Home | Novidades Revistas Nossos Livros  Links Amigos

Língua Portuguesa, o Obstáculo

 

Yeda S. Santos
Repórter do Jornal da USP

 

O garoto de 17 anos mostra-se infeliz, por se achar obrigado a votar para presidente da República, nas eleições de 2002. Parte daquele contingente excluído, morador da favela, o menino expõe seus motivos. Alega ter de votar em políticos que enganam o povo e, portanto, nada merecem, além de sua revolta. A melhor resposta que dará à Nação que permite manifestar-se através do voto, é votar em branco.

Boa parte de seu descontentamento refere-se à forma como está sendo tratada a Língua Portuguesa. Reconhece que o Português falado pelos políticos é correto. Porém, está muito aquém de sua capacidade de compreensão. O pior momento entre ele e os candidatos que tentam seduzi-lo situa-se num tipo de linguagem culta, por eles utilizada que, ao invés de aproximá-lo, o distancia.

Sem a mínima condição de atingi-lo e a seus pares, os políticos falam a enorme parcela da população, em língua 'estrangeira'. Se conseguisse entendê-los, perceberia que a exclusão é objeto de debate entre os cultos. Mas não tem como aproximar-se. Pena, pois de ambos os lados encontram-se brasileiros que votarão nas mesmas eleições para escolher o mandatário que dirigirá o destino de todos.

Na favela, a linguagem é outra. Privilegia o olho no olho, entre os que sobrevivem do próprio sustento. Por ali, as eleições passam ao largo e apenas a tocam em momentos muito singulares: quando os habitantes vislumbram o mínimo de benefícios. Os jovens pedem, ao presidente, conserto de ruas e instalação de equipamentos de lazer: não avaliam as competências municipais.

Perdidos dos direitos de cidadania, não faz parte do cotidiano dos moradores das favelas, relacionar-se com o poder, seja lá em que nível se coloque tal aproximação. Adolescentes sentem-se donos do próprio nariz aos 13, 14 anos, idade em que os pais os consideram aptos a escolher seus caminhos. Quando envolvem-se com a criminalidade muitos tentam, fracamente, resgatá-los de forças que os disputam: a polícia e o tráfico de drogas. Portanto, relacionam-se com a sociedade baseados nessa convivência adversa e desvalorizada.

Mas querem muito aprender. São inteligentes e buscam, através de parcos recursos, saídas melhores. Sugerem programas de rádio e televisão que se aproximem de sua linguagem, para  informar sobre como identificar as pessoas certas. Reclamam de os programas veiculados não esclarecerem as dúvidas. Exceção feita ao funcionamento de urnas eletrônicas, nome, partido e passado dos candidatos, nada mais aproveitam. Ou seja, conhecem os caminhos, mas não sabem como atingi-los, impedidos pela linguagem inadequada.

Tal desencontro assemelha-se ao que registra bom número de crianças nas escolas — quase 100%. Iniciativa tida como absolutamente viável, ainda peca pelo formato. Meninos e meninas podem ir todos os dias para a aula e agredir o (a) professor (a) sem prejudicar sua promoção, contrariando os princípios fundamentais da escola, onde se manifesta o respeito, no sentido mais amplo. Freqüentam as aulas armados, enquanto o poder público impõe regras mais severas para os detectores de metais aplicados a menores de idade, tentando evitar constrangimentos. Prefere arriscar o delito. Não porque os delitos sejam mais suaves do que os detectores de  metais, mas, porque a linguagem adotada não convence. Se o detector fosse entendido como fundamental para assegurar a tranqüilidade de quem assiste às aulas, seria bem-vindo, pois nada mais constrangedor do que o  colega ao lado, armado e perigoso.

Os símbolos utilizados para atingir adolescentes excluídos não poderão estar acima de sua capacidade de compreensão, ainda que esta seja menos culta. Inculta. Por este canal deverão ser resgatados, estabelecendo vínculo através do qual deverão compreender a partir daquilo que já compreendem. O menino em questão demonstra ser ignorante. Desconhece muitas regras, por isso, vive em desacordo com elas. E, quando as reconhece, as despreza, pois sente-se desprezado por quem as elaborou.

Ignorante, não burro, argumenta que os políticos falam desse jeito, por não quererem que o povo aprenda. "Não querem que o povo fique esperto", segundo suas palavras. "Se ficar esperto — prossegue — estará consciente para trocar quem não presta por quem presta". O garoto não esconde as próprias falhas: "Já fiz muita coisa errada". Não pede perdão nem aponta culpados. A vida impõe acomodar-se aos obstáculos que criou. Alguns, sem querer. Criaram para ele? Caso os políticos falassem Português a ele inteligível, saberia melhor como decidir o futuro. Pouco preocupados com os incômodos causados a esses jovens, candidatos preferem aperfeiçoar a linguagem inadequada, sempre evitando falar ao enorme contingente que convive com a violência. Arrogam-se, ao contrário, capacidade para derrotá-la. Pergunto-me como, se colocam-se muito distantes do objeto de seu desejo. A ele apenas dirigem-se como 'estrangeiros'. Ou anônimos. Quem sabe, como ilustres desconhecidos!