Home | Novidades Revistas Nossos Livros  Links Amigos

(notas da conferência, 19-10-02, na PUC-BH, no Encontro Estadual de Universitários Católicos Carismáticos)

 

Antonio Francisco Jacaúna Neto
Mestrando em teologia CES - BH

 

Introdução

A meu ver, as principais reflexões que S. Tomás faz sobre Deus são sobre: a demonstrabilidade, a essência e a semelhança entre a existência (o ser) e a essência de Deus.

De certas coisas, sabemos de sua existência, contudo não se consegue demonstrar isso em sua essência. No caso das coisas criadas, consideremos, por exemplo: a existência do ar. Ninguém irá contra a afirmação de sua existência. Entretanto, alguns não conhecem a essência do ar. Contudo, ele existe independente de ter a sua essência conhecida. Neste exemplo, vê-se a existência do ar, devido as manifestações, efeitos, que ele ocasiona. Será que o mesmo raciocínio cabe para Deus?

Para facilitar o estudo seguiremos a reflexão sobre Deus, tendo os seguintes sub-títulos: nem tudo que existe é demonstrável; igualdade do ser e sua existência; relação ontológica entre existência e essência.

Nem tudo que existe é demonstrável [1]

Não discutiremos aqui se Deus existe ou não. Trabalharemos com a idéia de que Ele existe, para saber se esta existência nos é demonstrável pelo discurso de causa e efeito. Para que algo seja demonstrável, este algo precisa ser primeiramente definido. Porém: como é possível fazer demonstração de algo sem partir de uma definição deste algo? Demonstrar algo sem falar de sua essência que lhe é anterior a demonstração? Ora, bem sabemos que Deus é um ser incompreensível, e por conseguinte, indefinível. Portanto, se Deus é indefinível, incompreensível, também seria indemonstrável? Naturalmente, em Tomás nesse contexto, a palavra “demonstração” não tem o sentido de um teorema matemático, mas o de uma indicação de caminha, via...

Ainda no âmbito das objeções - que como se sabe fazem parte do método da Suma - quando se quer demonstrar a existência de algo por seus efeitos é necessário fazer uma ligação entre ambos. Se se trata por exemplo, de um pai e um filho, demonstra-se que o primeiro existe e gerou o segundo, que também existe etc. Eles estão no mesmo gênero e é possível fazer o enlace. No caso de Deus, porém, a relação causa-efeito é problemática, pois são de ordens diferentes: um é finito e o outro infinito. Falta a proporção, a ligação entre o finito como efeito, para com o infinito como causa (que transcende o primeiro).

Que Deus é invisível não se tem dúvida: Ele só é conhecido segundo as coisas visíveis, que por Ele foram feitas. Em outras palavras, quando não existia coisa criada, visível, não se poderia ter conhecimento da existência de algo superior, ou seja do criador (que é invisível) e que pôde fazer o ainda não visível, tornar-se um ser visível. E antes deste visível ser feito, não se conhecia absolutamente nada. Foi pelas coisas feitas, criadas, que Ele começou a ser conhecido, demonstrável, conforme nos lembra S Paulo na carta aos Romanos “ Sua realidade invisível (...) tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas” (Rm 1, 20).

Para a demonstração da existência de Deus, seria preciso assentar o que se entende por Deus. A rigor, não nos é possível uma definição que compreenda Deus, o que tronaria impossível a demonstração de sua existência, a menos que nos limitemos precisamente a Deus concebido em relação às coisas que por Ele foram feitas.

Assim, a existência de Deus pode ser conhecida mediante a razão natural, sem ser baseada em nenhum artigo de fé. E na resposta às objeções é mister lembrar que os nomes dados a Deus, são devidos às manifestações, ou efeitos, que Ele causa. Ao demonstrar que o efeito é efeito, demonstra-se que ele depende da “causa primeira”, a saber, Deus. Embora sejam de gênero diferente, o efeito sempre irá ter uma causa, caso contrário deixará de ser efeito. Necessariamente há esta ligação entre um e outro, como por exemplo, o caso da vida humana: ela tem sua origem (causa) em algo capaz de causá-la e neste caso a origem está em Deus que é vida (Jo 10, 10b) e Ele a dá ao ser humano. Portanto, o efeito possui a vida porque a sua causa é portadora de vida e capaz de dá-la ao ser humano. Quando o efeito não é proporcionado à causa, ele não propiciará um conhecimento perfeito desta causa. No caso de Deus, por quaisquer efeitos, pode-se demonstrar a existência de Deus, que é a causa, mesmo que por este não seja possível o conhecimento perfeito de Deus na sua essência.

Não pretendemos aqui discorrer tematicamente sobre as cinco vias de Tomás, mas somente sobre sua estrutura formal. Assim, se a causa é inacessível (diretamente), os efeitos, contudo, são perfeitamente acessíveis. E quando se levanta a objeção de que Deus (como causa da existência de todas as pessoas e coisas) sendo infinitamente incompreensível, não seria demonstrável (e S. João Damasceno está certo, ao afirmar não ser possível saber o que de fato Deus é, na sua essência), a resposta e que o que e demonstrável não é Deus em si. Pois não é possível demonstrar a totalidade de um ser infinitamente incompreensível, partindo de demonstrações finitas e compreensíveis; porque se Ele o fosse, tornar-se-ia finito. O que é demonstrável, neste caso, diz respeito aos efeitos de Deus e quanto a isso, S. Tomás afirma que embora “não nos sendo evidente, a evidência de Deus, Ele é demonstrável pelos efeitos que conhecemos”.

O que é evidente não necessita de demonstração, porque já é óbvio. Se, por exemplo, hoje está chovendo, não necessito demonstrar esta verdade ao colega que está a meu lado, porque este fenômeno da natureza nos é evidente. Entretanto, é necessário demonstrar que em um determinado fio de energia passa uma corrente elétrica, porque não é óbvia esta verdade. Tudo o que se demonstra é demonstrável justamente devido a sua não-evidência, pois se fosse evidente seria desnecessário fazer sua demonstração. Assim, cabe falar em demonstração da existência de Deus.

Também é verdade que não necessitamos conhecer Deus na sua essência, para sabermos que sua existênica é demonstrável. Assim como sabemos do sol por meio de seus efeitos, sua luz e calor; também Deus é demonstrável pelos efeitos que Ele causa.

Deus é o princípio de tudo e talvez S. João Damasceno estivesse correto, quanto a afirmação da não demonstração de Deus, caso não houvesse criação. Só que a partir do momento em que Deus criou algo, este mesmo Deus começou a ser demonstrável.

Quanto à objeção fundamentada no fato de ser contraditório dar atributos a deus, que é infinito, a partir das criaturas, finitas, convém lembrar que estes atributos dizem respeito aos efeitos: afirma-se que elas têm sua origem em Deus, e não se afirma que elas são Deus. Não é dado nenhum atributo finito ao ser infinito, apenas é afirmado que o finito teve sua origem primeira no ser infinito.

Igualdade do seu ser e sua essência [2]

Todo efeito assimila-se a sua causa, pois é dela que ele provém. Ora, toda a criação - e o ser humano - é efeito de Deus e provém de Deus. Ao analisarmos esta questão, percebemos o seguinte: ou a natureza deste ser não se assimila à de Deus, porque a natureza do primeiro é a humanidade, enquanto que a do segundo é a divindade, e deste modo seria negada a primeira afirmação sobre a assimilação entre causa e efeito; ou a natureza do primeiro não é a humanidade e nem a do segundo a divindade; então se isto for verdade, qual será a natureza do ser humano e qual será a natureza de Deus?

Diante deste dilema, S. Tomás lembra que os efeitos provocados por Deus não o imitam na totalidade da perfeição, e sim na medida do possível. O ser humano foi criado semelhante a Deus, não igual (ver Gn 1); pois se assim o fosse, ele também seria Deus, no entanto, é tido como animal racional e não como um outro Deus. Logo, a natureza de ambos têm que ser diferente, porque é ela quem diferencia Deus como Deus e o ser humano como ser humano.

Deus é simples e uno. E se ele é uno, não pode ser múltiplo, e sim ser representado pelo múltiplo (é o que acontece a respeito da criação). Isto não supõe que a natureza do primeiro seja assimilada totalmente pela natureza do segundo.

A divindade ou deidade é a própria natureza de Deus, e ela está para ele tal qual a humanidade está para o ser humano (o que não nega a afirmação anterior, dele como animal racional). Se Deus se distinguisse da deidade, ter-se-ia uma relação semelhante à que existe entre a humanidade e a pessoa humana, e portanto poder-se-ia haver muitos deuses como há muitos homens e mulheres. Entretanto, há um só Deus, como há uma só divindade. Logo, Deus e divindade se identificam em seu ser.

A vida é o que faz este ser vivente ser possuidor desta natureza, portanto, a vida é intrínseca tanto a uma natureza quanto a outra. Desta forma, S. Tomás demonstra a ligação que há entre a natureza de Deus (causa de tudo) e a natureza do ser humano (efeito dele), porque está escrito que Deus é vida (Jo 14,6). Se a vida está para o ser humano como a divindade está para Deus, então assim como a pessoa humana é a própria humanidade, Deus é a própria divindade, ou deidade.

Continuando a exposição, é necessário ressaltar “que nos seres compostos de matéria e forma, necessariamente diferem entre si a natureza, essência e o suposto” (S.T. Q.2, A.2). S. Tomás entende natureza e essência como sendo aquilo que constitui a definição da coisa. Seria aquilo sem o qual a coisa deixaria de ser ela mesma; essência de algo é o que define o seu ser necessário.

A natureza ou essência das coisas materiais não compreende somente a forma, mas também a matéria. Como no caso do homem. Deste modo se diferencia o ser de Deus e o ser do homem, porque o ser do segundo exigiu a intervenção do ser do primeiro para poder existir, enquanto o primeiro (Deus) não exigiu intervenção nenhuma para vir a existir; conforme se lê em Jo 1,3: “ Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito”. Somente em Deus é que a natureza/essência, não é o resultado de uma causa, e por conseguinte, é igual a Deus, pois ele é a própria essência.

Normalmente ao analisarmos um determinado objeto, nós o dividimos em matéria e forma, essência, acidente... Esta é a regra. Para concebermos bem o objeto, tem-se que dissecá-lo em todas as possibilidades. Citando o ser humano, ele pode ser dissecado em matéria e forma, como também, pode ser ao tocante à essência e ao acidente. A essência de todo e qualquer pessoa humana está no ser humano, a humanidade é a sua essência. A sua essência não está em si mesmo, e sim no Homem, porque nenhuma essência pode estar em si mesma, a essência faz parte dele, repito: faz parte.

O mesmo raciocínio vale para analisarmos qualquer outro ser que não seja Deus. Deus foge à regra: esta foi feita pelo ser humano e só possui validade para análises de outro ser também criado. Deus não pode ser submetido a uma análise determinada pela divisão entre matéria e forma nem por essência e acidente, porque Ele não possui subdivisões. Ele não só é necessário a Si próprio, como também é a sua própria essência. Deus nunca sofreu nem sofrerá acidentes. Ele não tem essência, Ele é em si mesmo, ou seja, a essência (aquilo que se chama de essência nos outros seres) é em Deus seu próprio ser, conforme Ele mesmo disse a Moisés: “Sou aquele que é” (Ex 3,14).

Afirmando que nele não há diversidade, afirma-se a fé monoteísta, e isto é elementar porque é a variedade da divindade é o que dá base ao politeísmo (naturalmente, a Trindade, não é a afirmação de três deuses...).

Relação ontológica entre existência e essência [3]

S. Tomás, ao tratar deste tema, depara-se com um problema. A Sagrada Escritura diz que “no princípio era o Verbo (...) e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). ou seja, a sua existência não é um acidente, ele sempre existiu. Não foi em um determinado momento em que a potência de Deus tornou-se ato, aliás, ele não tem potência em relação à nada. Ele é ato puro. Ele subsiste todo o tempo e para alem do tempo... Partindo desta afirmação, conclui-se que o ser de Deus é a sua essência e o que subsiste nEle é Seu ser.

A essência sempre traz limitação ao ser: definir é “dare finem”, dar fins, limites, dizer onde termina: de-limitar, de-terminar. Deus não é isto ou aquilo; Deus é. Primeiro: tudo o que existe num ser e que não faz parte de sua essência, ou têm sua origem fundamentada na própria essência deste ser; ou têm sua origem fundamentada em um fator externo deste mesmo ser, de modo que a existência seria diferente da essência. Nenhum ser finito seria suficiente para ser causa do ser infinito, ou seja, a existência de Deus não provém de nenhum fator externo a ele próprio. Ora, também é impossível que a existência dele seja causada pela sua própria essência.

Outro argumento. Deus não tem potência para nada, por exemplo, ele não pôde ter sido diferente do que Ele é hoje e nem, no futuro, ele será diferente do que é hoje. Assim sendo, Ele não pôde ter sofrido qualquer efeito para poder existir, mesmo que este seja da sua própria essência; donde se resulta a igualdade tanto da essência quanto da existência em Deus.

Sobre as objeções levantadas anteriormente, S. Tomás as responde de modo singular. Quanto à primeira objeção, que expressa a susceptividade (onde nada mais poderia ser acrescentado ao ser divino), convém lembrar que não foi Deus quem sofreu novos adicionamentos em seu ser e sim, o ser humano quem evolui em seu entendimento sobre Deus.

Assim, para S. Tomás, não se pode separar em Deus a existência do ser.

Conclusão

Desde o início até o final deste trabalho, procurei mostrar a relação que S. Tomás faz entre a razão e a fé. Meu intuito era deixar claro que a razão tem por dever, demonstrar os “preâmbulos da fé”, como também esclarecer e defender o pensamento cristão, de modo que a razão e a fé sejam tidas como distintas uma da outra, mas não opostas.

Partindo da diferença entre as ciências originadas na luz racional e a doutrina sagrada, S. Tomás mostra que em Deus (e somente nEle) a essência e a existência se identificam, porque ele não só é a sua essência mas também, o seu próprio ser.

A existência de Deus se dá a conhecer quando houve a composição existencial de outros (a criação). De modo que conhecer a essência em si, o ser humano só conhece das coisas criadas, e não do que é incriado.

Procuramos brevemente mostrar que o discurso de S. Tomás é sobre a existência. Pois para ele a existência de Deus é antes que a essência, porque é a existência quem faz o ser tornar-se conhecido. É através da existência que o ser humano conseguirá alcançar analogicamente, a essência do criador; ou seja, é como se ele tivesse um princípio e fosse analisá-lo claramente através de uma exposição da existência.

Referências Bibliográficas

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, 2ª ed. Trad. De Alfredo Bosi. São Paulo, Editora Mestre Jou. 1962.

AQUINO, Tomás. Seleção de Textos, 2ª ed. Trad. De Luíz João Baraúna, São Paulo, Editora Abril Cultural, 1979 (Col. Os pensadores).

AQUINO, Tomás, Suma Teológica, 2ª ed. Vol. L, Trad. De Alexandre Correia. Caxias do sul, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Universidade de Caxias do Sul, Livraria Sutina Editora, 1980

Bíblia Sagrada, 62ª ed. Trad. Monges de Maredsons, São Paulo, Editora “ Ave Maria”, 1988.

BOEHNER, Phiotetheus; Gilson, Étienne. História da Filosofia Cristã, 2ª ed. Trad. de Raimundo Vier, Petrópolis, Vozes, 1982.

CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo Hoje, Edições Loyola, 1989.

CHATELET, François. História da Filosofia, Idéias, doutrinas, A Filosofia Medieval, do século I ao XV. Rio de Janeiro, Zahar, 1974. Enciclopédia Mirador internacional, Publicações Ltda. São Paulo – Rio de janeiro – Brasil.

SERTILLANGES, O. P. As Grandes Teses da Filosofia Tomista. Trad. L.G. Ferreira da silva, Portugal, Livraria Cruz Braga,1951.

THONNARD,F.J. Compêndio de história da filosofia, Trad. de Dr. Valente Pombo, editora Herder, são Paulo, 1968.

VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia I, Problemas de Fronteira, 3ª ed. São Paulo, Loyola, 1986.



[1] AQUINO, Tomás, Suma Teológica, 2ed., trad. Alexandre Corréa. Porto Alegre: Esc. S.S. Lourenço de Brindes, 1980, I, 2, 2: “Se é demonstrável a existência de Deus”.

[2] AQUINO, Tomás de Suma Teológica. I, 2, 3: “Se Deus é idêntico à sua natureza ou essência”.

[3] AQUINO, Tomás de Suma Teológica. I, 3, 4: “Se em Deus se identificam a essência e a existência”.