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A César o que é de César

 

João Baptista Villela*
villelaw@gold.com.br

 

Quando respondeu ao grupo de fariseus e herodianos que lhe perguntaram se era lícito pagar o tributo a César (Mt., 22, 15-22), Jesus não estava apenas reenviando seus capciosos detratores à iniqüidade de sua intenção. Mais do que isso, acabava de lançar as bases da separação entre a ordem da política e a ordem do espírito. A parêmia, que o evangelista Mateus fixou em termos lapidares, iria constituir-se, daí para frente, em espécie de fio subterrâneo que alimentaria, através dos séculos, todas as construções teóricas que assinam ao Estado e à Religião domínios distintos e que, sem serem reciprocamente impermeáveis, concernem a objetos próprios.

A sentença de Jesus retomava também, de certo modo, o conceito de justiça, que se tinha começado a desenvolver em Roma e que encontrou sua expressão perfeita e irretocável na regra “suum cuique”. Em vernáculo: “a cada um o seu”. Uma formulação que se atribui a Cícero (De Officis, 1, 24), mas que talvez já se encontrasse no velho Catão e que, de tão emblemática, viria a ser assumida como divisa dos Hohenzollern e cunhada nas moedas de Frederico I da Prússia.

De passagem, talvez não faça mal assinalar que na origem do cruento conflito que se desenrola hoje no Médio Oriente, muito parece dever-se à lamentável confusão entre essas duas esferas ou reinos: o de César e o de Deus. Onde se lê “Deus”, também se pode ler, no caso, Allah ou Jeovah. As nações teocráticas, por isso que se supõem ungidas e mandatadas pela divindade, não costumam ser bons parceiros na solução dos inevitáveis conflitos que emergem da convivência humana.

Mas aqui não é a guerra entre judeus e palestinos que suscita o episódio bíblico, senão o entendimento manifestado na imprensa do País e segundo o qual os padres pedófilos não devem ser submetidos à Justiça do Estado, senão manter-se recolhidos à assistência que lhes proporcione sua Madre Igreja.

Essa opinião foi expressa na “Folha de S. Paulo” de 21.04.2002 (cad. Cotidiano, p. C1) por S. Exa. Revma. Dom Angélico Sândalo Bernardino, bispo da diocese de Blumenau. Para o prelado, que responde pelo setor de vocações e ministério da CNBB, embora a pedofilia seja crime e haja de ser punida enquanto tal, a Igreja não deve entregar os padres que nela incorrem nem à polícia nem a Justiça. E compara: “Seria a mesma coisa que pedir a um pai que entregue à polícia o filho que é usuário de cocaína” (loc. cit.).

O paralelo entre as situações seria cabível e até comovente, a não ser por conta de uma pequena, mas fundamental diferença. O pai que preserva o filho da exposição às autoridades age no interesse da vítima e não se subtrai aos deveres de cidadão. Já o padre (ou qualquer outra pessoa) que atente contra a integridade física ou moral de menores, faz-se responsável por grave lesão a outrem e deve, sim, prestar contas de seu ato. Aceitar que a Igreja, por ela própria, administre o problema e lhe dê solução significa, no limite, considerá-la fora e acima da sociedade política. Equivaleria a admitir que padres e outros membros do clero não estivessem, por exemplo, sujeitos às leis do trânsito, a recolher impostos ou a pagar as dívidas que hajam contraído.

A assistência que a Igreja pode e deve dar aos seus agentes que, por fraqueza da carne ou perturbação do espírito, incidam em delitos sexuais, não exclui o direito que a sociedade tem de zelar pela salvaguarda de seus membros e de submeter os infratores da ordem ao império da lei. O que não significa, necessariamente, punição. Nem afasta a adoção de procedimentos recuperatórios, a que todos os delinqüentes, de resto — religiosos e leigos —, têm direito. A ser válido o raciocínio de que o padre incurso em pedofilia deve permanecer ao abrigo do Estado secular, por que haveria de estar preso o Dr. Eugênio Chipkevitch? Só porque não é padre? O Conselho Regional de Medicina não poderia invocar, com igual legitimidade, a circunstância de que ele é um dos seus, para, assim, também subtraí-lo à ação do Estado?

O argumento de Dom Angélico traz ainda no seu bojo um mal disfarçado ranço de clericalismo ao interno da Igreja, enquanto Povo de Deus. Se os padres, por serem filhos da Igreja, devem estar excluídos da ação da polícia e da Justiça, por que não estariam também os outros pedófilos, que não integram a Hierarquia: não são, também eles, “filhos” da Igreja? Ou haveria aqui, tal como em correntias distorções, os que são “mais filhos” que os outros?

Quando confrontada com as práticas odiosas da Inquisição, a Igreja costuma defender-se de que ela apenas zelava pela pureza da fé. Apurada a obstinação do inquirido — se necessário, com emprego de um sofisticado e sinistro repertório de torturas —, ela não o punia. Apenas o entregava ao braço secular do poder para que este aplicasse justiça. Com o que punha a salvo o cínico adágio canônico “Ecclesia abhorret a sanguine”, isto é, “a Igreja tem horror ao sangue”.

Estaríamos agora diante de uma situação inversa? Inversa, mas não menos iníqua? Ou seja: reivindica a Igreja que o braço secular lhe confie a sorte dos que, achados em desvios sociais, devam escapar à regra da igualdade perante a lei, porque os premiaria o fato de serem membros de uma corporação?

A consciência e a prática de que os eclesiásticos são parte do corpo político, nem melhores, nem piores que os demais, nem mais, nem menos dignos de tolerância e compaixão, beneficiam a todos e é um imperativo da sociedade plural e dessacralizada em que hoje vivemos. Beneficiam, desde logo, valores capitais da democracia, como o tropismo para a universalidade das regras e o distanciamento dos privilégios. Mas beneficiam, sobretudo, o exercício da liberdade religiosa, que nada ganha com os favores do Estado e só tem a perder quando as igrejas se acumpliciam com os poderosos. Não por acaso os períodos mais fecundos do cristianismo coincidem com aqueles em que seus seguidores, oprimidos e perseguidos, tiveram de expor as vidas em testemunho de sua fé e selar com o seu sangue a crença nos Evangelhos.

Belo Horizonte, abril de 2002



* João Baptista Villela, 65, é professor titular na Faculdade de Direito da UFMG. Foi professor visitante na Universidade de Münster (1995-1996) e na Universidade de Lisboa (2000-2001).