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Jean Lauand
Fac. de Educ. da USP
jeanlaua@usp.br

 

O Jogo das diferenças

O livro I das Etimologias [1] de S. Isidoro de Sevilha (560-636) - autêntica enciclopédia, muito difundida ao longo de toda a Idade Média - é dedicado à arte liberal da Gramática e transmite à época nascente algumas passagens antigas, curiosas e interessantes.

Assim, no capítulo XXV - De notis litterarum - ensina a escrever criptograficamente. O código secreto sugerido é o de substituir cada letra pela seguinte na ordem alfabética. Por exemplo:

Jtjepsp ef Tfxjmib

seria, para nós, a forma cifrada de:

Isidoro de Sevilha.

O capítulo XXVI - De notis digitorum - ensina que há sinais que se fazem com os olhos, com os dedos etc. E exemplifica com a prodigiosa libertina de Ennius que "dat sese et communem facit": "Segura este, faz sinais para aquele, em outro lugar tem a mão ocupada, pisa no pé de um, dá a outro a mecha do cabelo para examinar, chama este com os lábios, canta com aquele e ainda consegue enviar mensagens com os dedos para mais um".

Ao tratar do cacófato, de tipo obsceno ou simplesmente inadequado, recrimina em Virgílio a repetição da sílaba final de uma palavra no começo da seguinte:

Iuvat ire et Dorica castra

(Dá alegria visitar o acampamento dórico).

E o uso do verbo arrigo, no verso:

His animum arrecti dictis

(Excitado o ânimo com o que foi dito...).

No capítulo XXXVI, sobre as figuras literárias, apresenta o paromeón de Ennius:

Tite tute Tati tibi tanta tyranne tulisti

(Ó Tito, suportaste tão grande tirania de Tácio) .

E o de Virgílio:

Saeva sedens super arma

(Sentada, cruel, sobre as armas).

Curiosidades à parte, Isidoro nos brinda, no capítulo XXXI - "De Differentiis" [2] -, um importante exercício pedagógico: o das diferenças.

Trata-se de um procedimento que visa caracterizar um conceito mediante o confronto com outro, de significado diferente, embora próximo.

Precisamente pelo estabelecimento das diferenças, extrai-se o que é específico de cada um: é o método - explica Isidoro - denominado "do mesmo e do outro". Desse modo, dados dois conceitos, A e B, supera-se a communione confusa entre eles, lançando mão da diferença que faz ver o que são A e B.

Assim, "rei" e "tirano" - o exemplo elementar é de Isidoro - definem-se [3] quando se tem em conta que o rei é equilibrado e ponderado, ao passo que o tirano é ímpio e cruel.

Nosso tempo, afastado do conceitual, perdeu a capacidade de discernimento, de diferenciação, de sutileza das idéias. Causa e efeito dessa síndrome é, por exemplo, o descaso para com o significado das palavras e o uso arbitrário que delas se faz no melhor estilo Humpty Dumpty. Nossa educação, totalmente voltada para o rendimento utilitário, reforça ainda mais a "criativa" sem-cerimônia do brasileiro para com o sentido das palavras. (Por exemplo, considere-se a recente expressão "dar uma geral", que pode ter o significado - entre outros - tanto de ação minuciosa - "Não! Arrumações superficiais, eu não aceito: você precisa dar uma geral nesse seu quarto!" -, como do seu contrário - "Não, você não entendeu, eu não quero uma revisão completa e detalhada, basta você dar uma geral!").

O procedimento medieval das diferenças preserva-se hoje, em frases da forma "A sim, B não" (assim, o juiz de futebol pode admoestar os capitães: "Empenho por vencer, sim; violência não!") ou, jocosamente, em pilhérias do tipo: "Não confunda..." ou "Sabe qual é a diferença entre...".

Para os autores medievais, porém, o assunto recebia a consideração devida: a diferenciação dos conceitos como fator decisivo para uma educação digna desse nome.

Não é preciso muito esforço para perceber o enorme potencial educativo do "jogo das diferenças". Da linguagem passa-se à realidade, pela mediação da experiência de cada um dos participantes. Aliás, estas vivências - e a disposição de participá-las pela discussão - são o único meio necessário para que se dê este procedimento pedagógico, que, além do mais, pode ser praticado na escola mais pobre e despojada de recursos e equipamentos.

Um exemplo: suponhamos que os conceitos em pauta sejam "compreender" e "entender".

Com o tempo, os alunos irão aprendendo uma das regras fundamentais do jogo: "Quando num dado contexto uma palavra pode, sem alteração semântica, ser substituída por outra, então aquela palavra não estava sendo usada em seu sentido próprio e profundo".

Em nosso exemplo, há diversas instâncias em que podemos usar indistintamente "compreender" ou "entender", como quando dizemos que compreendemos (/entendemos) as instruções de um manual sobre o funcionamento de um eletrodoméstico, ou que compreendemos esta ou aquela língua estrangeira, ou quando perguntamos à telefonista se ela está "compreendendo" o que estamos ditando no telegrama fonado...

Qual é então a diferença? A diferença está em que "compreender", em sentido próprio, supõe algo mais do que o frio entendimento de uma mensagem objetiva [4] : envolve, de algum modo, a captação de um alguém, um alguém vivo e concreto que expressou aquela mensagem. Senão, em que pensa uma pessoa quando diz que não lhe basta o bem-estar, mas deseja compreensão, ou quando se queixa de ser um incompreendido? (nesses contextos, "compreender" não se deixa substituir por "entender", "conhecer" etc. [5] ).

Outro exemplo: há assuntos muito mais "importantes" que devem ser adiados para atender a outros mais "urgentes", embora muito menos importantes. O simples estabelecimento desta diferenciação pode evitar muitos mal-entendidos, susceptibilidades feridas, ressentimentos etc.

O maior pensador medieval, Tomás de Aquino, aplica inúmeras vezes o procedimento distintivo. E aponta que graves erros filosóficos e teológicos procedem da confusão, da não diferenciação de conceitos diferentes [6] . Alguns exemplos:

- ódio e ira (aquele pode ser genérico - "tenho ódio de ladrão" -; esta só se refere ao singular - I-II 46, 7 ad 3).

- desejo e esperança (aquele diz respeito ao que é agradável; esta, eleva-se ao bem que se considera árduo ou difícil -  De Veritate 26, 4).

- inveja e ódio (quem inveja se entristece com o bem alheio somente enquanto este bem o faz destacar-se ou pela singularidade de sua glória; já quem odeia, se entristece com qualquer bem do inimigo - De Malo 10, 2, 1).

- agir e fazer (o agir diz respeito à transformação interior do sujeito, enquanto o fazer aponta para a dimensão externa da operação In Eth. 6, 3, 10). (Já em In II Sent. 12, 1, 5, diz Santo Tomás: "... quia non faciunt differentiam inter operari et facere, cum multum differant"). A importância dessa diferenciação torna-se evidente, quando seguimos a análise de Tomás. Diz ele: "Quando, porém, se trata da moral, a ação humana é vista como afetando não um aspecto particular mas a totalidade do ser do homem. Ela diz respeito ao que se é enquanto homem" (I-II, 21, 2 ad 2). Pense-se, por exemplo, no agir profissional. O profissional é, antes de tudo, um homem. Daí que a realização profissional deva subordinar-se à ética. Josef Pieper, a propósito, lembra a atual tendência - cada vez mais acentuada em nossa sociedade, organizada com base na divisão do trabalho - de pensarmos que uma "ação", por trazer o rótulo de trabalho (do "fazer" do trabalho), estaria eo ipso legitimada também moralmente. Esse esquecimento da ética pode levar a desastrosas conseqüências, como a descrita por Oppenheimer, referindo-se à sensação que experimentaram alguns físicos que trabalhavam na produção da bomba atômica: "From a technical point of view it was a sweet and lovely and beautiful job", "do ponto de vista técnico, um trabalho prazeroso, belo e fascinante"...

Para nós, educadores, o jogo das diferenças pode ajudar-nos a realizar uma saudável auto-crítica. Porque uma coisa é educação e outra, muito diferente, a mera instrução.

O De Ortu et Obitu Patrum

Santo Isidoro, natural de Sevilha e, a partir do ano 600, bispo dessa cidade, viveu em plena época visigoda. Isidoro entra para a história da Educação como um dos grandes elos do processo, tipicamente medieval, de transmissão da cultura antiga para os novos povos instalados no espaço do extinto Império Romano no Ocidente. Educador de visão e de aguda sensibilidade pastoral, o Hispalense identifica o problema de sua época: graves necessidades culturais, tanto mais urgentes, quanto mais precária a base de conhecimentos (adquiridos e disponíveis...). E encontra a solução pedagógica na fórmula: opúsculos que condensem o essencial, de modo fácil e acessível para a memória.

No caso da educação moral, em vez de longos tratados teórico-sistemáticos sobre as virtudes, Isidoro prefere a força paradigmática do exemplo: os protagonistas da Bíblia, as narrativas da Bíblia. E compõe o De Ortu et Obitu Patrum: um manual que recolhe os principais traços biográficos dos personagens mais importantes da Sagrada Escritura.

No entanto - como faz notar César Chaparro Gómez em seu estudo introdutório à edição crítica da obra [7] -, "o De Ortu não é uma monótona e erudita enumeração de notícias biográficas. Existe, no conjunto do texto, uma constante que enlaça essas resumidas notícias de personagens antigos. Trata-se da evocação dos atributos e qualidades, em sua maior parte espirituais e morais, que configuram especificamente o ser e o significado do personagem tratado, fazendo dele uma concreta regra de conduta. Desse modo, a pessoa, vétero ou neo-testamentária, transcende a mera leitura literal da Bíblia e se torna um exemplo".

Isidoro, educador prático, busca o essencial: no conteúdo, o paradigmático (o autor só contempla personagens louvados pela Bíblia!); na forma, a facilidade de memorização, recorrendo, por vezes, ao ritmo e à rima. Une informações resumidas a conteúdos exemplares dos personagens (de Adão a Tito) que compõem os 85 capítulos (em geral, um capítulo para cada personagem) do De Ortu. Um exemplo: o verbete Abel:

CAPÍTULO II – ABEL

Abel filius Adam
et pastor ouium,
in uita innocens,
in morte patiens,
post mortem non silens
In martyrio primus,
in oboedientia summus,
in sacrificiis Deo placens,
in meritis fratri displicens.
Abel, filho de Adão
e pastor de ovelhas
Em vida, inocente
Na morte, paciente
Depois da morte, eloqüente
O primeiro a dar testemunho da fé
O maior na obediência
Com suas oferendas, a Deus agradou
Com seus méritos, ao irmão desagradou.

A história de Abel, narrada no capítulo 4 do Gênesis, e as demais referências bíblicas a esse justo são admiravelmente compendiadas nos versos de Isidoro. Neles, resumem-se não só toda a informação bíblica sobre o personagem, como também o significado espiritual modélico que traz em si.

Abel filho de Adão e pastor de ovelhas (Gn 4, 2: "Depois ela deu também à luz Abel, irmão de Caim. Abel tornou-se pastor de ovelhas e Caim cultivava o solo").

Em vida, inocente ("Disse Jesus: 'Cairá sobre vós todo o sangue dos justos derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel...'" Mt 23, 35; cfr. Lc 11, 51).

Depois da morte, eloqüente  ("Iahweh disse a Caim: 'Que fizeste! A voz do sangue do teu irmão, do solo, está a clamar para mim'" Gn 4, 10. Já a epístola aos Hebreus - 11, 4 - diz: "Graças à fé, mesmo depois de morto, Abel ainda fala!". E mais - 12, 24 - "o sangue de Jesus, mais eloqüente que o sangue de Abel").

O maior na obediência. Com suas oferendas, a Deus agradou (diz Hbr 11, 4: "Pela fé, Abel ofereceu a Deus um sacrifício mais excelente do que o de Caim. Graças a ela foi declarado justo e Deus aprovou suas oferendas". E Gn 4, 4: "Iahweh agradou-se de Abel e de sua oferenda").

Já a paciência é ensinada por Jó (Cap. XXIV):

(...) Firme na fé, maximamente humilde, o primeiro na hospitalidade, afável em sua conduta, generoso nas esmolas, Jó, cumulado de riquezas, subitamente é arrojado na indigência (...); torna-se glorioso em sua luta: equânime na dor, suportou a perda de suas riquezas, chorou a morte de seus filhos e agüentou pacientemente as feridas de seu corpo, sempre louvando a Deus em meio a seus tormentos. Com sabedoria, resiste aos maus conselhos da mulher e, com a força da razão, rebate os argumentos dos amigos (...).

Em Moisés (Cap. XXV), Isidoro destaca seu amor ao povo:

Para governar o povo, diligente
Para corrigi-lo, veemente
Para amá-lo, ardente
Para agüentá-lo, paciente
Por seu povo, ante Deus se inclina
Como anteparo para a ira divina.

A figura de João Batista (Cap. LXV) é emoldurada por epítetos em formulações sucintas e sugestivas.

João Batista, filho de Zacarias, da tribo de Levi, nascido em Jerusalém, concebido após o anúncio do anjo, precursor de Cristo, arauto do Juiz, profeta do Altíssimo, voz do Verbo, amigo do Esposo, testemunha do Senhor, lâmpada da Luz, fim dos profetas, início do Batismo (...).

E, assim, conjugando zelo pastoral e talento literário, Isidoro realiza sua missão de educador: tornar a Bíblia acessível para a mente, para a conduta e para a memória. Pois, como ele mesmo diz no Praefatio: Quamuis omnibus nota sint qui per amplitudinem Scripturarum percurrunt, facilius tamen ad memoriam redeunt, dum breui sermone leguntur.

Todo um programa de educação medieval!



[1]. Seguimos a edição do Etymologiarum de José Oroz Reta, Madrid, BAC, 1982.

[2]. Isidoro retoma o tema em II, 29, 7.

[3]. Se quisermos jogar com as etimologias, as palavras definição, determinação e delimitação remetem a dar "fim" - finição, finitio -, "terminação" e "limitação": precisamente pelas diferenças é que "definimos": sabemos onde acaba o rei e onde começa o tirano

[4]. Aliás, a enganosa dicotomia objetivo/subjetivo bem que mereceria algumas sessões de discussão...

[5]. Para um aprofundamento no tema da diferença específica do "compreender", veja-se PIEPER, Josef  Verstehen, Freiburg, IBK, s.d., de onde tomamos o exemplo.

[6]. Explicitamente, por exemplo, em Contra Gent. 1, 17, 7 ("... hoc autem procedit ex ignorantia quid inter differentiam et diversitatem intersit") ou Contra Gent. 3, 150, 9 ("... patet ergo eos fuisse deceptos ex hoc quod non attenderunt differentiam inter dilectionem divinam et humanam") etc.

[7]. Isidorus Hispalensis - De ortu et obitu Patrum, Paris, Belles Lettres, 1985, pp. 2-3. Citaremos o original latino isidoriano por esta edição.