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‘Más que los Letrados’: Reflexões sobre o Feminino na Criação Literária de Teresa de Jesus [1]

 

Mª de la Concepción Piñero Valverde
FFLCHUSP

 

Quem julgue possível estabelecer rígidas separações entre a criação literária e a vida de oração, dificilmente irá ao fundo do processo criativo de Teresa de Jesus. Em Teresa, buscar a escritora é buscar a mulher que foi também grande na vida de oração. E não será demais acrescentar que Teresa está bem longe do estereótipo de uma contemplativa. A oração, para ela, era bem mais que a repetição de fórmulas e a contemplação era bem mais que devaneio.

Pelo que se acaba de ver, talvez convenha começar estas considerações sobre a escritora relembrando o que ela mesma diz sobre o caminho para a contemplação, numa das páginas das Moradas. O importante, diz ela, não está en “pensar mucho, sino en amar mucho” (Moradas IV, 1, 7) [2] . E as palavras com as quais descreve a oração ficaram famosas: “[...] no es otra cosa oración mental, a mi parecer, sino tratar de amistad, estando muchas veces tratando a solas con quien sabemos nos ama” (Vida, 8,5). Creio que é desta percepção da oração como convívio de amigos que é preciso partir para entender Teresa até mesmo como escritora.

Nos escritos teresianos há sempre a consciência de um diálogo amistoso. E dentro desse diálogo é que nascerão os textos que se consideram, mesmo literariamente, suas obras-primas, como as Moradas. Já no início desta obra lemos que Teresa se dispõe a escrever para obedecer à determinação, vinda das autoridades religiosas, a de que compusesse um livro sobre a vida de oração, para uso das irmãs carmelitas. Os superiores julgavam que seria mais fácil que as mulheres se entendessem entre si. Teresa aceita a incumbência e fala primeiramente com suas irmãs (embora, desde o começo conte também com a possibilidade, que lhe parece duvidosa, de ser útil também a outros). Vale escutar suas palavras:

"Díjome quien me mandó escrivir que, como estas monjas de estos monasterios de nuestra Señora del Carmen tienen necesidad de quien algunas dudas de oración las declare y que le parecia que mijor se entienden el lenguaje unas mujeres de otras [...] (Moradas, Prólogo, 5).

Ao começar a escrever, pois, Teresa tem consciência de que sua conversa sobre a oração será, em primeiro lugar, uma conversa entre mulheres. E se prepara para cumprir o mandado dos superiores que julgam que "mijor se entienden el lenguaje unas mujeres de otras”. Aqui há dois pontos que em nosso caso parecem merecer mais atenção. Vimos há pouco que, para Teresa, pôr-se em oração é "tratar de amistad [...] con quien sabemos nos ama”. Estas Moradas, portanto, são exemplo privilegiado do que é oração: estamos diante de uma conversa entre amigas, entre irmãs: “amigas mías”, “hermanas” é como Teresa as chama (cf. Camino de Perfección, p. 319). E o assunto da conversa é Deus, visto por todas elas como o amigo por excelência. Assim, Teresa não se limita a dar ensinamentos teóricos sobre a oração: ela os põe em prática, ao criar entre suas irmãs um convívio de amizade, diria eu quase uma ‘tertúlia’.

Outro ponto parece digno de atenção: a linguagem, justamente, que neste caso é a das mulheres. Ou seja, quando existe amizade, a linguagem da conversação não é o discurso de quem se pretende mais capaz e sim a fala em que todos se sentem iguais, onde todos procuram o que há de comum entre amigos. Surge, então, a esta altura, a pergunta inevitável: haveria diferença entre a linguagem da mulher, e desta mulher concreta, Teresa de Jesus, e a linguagem dos homens, dos outros que haviam tratado da oração?

Tentar responder a essa pergunta nos levaria demasiado longe. O que se pode, neste momento, é simplesmente lembrar uma importante distinção, não tanto entre homens e mulheres, mas entre as condições culturais em que então viviam os homens e mulheres que escrevessem sobre oração. Os homens que para isso tomavam da pena eram quase sempre clérigos, ou seja, acadêmicos, com formação filosófica e teológica. Escreviam em razão de sua própria condição de sacerdotes ou religiosos, e sua atitude era fundamentalmente docente. Bem por isso, tendiam a expressar-se não no linguajar desataviado das palestras familiares, mas por meio de conceitualizações formuladas em linguagem acadêmica. Outra era a situação das mulheres. Quando lhes fosse dado escrever sobre os mesmos temas (dificilmente o fariam por iniciativa própria), sua atitude era fundamentalmente discente, como discípulas que submetem o texto à revisão do mestre. Assim, ainda que leitoras de obras espirituais, mal poderiam reproduzir a linguagem acadêmica, com a qual não estavam familiarizadas.

Reflexos dessa atitude encontram-se na formação de uma escritora como Teresa. Ela havia sido alguém que gostara de livros e desde menina havia feito leituras na biblioteca de seu pai, mas não tinha feito cursos de filosofia ou teologia. Assim, ao ser chamada a escrever, o que terá a seu dispor não será a linguagem douta de quem ensina e sim a despretensiosa, do quotidiano. Não a linguagem abstrata, mas a concreta, de quem fala menos pelos conceitos e mais pelas imagens familiares.

Mas em Teresa o emprego da linguagem do quotidiano ultrapassa a contingência que lhe daria um caráter de inferioridade (usar a linguagem familiar por falta de domínio de outra, mais apropriada e precisa). Longe de ser mera conseqüência de haver ficado estranha ao mundo acadêmico, a linguagem familiar de Teresa torna-se o instrumento mais adequado, o único realmente adequado, para expressar sua experiência de oração como convívio de amizade. E nisto, nesta adequação estilística entre o que se diz e o como se diz, está, precisamente, um dos segredos da beleza literária dos escritos teresianos.

Teresa prefere expressar-se por imagens, como acabamos de perceber. E tem plena consciência de que o texto que vai criando é, por isso mesmo, diferente de outros, redigidos pelos escritores de seu tempo. É com “amor” e “espiriencia” que ela escreve (e aqui não estaria longe de muitos varões experimentados e devotos), mas o que escreve tem outra particularidade, que não se encontra nos livros dos “letrados”:

“[...] podrá ser aproveche para atinar en cosas menudas más que los letrados que, por tener otras ocupaciones más importantes y ser varones fuertes, no hacen tanto caso de las cosas que en sí no parecen nada y a cosa tan flaca como somos las mujeres todo nos puede dañar” (Camino de Perfección, Prólogo, 3).

Aqui, onde à primeira vista pareceria haver somente uma confissão de fraqueza do sexo feminino, Teresa revela com finura a consciência de que escreve de modo todo seu. Note-se a percepção do pouco caso de alguns “varones fuertes” para com a psicologia feminina e para com as condições a que ficava relegado o mundo feminino, então quase sempre restrito à pequenez do quotidiano, às “cosas menudas”. Para todas as mulheres que estavam longe do mundo das “ocupaciones más importantes”, sua palavra de mulher, ela bem sabe, “podrá ser aproveche [...] más que los letrados”.

É que Teresa sabe ir além das aparências e ver nessas “cosas menudas” a importância que tantos “letrados” não conseguem perceber: “en sí no parecen nada”, diz ela. E não parecem nada para um discurso espiritual que fala da oração como de um tema acadêmico; serão tudo, entretanto, para um discurso que fale da oração como quem trata “de amistad”, entretendo-se com “quien sabemos nos ama”. Aqui as “cosas menudas” se tornam o sal da palestra amena entre amigos. E as mulheres, desde Marta e Maria, sabem “más que los letrados” como entreter amigos. Não é difícil imaginar que, séculos mais tarde, lidas no Carmelo de Lisieux, estas palavras levassem uma filha e homônima de Teresa a encontrar seu “camino de perfección”, o pequeno caminho espiritual de que foi proclamada doutora.

A santa escritora insiste nisto: o clima de oração tem de ser familiar. Com Quem nos ensinou a pedir o pão quotidiano não são necessárias prolixidades ou termos rebuscados. É o que ensina, ao tratar do Pater Noster:

“[...] rezaremos con mucho sosiego el Paternóster y las más oraciones que quisiéramos y ayudarnos há el mesmo Señor a que no nos cansemos; porque a poco tiempo que forcemos a nosotros mesmos a estarnos con El nos entenderá por señas, de manera que si havíamos de decirle muchas veces el Paternóster nos entienda de una. Es muy amigo de quitarnos de travajo, aunque en un hora le digamos una vez, como entendamos estamos con El y lo que le pedimos y la gana que tiene de darnos –en fin, como padre- y cuán de buena gana se está con nosotros y nos regalemos con El, no es amigo de que nos quebremos las cabezas” (Camino de Perfección, 50, 2).

O Senhor “es muy amigo de quitarnos de travajo”, “no es amigo de que nos quebremos las cabezas”, pois é Pai que se alegra com a companhia de sua família: “de buena gana se está con nosotros” Nesse convívio familiar são as coisas quotidianas, as “cosas menudas” que fazem o encanto da conversação. E é tantas vezes nas ocasiões mais simples que Teresa encontra a beleza e originalidade: nas situações do do dia-a-dia, da experiência caseira, até. Vamos a um exemplo somente. Ao falar das propriedades da água, como símbolo de purificação espiritual, exclama Teresa:

“Es la otra propiedad, limpiar cosas no limpias. Si no huviese agua para lavar, ¿qué sería del mundo?” (Camino de Perfección, 31, 4).

É a exclamação espontânea de quem pensa na faxina da casa, na limpeza da cozinha, no tanques de roupa, enfim, em todas as “cosas menudas” que preenchiam – e ainda hoje muitas vezes preenchem – a existência quotidiana da mulher.

Justamente porque as mulheres não têm acesso ao discurso acadêmico – como protagonistas ou destinatárias – Teresa bem sabe que seu grande recurso está nesta outra linguagem. Diz a santa escritora: "[estas cosas] los letrados y entendidos muy bien las saben; mas nuestra torpeza de las mujeres todo lo há de menester, y ansí por ventura quiere el Señor que vengan a nuestra noticia semejantes comparaciones (Moradas, I, 2, 6).

Essa “torpeza de las mujeres” outra coisa não é que a falta de formação acadêmica, que as deixa entorpecidas diante da complexidade do léxico abstrato. E será precisamente ao se conformarem com essa “torpeza”, ao se voltarem para o quotidiano, ao desenvolverem “semejantes comparaciones” que algumas das páginas teresianas alcançarão os resultados literariamente mais notáveis. Se houvesse escrito como os teólogos de seu tempo, ainda assim é provável que Teresa fosse uma grande doutora, mas talvez não fosse a grande escritora que é também. É graças à sua apresentação familiar, ao seu ritmo coloquial, à riqueza e à originalidade de suas imagens que a prosa teresiana adquire características de poesia, como a das parábolas do Evangelho.

Não é possível aqui sequer tentar a análise dessa prosa. Mas é preciso ao menos tentar encontrar mais alguns exemplos que sirvam para confirmar o que antes se apontava. Já ao começar a escrever as Moradas, Teresa delineia a imagem de "nuestra alma como un castillo todo de un diamante u muy claro cristal, adonde hay muchos aposentos, ansí como en el cielo hay muchas moradas [...] unas en lo alto, otras en bajo, otras a los lados, y en el centro y mitad de todas éstas tiene la más principal, que es adonde pasan las cosas de mucho secreto entre Dios y el alma (Moradas, I, 1, 1 e 3). Esta castelhana já de início pensa nos ‘castillos’ que via desde sua infância para tornar concreto o que se dá no interior da alma.

Os cômodos do castelo, como se sabe, formam círculos concêntricos, que se vão estreitando até chegar ao aposento principal, onde se dá o encontro com Deus. Mas falar em círculos concêntricos é passar abstrações, que mal se coadunam com a imagem de Teresa. Para dar a entender às destinatárias da obra, suas irmãs carmelitas, como se organizam os aposentos do castelo, é ao quotidiano que ela recorre. Eis o que lhes diz: "pues tornemos ahora a nuestro castillo de muchas moradas. No havéis de entender estas moradas una en pos de otra como cosa en hilera, sino poned los ojos en el centro, que es la pieza u palacio adonde está el rey, y considerad como un palmito, que para llegar a lo que es de comer tiene muchas coberturas, que todo lo sabroso cercan. Ansí, acá, en rededor de esta pieza están muchas y encima lo mesmo; porque las cosas del alma siempre se han de considerar con plenitud y anchura y grandeza [...] y a todas partes de ella se comunica este sol que está en este palacio” (Moradas, I, 2, 8).

Creio que basta este exemplo para que se entenda por que se afirma que as Moradas são uma obra de valor não só espiritual, mas literário. Mas continuemos um pouco mais. Leiamos, ainda nessa obra, a famosa página em que Teresa descreve a oração por meio de uma criatura minúscula, das mais humildes da natureza. Suas palavras são estas (Moradas, V, 2, 2):

"Ya havréis oído sus maravillas en cómo se cría la seda, que sólo él pudo hacer semejante invención, y cómo de una simiente que es a manera de granos de pimienta pequeños (y yo nunca la he visto, sino oído, y ansí si algo fuere torcido no es mía la culpa), con el calor, en comenzando a haver hoja en los morales, comienza esta simiente a vivir; que hasta que hay este mantenimiento de que se sustentan se está muerta; y con hojas de moral se crían, hasta que después de grandes les ponen unas ramillas, y allí con las boquillas van de sí mesmo hilando la seda y hacen unos capuchillos muy apretados, adonde se encierran; y acaba este gusano, que es grande y feo, y sale del mesmo capucho una mariposica blanca muy graciosa”.

Esta imagem do bicho-da-seda que sai do casulo e se transforma em borboleta leva Teresa ao plano espiritual, onde compara o bichinho aos que renascem pelo calor do Espírito Santo, isto é, pela graça que os transforma. Com esta alegoria, dá a perceber o processo espiritual de vida, morte e transformação, que culmina na união divina. A iniciativa do processo, mostra a santa escritora, somente a Deus pertence; a contribuição humana é dispor-se a aceitá-lo, dispor-se a morrer para transformar-se em Deus.

Fiquemos um pouco nesta linda imagem, uma das mais conhecidas dos escritos teresianos. É logo de notar sua originalidade. Se a literatura com freqüência recorre à observação dos animais (basta lembrar as fábula, os apólogos, os bestiários medievais) poucas haviam sido, até então, as menções escritas ao bicho-da-seda. Era como exemplo, entre tantos outros da grandeza de Deus, que o bichinho havia sido citado, nos raríssimos casos em que os escritores espirituais lhe haviam feito menção. Mas Teresa lembra-se de empregar sua imagem como centro mesmo da descrição da transformação espiritual, que se opera na alma humana. Mais notável é que ela parece nunca ter tido ocasião de ver, diretamente, o que descreve: aqui, nesta sua original criação literária, entra não somente o gosto do quotidiano, mas a colaboração da fantasia e da memória.

De fato, Teresa escreve que, neste ponto, procura fundamentar-se no que ouviu contar. E não é improvável que o tivesse ouvido contar em sua própria família, pois seu avô tinha sido comerciante de panos, entre os quais panos de seda. Aliás, desde a época da entrada dos árabes na Península Ibérica, a indústria da seda florescera, durante muito tempo, na Espanha, não só em Granada, mas também em Castela, terra de Teresa.

Seja como for, a imagem do bicho-da-seda que se torna borboleta dá a entender, em termos concretos e familiares, todo o percurso espiritual, a começar por aquilo que a linguagem teológica prefere chamar de via purgativa. Além disso, a evocação do bicho-da-seda envolve em si muitas outras pequenas imagens concretas, que nos fazem ver, em pormenores, o que descrevem: seda, grãos de pimenta, folhas de amoreira...

Se passássemos a outros escritos teresianos, como a Vida, Las Fundaciones ou o saborosíssimo Epistolario, poderíamos confirmar traços como os que se acabam de observar. Nessas outras obras-primas voltaríamos a perceber por que a linguagem de Teresa se torna viva, coloquial, afetiva, enfim, poética, para repetir o que já se disse. Mas já se disse também que não é possível aqui sequer tentar essa análise. Resta, portanto, convidar o leitor a passar às páginas de Teresa de Jesus e confirmar, por si mesmo, que está, sim, diante de uma grande mestra espiritual, mas também de uma grande escritora, a maior de todas as que até hoje empregaram a língua espanhola.



[1] . Este texto foi elaborado como breve introdução à obra literária de Santa Teresa e apresentado, a estudantes brasileiros, num colóquio sobre literatura e mística.

[2] . Todos os textos citados foram tirados da seguinte edição: Teresa de Jesús, Obras Completas. Madrid: Bilioteca de Autores Cristianos, 1962.