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A Pedagogia da Exclusão no Ensino da Língua Escrita

 

Silvia M. Gasparian Colello
Faculdade de Educação da Univ. de São Paulo
silvia.colello@uol.com.br

“... quando se está lidando com a vida, são tantas as coisas que aparecem! São tantas as peças do quebra- cabeça, que é falta de integridade imaginar que você pode pegar todas as peças do quebra–cabeça e formar um grande quebra-cabeça como queriam fazer os filósofos alemães. A vida é permanentemente uma tarefa inconclusa que está se modificando o tempo todo.” (Rubem Alves)

“...na escola só me ensinavam (...) ‘vovô viu a uva’. Eu não era medido pela sensibilidade que tinha com o conhecimento do mundo, era medido por ‘vovô viu a uva’. O ‘vovô viu a uva não me ajudava a entender o que eu estava sentindo em relação ao mundo.” (Gilberto Dimenstein) (Dimenstein e Alves, 2003, p.60 / p.18-19)

 

1. Vida versus aprendizagem: a gênese da exclusão na escola

Historicamente, a instituição escolar nasceu e se fortaleceu apoiada na oposição entre a vida e a aprendizagem, uma gênese que marcou a sua evolução e, hoje, mais do que nunca, compromete a sua eficácia.

Viver é, em certa medida, aprender; mas a aprendizagem essencial na edificação do ser humano não é garantida pela vida. Fora das salas de aula, dificilmente aprendemos tudo o que queremos nem o tanto que desejamos. Não aprendemos nem ao menos o mínimo para uma sobrevivência digna e integrada socialmente. Se a vida é rica em experiências, maior ainda é o potencial humano para compreendê-las, recriá-las, interpretar seus significados e considerar as suas relações em processos de elaboração mental que (nos diferentes arranjos pedagógicos) tendem a se beneficiar com as relações mestre-discípulo, aluno-escola. É por isso que, a despeito de tantas críticas dirigidas à escola, poucos são os que advogam a sua supressão. Calando as vozes desse grupo minoritário (e por que não dizer, irresponsável), temos como evidência o caos de quase todas as experiências de desescolarização, sejam elas vivenciadas individual ou coletivamente.

A escola, enquanto instituição pública, é um território de especialistas em “ensinar o mundo longe do mundo”: o espaço privilegiado de uma aprendizagem sistematizada que requer certo afastamento do real em benefício de uma re-organização burocrática, temporal e metodológica supostamente favorável à aprendizagem.

Paradoxalmente, aceitar a escola como alternativa educacional insubstituível e especializada do ensino remete à avaliação dos seus resultados e à evidência de que ela está longe de corresponder a um parâmetro mínimo de eficiência. Dados do MEC/INEP (Estado de São Paulo, 2003) indicam que até mesmo para as mais indiscutíveis metas do ensino (habilidades básicas em Português e Matemática), os índices alcançados pela maioria dos alunos de 4a série do Ensino Fundamental não ultrapassam os níveis “crítico” ou “muito crítico”.

Em face dessa evidência, é triste a constatação de que nossa sociedade, supostamente democrática (e, portanto, pautada pela convicção do direito de aprender e dever de ensinar), convive com a realidade de substituir o caos da desescolaridade pelo fracasso da escolarização.

Ao que parece, a escola está aberta o suficiente para incorporar (e assim perpetuar) as injustiças, os preconceitos, os mecanismos de exclusão e de seleção social e, ao mesmo tempo, fechada o bastante para se distanciar do mundo a ponto de tornar o ensino artificial e o conhecimento estéril (Charlot, 85).

A superação desse quadro merece ser considerada sob a forma de alternativas que possam rever a gênese da escola na sua relação com a vida. Compreender os mecanismos escolares que inibem a aprendizagem e condicionam o fracasso faz parte da busca de qualidade de ensino: a possibilidade de bem atender o aluno que hoje ingressa no sistema, mas também (e sobretudo), subsidiar iniciativas que possam resgatar oportunidades para aqueles que nem ao menos tiveram esse privilégio.

2. A escrita e a lógica da exclusão

No contexto da escola, a língua escrita é, a um só tempo, meta e meio de aprendizagem. É exatamente nessa condição de eixo privilegiado do trabalho pedagógico que ela se constitui em um exemplo relevante para a compreensão das relações entre escola e vida e, particularmente, do divórcio entre o ensino e a realidade dos alunos.

Em que sentido se pode dizer que a tradicional prática de ensino da língua escrita contribui para a produção do fracasso escolar?

Sem a pretensão de esgotar a temática, a análise da questão envolve pelo menos cinco pontos fundamentais e relacionados entre si: a desconsideração do aluno como “sujeito falante”, as restritivas metas do ensino, a artificialidade do conteúdo desenvolvido, a inadequação metodológica e a falta de sintonia na relação professor-aluno.

2.1. A quem se ensina: a desconsideração do aluno como “sujeito falante”

Em primeiro lugar, há que se destacar a desconsideração da escola tradicional pelo “aluno falante”, uma tendência já denunciada por inúmeros autores desde a década de 80 [1] . Seja pela discriminação de dialetos, seja pelo desprezo às práticas sociais de fala e escrita, a escola costuma operar a partir de um padrão etnocêntrico centrado na concepção da linguagem ideal, a norma culta. Trata-se de uma idéia subsidiada pelo “Modelo Autônomo de Letramento” que, tal como descrito por Street (1984), ignora a dimensão sócio-cultural da linguagem assim como a pluralidade de suas manifestações. A escrita é compreendida a partir de sua pressuposta “autonomia” e avaliada como um “produto completo em si mesmo” (a interpretação lógica do texto independente do contexto de produção).

Em oposição, o “Modelo Ideológico” considera a língua pelo estreito vínculo entre os usuários e as práticas sociais. Longe de pairar acima dos falantes, a linguagem é constantemente atualizada em múltiplas manifestações, fazendo sentido pelas práticas sempre legítimas (do ponto de vista da Lingüística) e contextualizadas (em uma dimensão histórica e sócio-cultural). Contudo, as diferenciadas formas de produção, nunca isentas de valor, colocam em evidência as estruturas de poder da sociedade.

Nesse sentido, as mesmas práticas escolares que, supostamente, ensinam a ler e a escrever e, pretensamente, distribuem conhecimento funcionam como mecanismos silenciadores de uma grande maioria de alunos que, roubados na sua forma viva de expressão, perdem o direito de manifestação e de diálogo. Ao ingressar na escola, o aluno que, em anos de convivência social, aprendeu a falar, a se comunicar, expressando sentimentos e opiniões e, ainda, a compreender a função e o papel da escrita no cotidiano, percebe, muito cedo, que a escola não fala a sua língua, nem está disposta a lidar com os seus saberes. Na prática, ao incorporar os mecanismos sociais (ou políticos) de discriminação lingüística, a escola estende o estigma para além da esfera pessoal da fala do aluno, alcançando igualmente a sua família, a sua comunidade, os seus valores, o seu passado e presente, deixando poucas perspectivas para o futuro (Gnerre, 1991; Colello, 1995).

2.2. Para que se ensina: as restritivas metas do ensino

Vivemos em um mundo utilitarista e prático que atribui  valor àquilo que pode ser imediatamente traduzido em bens materiais, lucrativos e compreendido segundo os moldes de um pensamento economicista para o qual tudo o que não pode ser vendido ou comprado merece ser descartado. A própria escolarização caracteriza-se como um bem de consumo, cuja base de negociação é legitimada pela necessidade de absorver conhecimentos (pré)determinados em função de objetivos específicos (certificados e diplomas, vagas na universidade, cargos, empregos e reconhecimento social), que dificilmente contemplam a aventura da aprendizagem ou os apelos inerentes à constituição do humano.

A despeito da ampliação e diversificação das expectativas com relação à escola, não se pode dizer que o homem, na acepção mais profunda do termo [2] , esteja, de fato, sendo atendido. A dimensão política e social da escola tão denunciada pelos reprodutivistas [3] (controle do saber, segregação de classes, perpetuação da formas de dominação, reprodução das desigualdades, conservação de valores e princípios e domesticação das massas) impingem ao funcionamento da escola uma concepção eminentemente tarefeira que, quando muito, prepara mão de obra qualificada e sacia a “fome de pão”, embora dificilmente possa contemplar a “fome de beleza”, tão essencial ao ser humano [4] .

Na busca estrita (embora não irrelevante) de transmitir os conhecimentos básicos (ou mínimos?) para formar o operário ou o médico cirurgião, a escola incorpora com tranqüilidade a tarefa de selecionar as pessoas a partir de critérios inflexíveis de desempenho, negando assim a pluralidade de saberes, culturas e realidades sociais. Em qualquer caso, perde-se a dimensão do homem, aquele que, independentemente da sua sobrevivência ou especialidade, pode compreender o mundo e nele se inserir de modo crítico e criativo. Como resultado dessa lógica tão bem internalizada no sistema, muitos dos que não foram excluídos pela escola acabam conformando-se com a possibilidade de desempenhar alguma função ainda que não possam compartilhar com a elite os rumos da humanidade: um resultado menos aviltante do que a marginalidade, mas igualmente desastroso em face da democratização do ensino (e da sociedade). De fato, em plena época de globalização, de encurtamento de distâncias pelos meios de transporte e de sofisticados sistemas de comunicação, somos, não raro (e certamente com a cumplicidade das escolas), encurralados em limites estreitos de convivência e em possibilidades restritas de ação.

No reducionismo de uma escola que, na melhor das hipóteses, dá conta de aspectos da vida (aprendizagem de conteúdos específicos, a especialização em um campo profissional), mas não da vida em sua real amplitude e complexidade,  consubstancia-se um paradigma de ensino que prioriza o saber sobre o ser, o instrumento sobre a razão, o conformar-se sobre o transformar e o instruir sobre o educar. Como conseqüência  disso, diluem-se os discursos em prol das grandes metas (constituição do cidadão consciente, crítico, criativo, livre e participativo) e, com elas, o significado do que se ensina, em particular, a razão da língua escrita.

2.3. O que se ensina: a artificialidade do conteúdo

Desde as críticas de Paulo Freire sobre a concepção instrumental e a-política da língua escrita, muitas foram as contribuições que, nos últimos anos, revolucionaram a compreensão que hoje temos sobre o processo de alfabetização. Na década de 80, os estudos de lingüística, psicolingüística e sociolíngüística redimensionaram as relações entre o falar e o escrever, revendo os princípios que sustentavam a discriminação e a correção da língua. Paralelamente, as pesquisas psicogenéticas, lideradas por Emilia Ferreiro e colaboradores, esforçaram-se por evidenciar os processos cognitivos de aprendizagem de um sistema que, longe de ser um código, merece ser tomado como efetivo conhecimento. A tradução e divulgação das obras de pesquisadores soviéticos situaram a dimensão social inerente à aprendizagem da escrita. Por um lado, Vygotsky e Luria chamando a atenção para a relação dialética entre o homem e seu mundo, situando o contexto sócio-cultural como importante referencial para a aprendizagem e valoração da escrita; por outro, Baktin enfatizando o caráter dialógico do ler e escrever. Finalmente, nos anos 90, os estudos sobre o letramento apontam para a relevância das práticas sociais na consideração dos requisitos, meios e metas do ensino da língua escrita.

A escrita passa a ser compreendida não só pelo conhecimento do sistema alfabético, das normas gráficas e sintáticas, dos gêneros de produção lingüística, mas também pela possibilidade de ampliar o repertório tipicamente humano na relação com a vida [5] , o que lhe confere, no âmbito de nossa cultura, um indiscutível status social. Em outras palavras, alfabetizar é dar voz e dignidade ao sujeito. Aliadas às outras formas de expressão, comunicação e representação simbólica (oralidade, arte, música e gestualidade), a prática da escrita contribui para a sutura do indivíduo ao seu mundo, em um processo simultâneo de inserção social e constituição de si (Soares, 1998; Colello, 1995, 2001).

A despeito da compreensão de língua escrita que hoje circula nos meios acadêmicos, nos Parâmetros Curriculares Nacionais e até mesmo nos projetos pedagógicos de inúmeras escolas, a concepção instrumental do ler e escrever prevalece como referência para a didática do ensino da língua materna na maior parte do país, justificando a inadequação metodológica e o conseqüente fracasso do ensino. Em outras palavras, a dificuldade dos educadores [6] para assimilar conceitos e posturas críticas sobre “o que e o porque se ensina” contamina as práticas pedagógicas, distanciando professores e alunos, conhecimento e vida, um processo (ou ciclo vicioso?) cujo resultado não poderia ser outro senão o da exclusão escolar e social.

2.4. Como se ensina: a inadequação metodológica

Tomada como um produto estável, completo em si mesmo (item 2.1) que se explica pelo invariável código de regras e normas (item 2.3) e cujo valor instrumental se consagra pelos usos específicos, prioritariamente escolares (item 2.2), a língua escrita continua a ser ensinada independentemente das grandes metas da educação, dos processos cognitivos dos alunos e das práticas sociais de letramento.

Na análise das metodologias de ensino seria, contudo, uma ingenuidade acreditar que o professor de hoje reproduz a mesma didática de outrora. Embora a máxima “ensino tal como aprendi” não possa ser completamente descartada e a maior permeabilidade de novas posturas seja um desfio desejável ao nosso sistema educativo, o professor também vem sendo afetado pelo discurso construtivista dos últimos 20 anos.

No confronto entre professores recém formados e  docentes alfabetizadores com alguns anos de experiência, Sarraf (2003) colheu fortes indícios de que o professor, hoje, está muito mais sensível à necessidade de ampliar a quantidade e qualidade de textos em sala de aula (dispensando ou não a tradicional cartilha); ele admite com maior facilidade dinamizar as práticas do ensino e se dispõe com maior freqüência a interagir com seu aluno.

O maior foco de resistência docente parece estar na inconsistência dos paradigmas capazes de subsidiar a transformação do ensino. Pela falta de segurança, dificilmente o professor abre mão de controlar o processo a partir de etapas diretivas, pré-determinadas e inflexíveis. O acompanhamento de tarefas destinadas a alunos do primeiro ano do Ensino Fundamental em instituições públicas e privadas de São Paulo revelou, em um recente estudo (Colello e Silva In Silva e Lopes-Rossi, 2003), que  a perpetuação desses tradicionais princípios pedagógicos consagram os grandes vícios do ensino, descritos em sete tendências básicas não exclusivas: “as lições ineficientes”, “a escrita artificial”, “as tarefas mecânicas”, “a escrita descontextualizada”, “a leitura e escrita sem significado”, “as lições tarefeiras” e “as tarefas repetitivas”. No conjunto do que a escola oferece, as poucas oportunidades de viver eventos significativos de “lecto-escritura” inibem as razões para aprender, não raro, produzindo o analfabetismo de resistência. Ao longo dos anos escolares, pela insistência de exercícios estéreis, o aluno corre o risco de aprender a odiar a escola, a rejeitar de antemão o conhecimento, a trapacear o professor, a se conformar com a formação mínima, a se negar ao diálogo e ao compromisso do esforço cognitivo. Pior que tudo isso, ele também corre o risco de se excluir, sendo marginalizado pelo sistema.

A língua escrita permanece como mais um dos conteúdos escolares distantes da vida em função de princípios metodológicos ultrapassados, mas infelizmente tão arraigados nas práticas em sala de aula. No cotidiano da escola, a alfabetização se faz pela segmentação das etapas de aprendizagem, em um processo linear e cumulativo de conhecimento, cuja progressão é pensada a priori pela lógica adultocêntrica [7] “do fácil para o difícil” (pela seqüência tradicional, as letras, as sílabas simples, as sílabas complexas, as palavras, as sentenças, as normas ortográficas, os textos, as regras gramaticais e sintáticas). Como se não bastasse o controle da ordem de aprendizagem garantido pela sistemática apresentação e reprodução de modelos, pretende-se ainda gerenciar a aplicação do conhecimento sobre a língua escrita pela distinção entre o “tempo de aprender” e o “tempo de fazer uso dessa aprendizagem”.

Adiando indefinidamente a possibilidade do aluno de “ousar pela produção escrita” e de “usufruir o prazer da leitura”, as tradicionais metodologias do ensino da língua materna configuram-se, segundo Kramer (In Zaccur, 1999), muito mais como vivências pontuais de puro ativismo do que como experiências reais de língua escrita, isto é, oportunidades de construção inteligente, capazes de superar o imediato porque possibilitam o pensar, o relacionar, o criar, o desvelar... 

2.5. Como (não) se aprende: a falta de sintonia na relação professor-aluno

Tradicionalmente, a busca pelo “melhor método” ou a “melhor cartilha” deixava em segundo plano as relações entre professor e aluno. Como o princípio do “ensinar bem” não estava centrado no sujeito aprendiz, a construção do projeto pedagógico parecia ser independente das pessoas ou acima delas. Grande parte do fracasso escolar é, ainda hoje, tributário de um sistema impessoal que, desconsiderando as diferenças individuais ou culturais, volta-se apenas para o grupo de alunos já em sintonia com o universo  escolar. A redução dos interlocutores e a apologia do silêncio em sala de aula acabam por se configurar como mecanismos de incompreensão e abandono, cujos resultados se fazem sentir nos índices de evasão, repetência, problemas de aprendizagem ou comportamento e, sobretudo, nos índices de analfabetismo (16 milhões de pessoas em território nacional!).

Opondo-se a esse quadro, as mais recentes contribuições apontam para o aluno real: a necessidade de partir dos seus conhecimentos, valores, expectativas, necessidades e linguagens; da relevância de subsidiar suas trajetórias cognitivas a partir do respeito ao seu mundo e compreensão de suas indagações, bloqueios e erros. Assim, tão desejável quanto a capacitação docente (o aporte teórico para a assimilação de concepções, posturas e diretrizes de ensino), é o  enfrentamento do desafio de humanizar a educação, ajustando a proposta pedagógica à especificidade do aluno que de fato se senta nos bancos escolares. No privilegiado palco de negociação que é a sala de aula, o mais atualizado projeto de ensino não pode desconsiderar a relação de professores e alunos que, pelo diálogo e compreensão, tornam-se cúmplices no processo educativo.

O que justifica a aula como encontro de recepção ativa e de diálogo entre professor e aluno é a concepção histórica e social do saber. Como o conhecimento não se constrói pela mera cópia de um objeto externo ao aprendiz nem como elaboração puramente endógena, alheia ao meio em que se vive (PCN, 2000), depende da mediação significativa que o professor é capaz de fazer entre o aluno e o mundo (a sintonia entre aprendizagem e vida). Para Quintás (apud Madureira, 2003), a fertilidade do encontro pedagógico é responsável pelo co-nascimento dos interlocutores com a realidade, um processo que, longe de ser o acúmulo de informações compulsório ou automático, nasce do interesse e do compromisso, levando à descoberta e à possibilidade de recriação de sentidos. Nutrido pelo entusiasmo de quem ensina, os encontros na escola podem ser geradores de experiências transformadoras do sujeito e do objeto em estudo.

Assim, para quem apenas transforma o sinal impresso no papel em valor sonoro, não vale a pena aprender a ler e a escrever. Sob o impacto da mediação docente, torna-se possível transformar os textos em fontes de idéias capazes de iluminar a compreensão do indivíduo sobre o mundo: uma experiência igualmente transformadora do papel e do sujeito que se dispôs a lê-lo.

3. Palavras Finais

A consideração dos fatores de exclusão inerentes ao tradicional ensino da língua escrita explicita o divórcio entre vida e aprendizagem, evidente tanto no campo das concepções quanto no plano da prática pedagógica.  Ao desconsiderar a realidade do aluno, subestimar as metas da educação, banalizar o conteúdo próprio da língua e artificializar os modos de aprendizagem, a escola se fecha para o impacto de novas concepções em prol da democratização e qualidade do ensino. Ao negar  a natureza das relações pessoais em sala de aula, o educador trai o seu compromisso e a sua razão.

A defesa de posturas mais democráticas subsidia a construção de alternativas pedagógicas (ou políticas educacionais) capazes de acolher o aluno, compreedê-lo e propor um ensino centrado no diálogo. É preciso re-encantar a escola para atender as demandas das gerações que hoje ingressam no sistema e, na mesma medida, responder aos que foram dele excluídos.

A compreensão do fracasso do ensino torna nítida a morosidade da transformação escolar, um processo sempre aquém das necessidades mais imediatas de nossos alunos. Na oscilação entre os avanços e os retrocessos, entre a ousadia e a resistência, ficam as sementes do saber e do fazer, sempre alimentadas pelas iniciativas, pelos esforços, pela reflexão e, certamente, pelos nossos sonhos.

Referências Bibliográficas

CHARLOT, B. “A liberação da escola - Deve-se suprimir a escola?” In BRANDÃO, Z. (org), Democratização do Ensino: Meta ou Mito? 2a ed, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1985.

COLELLO, S. Alfabetização em Questão. São Paulo: Graal, 1995.

________“Alfabetización: del Concepto a la Práctica Pedagógica” In Videtur- Letras 4. São Paulo/La Habana – Cuba: Mandruvá, 2001 - www.hottopos.com

DIMENSTEIN, G & ALVES, R. Fomos Maus Alunos. Campinas: Papirus, 2003.

Estado de São Paulo, “Dificuldade de aprendizado é maior a cada ano”, Geral/Educação, A-13, 27/4/2003.

GNERRE, M. Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo: Martins Fontes, 1991

GROSSI & BORDIN (orgs). A Paixão de Conhecer o Mundo. São Paulo: Vozes, 1992.

MADUREIRA, J. P. Filosofia, Ética e Literatura: a proposta pedagógica de Alfonso López Quintás. Tese de doutorado apresentada à Facudade de Educação da USP, São Paulo, 2003.

PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais: Introdução. 2a de, Rio de Janeiro: Secretaria de Educação Fundmantal/DP&A, 2000

SARRAF, M. A. O professor por ele mesmo: retratos da constituição docente. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Educação da USP, São Paulo, 2003.

SILVA, E. & LOPES-ROSSI, M. A. Caminhos para a Construção da Prática Docente. Tubaté: Cabral, 2003

SOARES, M. Letramento – um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

STREET, B. V. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. 

ZACCUR, E (org). A Magia da Linguagem, Rio de Janeiro, DP&A/SEPE, 1999.



[1] Entre tantos, vale mencionar as publicações de Wanderlei Geraldi, Sírio Possenti, Magda Soares, Mary Kato, Luis Carlos Cagliari e Eglê Pontes Franchi.

[2] Refiro-me a uma compreensão antropológica, filosófica e ética do ser humano: um ser cuja natureza específica explica o seu potencial e lhe confere direitos na convivência em sociedade.

[3] “Reprodutivistas” é o nome atribuído a uma geração de autores que criticavam a escola pelo modo como ela reproduzia no seu funcionamento interno os mesmos mecanismos de seleção e segregação social. Entre tantos, vale a pena mencionar Bourdieu, Passeron, Establet e Althousser.

[4] Frei Beto (in Grossi e Bordin,1992) define a “fome de pão” como a busca humana para garantir a sua sobrevivência e  “fome de beleza” como o conjunto de necessidades que, para além da luta pela vida, realiza o homem pela possibilidade de desenvolver e expressar o seu pleno potencial (manifestações artísticas, lingúisticas, literárias, musicais, científicas, etc.). Como aspectos essenciais e complementares à edificação do ser humano, eles explicam as conquistas e conflitos em nossa história, situando, por isso, as metas da educação.

[5] Como exemplo da ampliação do repertório humano pode-se lembrar o papel da escrita no que diz respeito a: consultar, garantir a memória, comparar, documentar, relacionar, registrar, consultar, comunicar à distância e em tempos diversos e até divertir.

[6] Longe da vertente simplista que apenas culpa os professores pelos mecanismos de resistência à transformação da escola, convido o leitor a considerar a realidade mais complexa do quadro educacional brasileiro: as políticas públicas de educação, a valorização do ensino, os cursos de formação docente, os programas de capacitação em serviço, a estrutura da escola e as condições de trabalho do educador.

[7] Uma lógica do adulto alfabetizado que não necessariamente contempla o sujeito aprendiz.