Home | Novidades Revistas Nossos Livros  Links Amigos

Ibn Battuta: o Príncipe dos Viajantes

(notas de conferência que o autor – conhecido escritor de livros didáticos –
tem
proferido para professores de todo o Brasil, 2000)

 

Elian Alabi Lucci

 

Ibn Battuta (1304-1377), considerado o príncipe dos viajantes, deixou uma contribuição muito importante para o conhecimento de algumas regiões situadas nos pontos mais recônditos da terra e do modo de vida de povos que pertenceram a civilizações muito ricas culturalmente (a maioria delas situadas no Oriente).

Este viajante muçulmano, originário de Tanger, beneficiou-se das conquistas islâmicas, que trouxeram consigo uma gigantesca expansão política e administrativa e que, para se fortalecerem, apoiaram-se em um serviço já existente: o dos correios. Nos domínios do Islã, as-Sahib, o chefe dos correios, adquire uma importância capital no controle dos territórios muçulmanos. Tinha contato direto com informações chegadas dos lugares mais distantes e de aspectos muito variados e cruciais (movimentos de população, tributos, organização dos transportes e caixas de postagem) nos distintos caminhos que os correios cobriam. Essa rede de comunicações constituiu um remoto antecedente dos estudos geográficos e dos relatos de viagens (rihlat).

Os relatos das viagens de Ibn Battuta pertencem, segundo a classificação estabelecida por Blachére, ao estágio da Geografia que começa a se definir a partir do século XII e no qual se incluem os dicionários geográficos, as cosmografias e geografias universais, as enciclopédias histórico-geográficas e as rihlat.

Os relatos de Ibn Battuta estão repletos de dados históricos e de pormenores das instituições sociais, da cultura em geral, com observações geográficas urbanas e rurais, detalhes etnográficos e folclóricos, bem como das complexidades econômicas dos povos visitados.

Tanto a vida como as viagens de Ibn Battuta têm lugar na Baixa Idade Média, no momento em que se dá a expansão comercial e econômica européia (catalães, venezianos, genoveses) pela área do Mediterrâneo. Contando vinte e dois anos de idade, o jovem Ibn Battuta deixa sua terra natal, situada no extremo norte da África, a 13 de junho de 1325, e toma a direção de Meca com intuito de realizar a peregrinação.

Desde sua saída até 1349 ele passou, em suas andanças, por Alexandria, indo até o Cairo. Dirigiu-se depois à Palestina e à Siria e, de Damasco, empreendeu por fim, a peregrinação a Meca (1326). Saindo de Meca no dia 17 de novembro de 1326, passou pelo Iraque, Kurdistão e Bagdad. Desta cidade retornou a Meca, onde residiu pelo espaço de três anos (1327 a 1330). Logo a seguir, visitou o Yemen, Adem e a costa oriental africana. Regressou por Omã, realizando uma nova peregrinação a Meca, em 1332 e daí chegou ao Egito, à Síria, à Anatólia, ao sul da Rússia e a Constantinopla, alcançando a Índia através do Afeganistão. Residiu na Índia por quase dez anos (até 1342) e durante um ano e meio nas ilhas Maldivas. Seu périplo pelo Extremo Oriente iniciou-se com a visita ao Ceilão, Bengala, Assam e Sumatra. Há algumas dúvidas sobre sua estada na China. Em abril-maio de 1347, está outra vez em Malabar, regressando depois pelo Golfo Pérsico e Bagdad, Síria e Egito, cumprindo uma quarta e última peregrinação a Meca. Em Alexandria, embarcou em 1349 para Tunis, de onde um navio catalão o transladou até Cerdena, então pertencente à coroa de Aragão. Daí, finalmente, cruzou a parte ocidental da Argélia e concluiu a viagem em Fez (novembro de 1349).

Porém, não acabariam aí as viagens: Ibn Battuta ainda realizou uma incursão pela Andaluzia, chegando até Granada e, uma outra, pelo legendário império africano do Mali, de onde se deslocou para alguns outros pontos da África.

Dentre tantos aspectos pitorescos, relatados pelo tangerino, podemos destacar a descrição que faz da parte meridional da Rússia, durante o inverno, chamada por ele de Terra das Sombras, a que Marco Polo também faz alusão chamando-a de Terra da Obscuridade: "Por essas terras, não se pode viajar a não ser em trenós puxados por cães enormes, uma vez que neste deserto coberto de gelo os pés dos homens e os cascos dos cavalos não conseguem firmar-se no solo e somente os cães podem cruzá-lo, pois têm unhas com as quais se agarram no gelo. Os donos, à hora da refeição, dão de comer primeiro aos cães, pois, se não agem assim, o animal se irrita e foge, abandonando o amo à sua sorte". [1]

A faixa de Gaza e a cidade de Hebron também foram visitados por Ibn Battuta. Numa das esquinas de Hebron, cidade com três mil anos de história, encontrou uma pedra medindo trinta e sete palmos de largura, que, contava-se, fora construída pelos gênios por ordem do Rei Salomão. Em seu interior, estavam as tumbas de Abrão, Isaac e Jacó e, diante delas, as de suas esposas. Ainda hoje judeus e muçulmanos veneram - exatamente neste local - a Tumba dos Patriarcas. Ibn Battuta narra, ainda, que, saindo de Hebron, visitou Belém, onde viu restos de troncos das palmeiras, nas quais, segundo o Alcorão, Maria se apoiou para dar à luz a Jesus.

Depois de deixar a Palestina, tomando a direção da Síria, Ibn Battuta viajou pelo Monte Líbano, descrevendo-o como um dos mais férteis do mundo, possuindo variadas classes de frutas, boas fontes de água e era refúgio de eremitas. Prosseguindo sua viagem, Ibn Battuta chegou à cidade histórica de Baalbek. Descreve detalhes - de encher os olhos de um historiador moderno adepto da história do cotidiano - como o preparo de doces de uva (mulabban).

De sua estada na China, Ibn Battuta destaca a conduta do rei chinês, um tártaro descendente de Gengis Khan. Apesar de pagão, esse rei fez reservar, em todas as cidades, um local à parte para abrigar os muçulmanos e suas mesquitas, chamando-lhe a atenção o respeito dos chineses por eles.

Causa-nos, hoje, salutar espanto o modo como os chineses impediam os comerciantes de agirem corruptamente. Quando chegava um comerciante muçulmano a uma povoação qualquer da China, era-lhe permitido alojar-se na casa de algum mercador muçulmano aí residente ou então na estalagem. Alguns viajantes preferiam, no entanto, albergar-se na casa de um comerciante. Relacionavam-se todos os seus pertences e valores transportados que ficariam sob a responsabilidade do hospedeiro. Quando o forasteiro desejasse partir, seriam conferidos e devolvidos seus pertences e valores e, se algo faltasse, o hospedeiro imediatamente trataria de repor.

Segundo os próprios chineses, eles agiam assim para evitar que corresse pelos países muçulmanos a voz de que as fortunas de seus viajantes e mercadores eram alvo da cobiça dos anfitriões e que, na China, se toleravam a corrupção e a leviandade. Pelas estradas chinesas podia-se viajar sozinho, por grandes espaços de tempo, transportando riquezas, sem temer absolutamente nada. Em cada lugar de parada, havia uma pousada sob a custódia de um oficial ali residente, sempre acompanhado de uma escolta. Ao cair da tarde ou já de noite, o oficial se dirigia ao centro da pousada e, com um auxiliar, anotava os nomes de todas as pessoas que ali pernoitariam. Na manhã seguinte, voltava bem cedo com seus auxiliares e fazia a chamada. Na partida, os viajantes eram escoltados até a próxima etapa da viagem, de posse de um relatório do oficial da pousada anterior.

A figura e os relatos de Ibn Battuta não têm merecido a devida atenção por parte dos estudiosos. Mas, em sua terra natal, esse intrépido viajante jamais será esquecido. Basta citar que, perto do estádio de Tanger, encontra-se hoje um globo que assinala a praça Ibn Battuta. Na rua Meggelan, o Hotel denomina-se Ibn Battuta e, quem quiser, pode saborear um Battutaburguer no café Ibn Battuta.

Apresentamos, a seguir, duas amostras dos relatos de Ibn Battuta.

As Mulheres das Ilhas Maldivas

(op. cit. pp. 666-667. Trad.: E. A. Lucci)

As mulheres das ilhas Maldivas, incluída a esposa do sultão, andam de cabeça descoberta e com os cabelos penteados, caídos para um dos lados.

Quase todas se cobrem apenas com um pano, que vai do umbigo aos pés, permanecendo nu o resto do corpo e, assim, andam pelo mercado e demais lugares. Quando fui nomeado juiz (Qady) destas ilhas, esforcei-me por abolir esse costume, ordenando às mulheres que se vestissem, mas foi em vão. Tudo que consegui foi que, pelo menos ao se apresentarem perante meu tribunal, viessem completamente vestidas. Algumas usam, além do dito pano, umas camisas de mangas curtas e bem largas.

Eu tinha umas jovens escravas que se vestiam como as mulheres de Delhi e andavam com a cabeça coberta. Isto, porém, mais as enfeiava do que embelezava, já que não estavam acostumadas a este uso.

Elas se enfeitavam com muitos braceletes em ambos os braços, desde os pulsos até os cotovelos. Estas pulseiras eram de prata; as de ouro eram usadas só pelas mulheres do sultão e de sua parentela. Usavam também argolas que aqui se chamam bayl e colares de ouro, chamados basdarad, que lhes caem sobre o peito.

Um de seus costumes singulares consiste em trabalhar em casas de família em troca de um pagamento fixo, de cerca de cinco dinares e de seu sustento pessoal, que corre por conta do patrão. De forma alguma vê-se nisto uma vergonha e quase todas as moças fazem este tipo de serviço, podendo-se encontrar nas casas dos mais ricos de dez a vinte delas. O valor dos objetos por elas quebrados é descontado de seus salários. Se alguma quer deixar uma casa para trabalhar em outra, a nova família paga as dívidas que foram contraídas com os antigos amos, passando deste modo a estar comprometida com a nova família. A principal atividade que desempenham é fiar o qanbar.

Casar-se, nestas ilhas, é fácil devido ao pequeno dote que se pede e o quão agradável é a união carnal com as mulheres daqui. A maioria dos homens nem sequer mencionam o dote, apenas proferem a shahadah (profissão de fé muçulmana) e pagam o estritamente legal. Quando os barcos atracam, seus tripulantes casam-se com as nativas e, na hora de partir, repudiam-nas, pois elas nunca deixam sua terra natal. Trata-se, portanto, de um casamento por simples prazer. Não vi, no mundo todo, mulheres melhores do que estas para coabitar. As nativas das ilhas Maldivas não deixam nada aos cuidados de seus maridos: elas mesmas põem e tiram a mesa, lavam as mãos deles, trazem água para as abluções e cobrem-lhes os pés quando dormem. Elas têm por costume não se sentarem à mesa com o marido, para que este não saiba o que sua mulher come. Eu me casei nas Maldivas com várias mulheres. Algumas comeram comigo só depois de lhes ter feito muitos agrados; outras, porém - por mais artimanhas que eu usasse - não consegui vê-las comendo.

Talento Natural para as Artes

(op. cit. p. 723. Trad.: E. A. Lucci)

É um fato bem conhecido e descrito pormenorizadamente por muitos autores que os chineses são os mais hábeis e mais dotados de todos os povos no que diz respeito às artes. Quanto à pintura, ninguém se assemelha a eles em perfeição, nem os cristãos nem nenhum outro povo. Neste campo, possuem um talento imenso e fiquei assombrado com o que vi. Por exemplo, não entrei em nenhuma de suas cidades sem que encontrasse, a meu redor, meu retrato e os de meus companheiros gravados nas paredes e em cartazes expostos nos mercados. Certa ocasião, entrei na capital do sultanato, passando pelo mercado dos gravadores e cheguei ao palácio real, junto com meus companheiros, vestidos conforme os usos do Iraque. Quando, ao entardecer, retornei do palácio, voltei a cruzar o mencionado mercado e vi minha imagem e a de meus amigos pintadas em cartazes afixados aos muros. Cada um de nós pôs-se a examinar cuidadosamente os retratos, chegando à conclusão de que não apresentavam nenhuma falha. Disseram-me que o soberano é quem havia ordenado que assim se fizesse: vieram ao palácio enquanto estávamos lá e puseram-se a fitar-nos sem que notássemos. Este é o costume: pintar o retrato de todos os visitantes. Mais ainda, se um estrangeiro comete uma má ação e vê-se obrigado a fugir, enviam seu retrato às outras províncias e, graças a esse recurso, procuram o infrator e, onde quer que se encontre um homem cujo rosto corresponda à imagem, prendem-no.



[1] . IBN BATTUTA través del Islam, Madrid, Alianza Ed., 1993, p. 429.