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Aspectos da Poesia Árabe Pré-Islâmica

 

Prof. Dr. Helmi M. I. Nasr
(Professor Titular de Língua, Litera-
tura e Cultura Árabes - FFLCHUSP)

 

    A literatura e, particularmente, a poesia estão profundamente enraizadas na tradição árabe. Se os primeiros registros literários são do século V, a "literatura oral", sem dúvida, é muito mais antiga: multimilenar. Entre os árabes, a eloqüência sempre foi valorizada: era, inclusive, uma condição exigida para se poder exercer a chefia da tribo.

    Se aquelas primitivas tribos árabes não se destacavam em outros campos da cultura, na poesia, pelo menos, eram imbatíveis: graças ao espírito contemplativo e observador, desenvolvido e propiciado pelo ambiente e pelo modo de vida nômade. Desde a infância, aprendia-se a refletir e a descrever o camelo, o vento, as montanhas, o céu, as estrelas, a noite do deserto...

    Havia feiras literárias anuais e gravava-se em ouro, sobre folha de palmeira, as peças vitoriosas que eram dependuradas (daí seu nome mu'alaqat (1)) na Kaaba.

    Este primeiro momento da literatura árabe(2), denominado Jahilyiah (3), é o que mais se aproxima da alma do povo; a partir de 750 (período abássida) há – também na literatura – uma miscigenação, que absorve elementos advindos de diversas outras culturas e um acentuado refinamento (4).

    Assim, à Jahilyiah devemos nos voltar, se quisermos analisar os traços mais genuínos da tradição árabe (5). Nesse período, já encontramos provérbios e peças sapienciais, como as poesias de Zuhayr Ibn Abi Sulma que, após louvar as virtudes da convivência e exortar os ricos a serem generosos com os de seu povo, apresenta a inexorabilidade da morte,

"que tem meios de atingir quem a teme / mesmo que se tente escapar dela, escalando as alturas do céu"

        Wa man haba asbaba al-manaya yanalnahu / Wa in yarqa asbaba as-sama'i bissulami.

    Um outro ponto a destacar é a sonoridade: os peculiares recursos fonéticos da língua estão a serviço da expressão poética. É o caso de um longo poema do príncipe dos poetas da época pré-islâmica, Imru Al-Qays, que contém um verso antológico nesse sentido.

    O poema – um dos tantos da época, dedicados a celebrar o cavalo árabe – começa descrevendo a sensação de cavalgar um portentoso corcel, dotado da força do vento. É madrugada, os pássaros nem ainda saíram de seus ninhos; é tal a imponência do nobre animal que, se alguma fera o avista, fica imediatamente paralisada, estarrecida ante a fogosidade do puro-sangue.

    Seu tropel é belo e harmônico, embora indomável como a rocha que a chuva precipita em desabalada carreira desde o alto etc...

    Ao descrever a impetuosidade desse movimento, o poeta-cavaleiro diz que sua montaria "avança, retrocede, arranca e recua num mesmo ato" o que, no original árabe, é toda uma onomatopéia:

        Mikarrin, mifarrin, muqbilin, mudbirin, ma'an!

    Também é grandiosamente dolorosa a sonoridade da poetisa Khamsá' nos versos em que lamenta a morte do irmão:

        "Falá, wa lahi lá, ansaka hatta / Ufárika muhjaty wa yushaqa ramsy"

(Pois eu não, por Deus não, eu não te esquecerei / até que me separe de minha alma e até que se fenda o meu sepulcro!).

    Do ponto de vista da temática, note-se a presença das eternas hospitalidade e generosidade orientais, já descritas, por exemplo, num dos mais antigos monumentos da literatura árabe, com sutilezas psicológicas de incomparável grandeza humana: o poema de Hatim at-Taiy (6).

    Poderíamos recordar outros nomes como os imortais Antara e Nabigha Al-Dhubiani, mas, dada a importância que hoje se dá a estudos sobre a mulher em outras épocas, destacamos finalmente, a poesia dos dez conselhos que certa beduína deu à filha na noite de núpcias.

 

 

Os Conselhos da Beduína
(Tradução de Helmi M. I. Nasr)

 

Ó filhinha: estás para te separar do ambiente em que te criaste
E prestes a trocar o ninho em que engatinhaste
Por uma casa e um companheiro, para ti desconhecidos
Leva de minha parte estes dez conselhos, para ti, um tesouro:

1) Acompanha-o docemente (com sobriedade).
2) Convive com ele em suave obediência e respeito.
3) Esteja atenta ao lugar onde pousa, em ti, o olho de teu marido: que não encontre em ti feiúra.
4-5) Não descuides da hora das refeições e não perturbes com estrépito o seu sono, pois, certamente, a força da fome é como o fogo e perturbar o sono, algo odioso.
6-7) Evita ostentar alegria, quando ele estiver triste, e mostrar-te aborrecida, quando ele estiver alegre. Isso contrariaria o primeiro de meus conselhos e angustiá-lo-ias com tua tristeza.
8) Sê, entre todas as pessoas, a que mais o respeita e, assim, ele será o primeiro a honrar-te.
9) Não alcançarás o que gostas, se não antepões a satisfação dele à tua, e a paixão dele à tua.
10) O mesmo farás para as coisas de que não gostas.

Procede assim e Deus te favorecerá.

(1) Mu'alaqat, literalmente, penduradas, designa o corpus de poesias premiadas nesses concursos.

(2) E, em árabe, a mesma palavra 'arab designa árabe e beduíno

(3) Literalmente, ignorância (da revelação do Islão). Jahilyiah é, pois, o período pré-islâmico.

(4) Refinamento e, por vezes, afetação.

(5) Além, é claro, da temática suscitada, mais tarde, pelo Alcorão.

(6) O poeta narra um episódio ocorrido com ele no passado. É noite no deserto, Hatim at-Taiy está em sua solitária tenda. De repente, o inesperado: ecoam gritos terríveis como de alguém lutando contra os terrores noturnos, clamando desesperadamente, como se fôra louco (naturalmente, a hospitaleira mentalidade do poeta recusa-se a aceitar esta hipótese). Ao ouvir esses gritos, o poeta sai da tenda, desarmado de mãos e de espírito, afasta seu cão de guarda, intensifica o lume e dirige-se ao estranho com voz doce e fraterna, numa fórmula hiperbolicamente calorosa de boas vindas: "Ahlan wa sahlan wa marhaban, rushidta" ("Bem-vindo", "esta é sua casa", "esteja à vontade", "fique em paz"...). E prossegue: "Não me sentei para interrogá-lo (!); tomei um camelo de raça (!) para preparar-lhe uma refeição digna do autêntico hóspede que era para mim, seguindo o ensinamento de meu pai e dos antepassados".