momento, esse temor reverencial (se/baj [39] ), que funda a piedade (eu)se/beia), passa a ser entendido também como um dever cívico. Não mostrar respeito pelos deuses (a)se/beia), atraía a fúria divina sobre toda a polis e assumia a feição de um crime contra ela.

No caso em tela, Creonte e Antígona divergem sobre o que deve ser feito acerca do corpo de Polinices. Enterrar Polinices é, para Antígona, cumprir o rito, honrar os deuses e os seus familiares mortos, o que, a seus olhos, jamais implicaria em dano à cidade. A morte a todos iguala, não há vencedores nem vencidos. Nem o próprio Etéocles a condenaria. Não nasci para o ódio, diz ela, apenas para o amor.

Por sua vez, Creonte parece cheio de razões, de início: Polinices é o traidor da polis, Etéocles, o defensor. Seu dever como chefe supremo de Tebas é honrar um e desonrar o outro. Essa desonra, quer ele levá-la até o extremo de fazer o corpo apodrecer ao sol, num espetáculo público grotesco e chocante. Com o desenrolar dos acontecimentos, essa situação constrangedora vai revelar-se um grande problema para Creonte, e mostrar o quanto sua conduta era alimentada pelo ódio e pela impiedade.

Na verdade, a compreensão dessa tragédia obriga-nos a considerar precisamente isto: o que representava para um grego um corpo insepulto?

Terrível desgraça, sem dúvida, para o morto e para a comunidade. Para aquele, a mutilação - ser vítima da fúria devoradora de cães e pássaros carniceiros [40] , e nenhuma honra fúnebre - ser banido da memória familiar e cívica. E, sobretudo, não adentrar a região dos mortos. Para a cidade, o risco da poluição (mi/asma).

Assim, por qualquer ângulo que se considere, o conflito gira, em Antígona, em torno de um ato sacrílego (/a/goj). [41]

Originalmente com significado material, o sacrilégio (ágos) é também uma impureza moral, diz Louis Mouliner. Supõe-se que um certo ato material, hostilizando um deus, coloca-o em contacto com a poluição. [42]

Mouliner dá exemplos significativos. Diz ele que ouvimos essa palavra apenas quando o sangue de um assassino toca um santuário, quando suplicantes são massacrados ou arrancados de um santuário, ou se um cadáver foi deixado exposto. É o caso de Polinices.

É verdade que supliciados, traidores, ladrões de templos eram apenados com interdição de sepultura na cidade. [43]

Mas estaria Polinices nessa situação? O que representaria, para a polis, seu cadáver insepulto? Um perigo? De que natureza? Até que ponto era lícito o ódio do rei?

O reino dos mortos era considerado entre os gregos o império das máculas, razão pela qual a questão do míasma aparece clara na Antígona. Percebe-se isso na fala do guarda, que associa fenômenos da natureza à impiedade, atribuindo-o à cólera dos deuses:

"Eis que, bruscamente, o vento em redemoinho/ ergue contra o céu uma tromba de poeira,/ varre o campo, estira a coma da floresta/ e enche de destroços todo o espaço imenso./ E, de olhos fechados, todos esperamos/ que se dissipasse a cólera dos deuses." [44]

O próprio adivinho, Tirésias, reforça a crença na poluição, ao dizer a Creonte (vv. 1015 et sqs):

"Vem do teu querer o mal desta cidade./ Altares e lares andam conspurcados/por laivos de carne que arrancaram cães/e aves ao cadáver desse filho de Édipo. /Já os deuses recusam nossos sacrifícios/e orações, e a flama não sobe das coxas/da vítima e as aves gritam maus augúrios/fartas dessa graxa e desse sangue humano." (vv. 416-421)

Lembremo-nos de duas passagens dessa peça. Antígona cobre o corpo de Polinices para fugir ao ágos (v. 1017); apesar de seu mal disfarçado racionalismo [45] , Creonte enterra Antígona viva na prisão subterrânea, mas deixa algum alimento no túmulo para evitar o sacrilégio (vv. 890, 775-6) e garantir-se da mácula (v. 889).

A peça faz-nos pensar sobre o medo da poluição e das terríveis conseqüências que a acompanham. O que é ser puro? O que é sacrilégio? Se Creonte duvida que os deuses sejam alcançados pela sujidade dos homens, não se estaria aí propondo uma reavaliação da idéia do divino, excluindo-se os deuses da vulnerabilidade humana? Faz parte do domínio da fé atribuir ao ritual executado pela filha de Édipo o poder de tornar o corpo do morto invulnerável; todavia, quando Creonte ordena, pela segunda vez, que o rito seja desfeito, a mutilação se concretiza e, com ela, como observará depois o adivinho, o sacrilégio.

A inflexibilidade de Creonte não pode ser ignorada. Se aos seus olhos Polinices era um traidor, por que não concedeu sepultura fora dos muros de Tebas? Creonte alcançaria seus objetivos, mas Tebas seria poupada do espetáculo sacrílego.

Toda questão se resume em saber até que ponto Creonte podia ir. E não nos esqueçamos de que é ele um rei cujo poder ainda não se consolidou! Repassemos os fatos. Creonte cuida para que o rito não seja cumprido de início, e, uma vez cumprido, cuida para que seja ineficaz e ordena que seja desfeito. Antígona age em sentido contrário: ela cumpre o rito uma primeira vez e, quando este é invalidado, ela o renova. A radicalidade de Creonte é inequívoca - desafia o domínio dos deuses e desacraliza o sagrado.

Nesse ponto, também Mario Vegetti vai na mesma direção de W. Burkert. Aquele autor lembra que o elemento central da relação entre homens e divindades, da 'religião' e da 'fé' gregas consistia na observância pontual dos cultos e dos ritos prescritos pela tradição. [46]

Esses ritos exprimiam o respeito, a veneração e a deferência dos homens pela divindade. Aliás, essa é a clara lição do sacerdote Eutífron no diálogo Eutífron 12 c, de Platão: ser piedoso, aos olhos do grego, é dispensar aos deuses certos cuidados (terapeia). Os gregos, esclarece ainda Mário Vegetti, criam num sistema de poderes - o sagrado, que intervém nos processos da natureza e da vida - às vezes de forma benévola, outras não. A boa relação com esses poderes dependia de ritos propiciatórios - ofertas votivas, invocação e prece. Esses cuidados para com os deuses aplacavam e revelavam a benevolência deles para com os homens. Pelo ritual, celebrava-se e era assegurada uma relação positiva entre eles e os poderes divinos, num momento de alta convivência entre os homens.

Se o espaço do sagrado é invadido, se os privilégios dos deuses são ignorados, as normas divinas que regem a ordem social são infringidas; pode haver contaminação [mi/asma] - juramentos violados exigem purificação [ka/qarsij]. Partindo da pessoa do culpado, a sujidade, que é material, propaga-se pela cidade toda. [47]

Se o édito de Creonte configurava realmente uma transgressão da lei divina, era uma transgressão ativa e isso poderia acarretar para a polis uma catástrofe. Aliás, é o que refere Tirésias em sua admoestação ao rei: a ira divina é tal que até os sacrifícios são por eles rejeitados, e a cidade toda está conspurcada pelas carnes do cadáver mutilado e insepulto. Mas parece que Creonte não apenas quis premiar Etéocles como também punir Polinices. Tirésias desnuda a extensão do ódio de Creonte ao arguí-lo: queres assassinar um homem morto? [48]

Na verdade, Antígona é exemplar em matéria de comunicação humana - paradígma de que podemos cair no excesso pela falta de sensatez e de bom senso. O excesso de auto-confiança cega e gera a ousadia, que favorece a queda. Daí as recorrentes referências à mediania, ao pensar sensato (to\ fronei=n), ao pensar adequado à condição humana (kat' a)/nqrwpon fronei=n).

A peça toda é um diálogo de surdos. Não há comunicação entre as duas irmãs, como também não há entre pai e filho. Não há comunicação entre Antígona e o rei, como também não há entre este e Tirésias. E as figuras centrais, Antígona e Creonte são por natureza inflexíveis.

O impasse é o alimento da tragédia. Sem acordo, tudo caminha para a ruína. E quando o rei cede, escolhe o pior caminho para reparar o mal, que se completa e se amplia, pelo retardamento da ação.

E, no centro do drama, o que temos, o tempo todo? Uma inversão absoluta da ordem natural: a vida (Antígona) no lugar da morte (no túmulo dos Labdácidas), a morte (cadáver de Polinices) no lugar da vida (exposto ao público, sem túmulo). Um morto (Polinices) entre os vivos; um ser vivo entre os mortos (Antígona).

Ora, Sófocles ensina que há uma ordem cósmica, na qual deve inserir-se a ordem social e política. Em sua tragédia, a ordem do mundo seguramente é divina, e o homem a integra, como parte. O sentido do trágico está em sua condição de agente livre. Porque pode escolher, pode o homem também transgredir. Toda violação a interditos traz, dentro dessa perspectiva religosa, tristeza e dor. Mas, com eles, de alguma forma, também pode vir a aprendizagem. Paqei=n, maqei=n, ou seja, aprender com o sofrimento, eis a chave para o aperfeiçoamento da natureza humana. A nós, seres de um dia, cabe pagar o alto preço, como tributo à liberdade. Em outras palavras, a queda é ponto chave na amarga dialética existencial da redenção.

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[1] Cf. Pierre Grimal. Dictionnaire de la Mythologie Grecque et Romaine. Paris: 1969. Verbetes: Étéocles; Antigone.

[2] Maria Rosa Lida realça o fato de que foi a poesia trágica que estruturou o mito de Antígona; na poesia épica sobre o ciclo tebano as duas irmãs não aparecem ligadas ao tema do do sepultamento. Cf. Introducción al teatro de Sofocles. B. Aires: Editorial Paides, 1971.

[3] Cf. H. D. F. Kitto. A tragédia Grega. Coimbra: Arménio Amado- Editor, Suc., 1972, p. 232 et seqs.

[4] Cf. H. D. F. Kitto, op. cit, p. 222-4, para quem também tem a estrutura de um díptico a peça Ajax, cuja semelhança com Antígona é clara. Naquela tragédia há um conflito centrado no sepultamento, negado, no caso, a Ajax, o herói morto.

[5] Op.cit., p. 60.

[6] Cf. Karl Reinhrdt. Sophocle. Paris: Les Éditions de Minuit, 1971. Original: Sophokles, Klostermann, 1933, p. 100, n. 1, citando Hegel, Estética II, 2. 1.

[7] Cf. The greek tragic poets. London: Cohen & West, 3a. ed. , 1969, p. 141.

[8] Op. cit. p. 237.

[9] Op. cit.

[10] Op. cit.

[11] Cf. De la tragedie grecque comme art politique. Paris: B. Lettres, 1991, p. 239; p. 241 et sqs.

[12] Cf.. Ilustración y Política en la Grecia Clásica. Madrid: Revista de Occidente, 1966, .p. 345; cf. tb. Maria Rosa Lida, op.cit., p. 26.

[13] Cf. op. cit. p. 57.

[14] Cf. op. cit. , p. 360; 363.

[15] Cf. op. cit. , p. 349.

[16] Cf. op. cit., p. 349; 355-6.

[17] Cf. p. 31 de Individu et Norme dans Sophocle. In Le Théatre Tragique. Paris (VIIe):Éd. Centre National de la Recherche Scientifique. MCMLXII, pp. 29-36.

[18] Cf. op. cit. p. 239. Cf. também Antígona, v. 876-877; 882 et sqs; em especial 922-923.

[19] Muito já se destacou o fato de que Sófocles rompe o esquema das trilogias ligadas pelo mesmo tema, que é um traço peculiar do teatro de Ésquilo, tratando cada peça de forma independente.

[20] Cf. Estudos de História da Cultura Clássica. Lisboa:C. Gulbenkian, t. 1 - Grécia, p. 300.

[21] Cf. op. cit., p. 34.

[22] O móvel da ação de Antígona vem de dentro dela (a)uto/nomoj), seu crime é a)uto/gnwotoj o)rga/; cf. v. 875: "É por tua vontade que, viva, única entre os mortais, vais ao Hades; cf. vv. 821-22: "Teu autônomo impulso perdeu-te!"

[23] A alguns mortos se prestam as honras devidas ao herói. Não é o caso de Polinices, considerado por Creonte inimigo de Tebas.

[24] Não há acordo sobre este ponto. Maria Rosa Lida, op. cit. p. 36-7 lembra que, aos olhos do homem comum, o sepultamento garante que reviva, como uma semente. Contra, kitto, op. cit., p. 236-7, que julga um erro supor que no enterro de Polinices o bem estar de sua alma se encontra em jogo. Nem uma palavra na peça o sugere, diz ele, com apoio em vv. 29 et sqs, 205 et sqs, 696 et sqs), a ênfase cai sobre a mutilação do corpo.

[25] Cf. op. cit. p. 34: amor fraterno v. 73; sentimento imediato do bem; de honra (v. 46); escolha íntima v. 465/6; disposição natural v. 523 (amor).

[26] Cf. op. cit. p. 29. Cf. também Antígona, vv. 447; 449; 481; 663; 59; 382; 847.

[27] A origem dessa oposição está associada à Retórica (1375a; 1373b), de Aristóteles. Conforme Maria Helena da Rocha Pereira, op. cit., p. 302, n.45, discute-se sobre o uso do termo lei por Sófocles. B. Knox (The heroic Temper. Studies in sophoclean Tragedy, University of California Press, repr. 1966) considera que a palavra usada no texto significa no século V costume (no/mima) e, não, lei (no/moj ); então, Antígona estaria se referindo a uma prática funerária consagrada pelo uso. Mas Sófocles utiliza no/moj no v. 519.

[28] Cf. op. cit. p. 46 et seqs; p. 48.

[29] O tema é importante para Sófocles, conforme registram Rei Édipo vv. 863-71 e Édipo em Colono v. 1383.

[30] Cf. op. cit. p. 27.

[31] Op. cit. p. 36.

[32] Op. cit., p. 42.

[33] Dever discutido por Sófocles também no Ajax, vv. 1130, vv. 1343-44; em Eurípides, Suplicantes v. 311, 526, 671; em Tucídides IV 97, 2, em Isócrates, Panatenaico 168.

[34] Maria Rosa Lida, op. cit., p. 162, em análise à peça Rei Édipo, lembra que em Sófocles o oxymoron (assim chamam os retóricos uma contradição) não é mero recurso retórico, mas faz parte do modo pelo qual esse autor concebe o conflito trágico.

[35] Cf. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Loureiro, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, trad. de Manuel José Simões, p. 524.

[36] Idem, ibidem.

[37] Idem, n. 298.

[38] cf. op. cit., p. 520.

[39] Receio perante os deuses: raiz seb-, etimologicamente remete a perigo/fuga. Em grego, prevalece sentido de reverência/admiração: "Sebas apodera-se de mim quando o vejo" (Ulisses diante de Nausícaa, Od. 6, 161).

[40] A Ilíada traz muitas cenas de combate final entre dois nobres e de súplicas e compromissos de devolução do cadáver do vencido, para sepultamento.

[41] Antígona diria que sacrílego é o interdito de sepultamento de Polinices (v. 458-59); Creonte, que ímpias são as honras que a jovem tributou ao morto (v. 514).

[42] Cf. Le pur et l' impur dans la pensée des Grecs (d'Homére a Aristote). Paris: Librairie C. Klincksieck, 1952, p. 249; 299.

[43] Cf. Erwin Rohde. Psyché. Payot, 1928, p. 461, n. 5

[44] O sentimento de que a própria natureza física foi atingida pela impureza e que a sujidade alcança toda a polis prende-se ao fato que, para o homem religioso, como lembra Mircea Eliade, a natureza nunca é exclusivamente «natural». In Mircea Eliade. O Sagrado e o Profano. Editora Lisboa:Livros do Brasil, 1957.

[45] Ele bate de frente contra realidades últimas, deuses súperos (cf. vv 1040-44) e ínferos (cf. vv. 779-80).

[46] Cf. O homem e os deuses. In O homem grego. Direção de J.-P. Vernant. Lisboa:Editorial Presença, 1994. Trad. de Maria Jorge Vilar de Figueiredo, p. 232-3

[47] Cf. op. cit. p. pp. 234-6.

[48] Situação análoga em Ajax. Opondo-se à ordem de Agamenão, que impedia o sepultamento de Ajax, considerado inimigo do exército grego, Odisseu alega em favor do sepultamento várias razões: a qualidade do morto, como herói valente; a importância do agir excelente (v. 1357 et sqs), a piedade e as leis divinas a respeito.