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Uma Nova Forma de Pensar

 

Sylvio R. G. Horta
Doutor FEUSP

 

Ao lermos um livro de outra época - escrito há cem, duzentos ou mil anos - corremos o risco de entendê-lo demais, isto é, de entendê-lo a partir do nosso contexto, causando assim uma distorção histórica. O contexto óbvio para o leitor da época é sombra para nós. Como ler Platão tendo presente um mundo sem luz elétrica, sem televisão, sem automóveis, sem cristianismo, sem os vinte e tantos séculos de história que dele nos separam? Como se vestiam, como soava a língua grega, qual o “clima” da época. Muito da ciência histórica, não é mais do que esse esforço de adquirir sentido histórico. Sentido que nos possibilita uma perspectiva que se dá conta de si mesma e é, portanto, mais adequada, menos distorcida, capaz de filtrar do fluxo presente o depósito do passado.

Apesar deste perigo, se olharmos, agora, para os livros de uma perspectiva mais positiva, considerando suas infinitas possibilidades - junto com a invenção da escrita e sua consolidação nos livros -, veremos que a escrita foi e ainda é a técnica que possibilitou as mudanças mais radicais pelas quais já passou a história ( [1] ).

A importância do ler e do escrever também aparece nas considerações sociais: a medida da educação de uma sociedade toma como referência o grau de analfabetismo da população. Ler e escrever, hoje - não se perca de vista que nem sempre foi assim -, é parte integrante da realidade humana. Em princípio, é menos homem quem não sabe ler e escrever ( [2] ).

Com a escrita, o homem pôde acumular memória, a experiência vital pôde ser objetivada e o que se passava de boca a boca foi arquivado em formas que seriam inimagináveis se contássemos apenas com a tradição oral. Com a escrita e depois com a difusão do livro, houve uma mudança radical na forma de pensamento e, também, na linguagem. E essa mudança representou uma profunda transformação na estrutura da própria vida. É possível pensar a ciência ocidental sem a escrita? Como seria a física ou a história, por exemplo, se tivéssemos apenas a fala para transmiti-las através das gerações? É exagero relacionar escrita e formas de pensamento? Ou ambas com a própria vida? ( [3] ).

O que aconteceria, por exemplo, se eu quisesse ter uma idéia, um pensamento mais claro sobre a história da relação livro/pensamento/vida? Perguntar para as pessoas a meu lado? Claro, mas isso é passar o problema para o outro, o que pode ser válido, mas o que queremos agora é descobrir como posso pensar concretamente algo sobre o passado. Poderia recorrer a minha memória, mas por mais velho que fosse seria muito pouco para se saber do passado. Vou sair pelo mundo em busca de restos de civilizações? Mas isso pressupõe muito conhecimento e, já é óbvio, esse conhecimento, nesse mundo concreto que vivemos, é conhecimento que só se adquire lendo, lendo muito.

Ortega y Gasset - que, segundo ele mesmo, chegou a ler 10 horas por dia -, proferiu uma conferência (depois publicada em livro) - A missão do bibliotecário -, de onde extraí alguns trechos que podem nos auxiliar nessa busca, pois não há nada melhor do que um bom livro (mesmo com seus possíveis erros), para nos orientar na selva cultural de nosso planeta, que vem tomando o lugar da vegetal...

“Até o Renascimento, a necessidade do livro não era socialmente vigente (...). A necessidade do livro nessa época passa a ter o caráter de fé, fé no livro. A revelação, o que Deus havia dito e ditado ao homem, perde sua eficácia e começa-se a esperar tudo do que pensa o próprio homem com sua razão e, conseqüentemente, espera-se tudo do que o homem escreva”.

“Pois bem; a Revolução Francesa deixara transformada a sociedade européia detrás de sua melodramática turbulência. À sua antiga anatomia aristocrática, sucedeu uma anatomia que se auto-proclamava democrática. Esta sociedade era a derradeira conseqüência daquela fé no livro que o Renascimento havia sentido. A sociedade democrática é filha do livro, é o triunfo do livro escrito pelo homem escritor sobre o livro revelado por Deus e sobre o livro das leis ditadas pela autocracia. A rebelião dos povos havia sido feita em nome de tudo isso que se chama razão, cultura, etc.”.

“Assim é que, por volta de 1840, o livro já não é meramente necessidade no sentido de ilusión, de esperança, mas - sem Deus e com a autoridade tradicional e carismática volatilizada - passa a ser a última instância em que se pode fundar o todo social. É necessário agarrar-se a ele como a uma tábua de salvação. O livro torna-se socialmente imprescindível. Por isso, é nessa época que surge o fenômeno das tiragens muito numerosas. As massas se lançam aos volumes com uma urgência quase respiratória, como se fossem balões de oxigênio (...). Sem ciências, sem técnicas, essas sociedades de alta densidade populacional e com tão alto nível de vida não podem existir materialmente. E, menos ainda, poderiam viver moralmente sem um grande repertório de idéias. A única possibilidade, por vaga que fosse, de que a democracia chegasse a ser efetiva, consistia em que as massas deixassem de sê-lo por meio de enormes doses de cultura, entenda-se, cultura autêntica, que brotasse com evidência de cada homem e não meramente recebida, ouvida ou lida”.

Essas idéias de Ortega, que pude ler graças ao livro que tenho em minhas mãos, são um bom exemplo de pensamento histórico. Mas, sendo Ortega um dos dois maiores oradores de nosso século, o que não seria poder assisti-lo proferindo essa palestra?

A escrita foi uma revolução tecnológica, mas o que acontecerá agora que a tecnologia - para fixar a palavra, que se vai com o vento -ganhou novas e inesperadas dimensões: não só é possível imprimir com mais facilidade, mas também ampliar o número de pessoas com acesso à informação. E o que é realmente novo é que agora podemos conservar som e imagens! Como seria nosso conhecimento dos trovadores se clicando um botão tivéssemos o acesso não apenas às letras de suas canções, mas às músicas e ao próprio cantor com seu instrumento? Ou  o que não nos ensinaria ouvir a Odisséia como era realmente cantada (ou será que era recitada?) pelos gregos.

Nesse sentido, pode-se prever um novo salto, em matéria de conhecimento, quase inimaginável para nós (e, ao mesmo tempo, uma queda em um possível desconhecimento). Se ao estudarmos um período histórico como a Idade Média, por exemplo, tivéssemos acesso aos melhores textos e, ao toque de botões, enquanto as dúvidas fossem surgindo, conectássemos outros textos, dicionários, filmes sobre a época, fotografias, mídia ilustrando estilos arquitetônicos e modos de vida, etc., nossa capacidade e velocidade de aprendizado, a capacidade de lidar com o excesso de informação, tudo isso iria sofrer - e já está sofrendo - uma transformação radical que vai altera radicalmente nossa capacidade de pensar.

Nesse sentido, um exemplo do que já está acontecendo, é o desvendamento do código genético, impensável sem o computador: seriam necessárias décadas de cálculo e análise para se descobrir um pouco do que se descobre a cada ano. Nas ciências humanas podemos analisar em hipertexto as obras completas de pensadores: por exemplo, que Tomás de Aquino, ao longo de sua obra ( [4] ) cite exatamente 32 sentenças como provérbios é uma pesquisa que requer, hoje, somente uns poucos minutos.

Quem não percebe aonde isso pode levar sofre de cegueira para o futuro ou teme demasiadamente os lados negativos que poderão sobrevir. E, realmente, não é de esperar que essas mudanças venham só para melhor, o que, sim, é claro, é que teremos que lidar com elas. Se a engenharia genética será uma catástrofe ou não, dependerá em grande parte da nossa capacidade de pensar agora suas conseqüências e não fechar os olhos fazendo de conta que o futuro não virá.

O texto citado de Ortega fala, também, do livro como dificuldade, do perigo da falsificação pelo excesso de informação ( [5] ) e podemos adivinhar que o problema, hoje, será ainda mais grave, atingindo um grau proporcional ao das facilidades conquistadas. Mas há coisas que depois de iniciadas tornam-se inevitáveis, não se pode mais voltar atrás. Podemos abandonar a eletricidade? Há cem anos ela era pouco mais do que uma idéia, hoje não se vive sem ela, a sociedade acaba sempre por se estruturar em volta das novas técnicas e passa a depender delas para sua sobrevivência. Não se trata de prometer o paraíso. O avanço das técnicas trará novas soluções e novos problemas, novas felicidades e infelicidades. Trata-se de ver o que está acontecendo à nossa volta e prepararmo-nos para o salto da humanidade rumo a novos patamares.



[1] . Embora tenha havido alguma mudança a esse respeito, a história ainda é vinculada quase que inteiramente à escrita e a pré-história é definida como o período que antecede a sua invenção. É discutível se esse critério é ou não um exagero de nossa civilização de base literária, mas, de qualquer modo, evidencia o peso histórico da técnica de se guardar o que se vai com o vento: as palavras.

[2] . Isso, evidentemente, em se tratando de uma avaliação social; há, porém, níveis mais profundos de se ser mais ou menos homem.

[3] A história da relação pensamento/técnicas de suporte, o que costuma ser o estudo da relação entre pensamento e linguagem, necessita de aprofundamento no sentido concreto de incluir a escrita, o livro, a imprensa etc. O pensamento e a linguagem costumam ser estudados de modo demasiadamente abstrato, lógico, ou demasiadamente materialista (outra abstração). É raro encontrarmos o estudo da estrutura empírica da nossa vida tal como ela acontece no dia-a-dia nos aspectos pessoal e social.

[4] Que comporta cerca de cem títulos: uma delas, a Suma Teológica tem a extensão de dois ou três Aurélios.

[5] . Diz Ortega: “O livro, pois, ao conservar só as palavras, conserva só as cinzas do verdadeiro pensamento. Para que este reviva e perviva não basta o livro. É preciso que outro homem reproduza em sua própria pessoa a situação vital a que aquele pensamento correspondia. Só então pode-se afirmar que as frases do livro foram entendidas e que o dizer pretérito se salvou. Platão expressa isto dizendo que só então os pensamentos do livro são filhos legítimos, porque só então são verdadeiramente pensados e recobram sua evidência originária. Mas só poderá fazer isso aquele que se encontra seguindo a mesma pista que o autor. E, portanto, aquele que antes de ler o livro já pensou sobre o tema e conhece suas veredas (...). Quando não se faz isso, quando se lê muito e se pensa pouco, o livro é um instrumento terrivelmente eficaz para a falsificação da vida humana: 'confiando os homens no escrito, crerão dar conta das idéias. Porém, tomam-nas por fora, graças a sinais externos, e não por dentro, por si mesmos... Pensando possuir a verdade, acreditar-se-ão aptos para julgar sobre tudo, quando, a rigor, não sabem nada e, além disso, serão intragáveis porque, em vez de ser sábios, como presumem, serão só depósito de frases'. Isto disse Platão, há vinte e três séculos”.