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A Dignidade Humana

 

Mateus Deckers Leme
(Graduando em Medicina FMUSP)

 

 

De volta à Grécia mitológica

     Esculápio, filho de Apolo e da ninfa Coronis, foi educado na arte de curar pelo centauro Quíron, na cidade de Epidauro. Tornou-se tão hábil nessa arte que começou a certa altura a ressuscitar mortos, e tantas ressurreições fez que Plutão, o deus dos infernos, queixou-se a Júpiter. Este concordou que aquilo era de fato uma grande irregularidade na ordem das coisas e fulminou Esculápio com um raio, transformando-o depois na constelação da Serpente.

     Embora ainda não estejamos ressuscitando mortos, já está se tornando possível realizar praticamente qualquer sonho. E está na hora de perguntar: bem, mas qual é o limite? Imagine o seu irmãozinho clonado, criado com todo carinho, especialmente para o caso de você precisar de um coração ou um rim. Pense em 30000 Bill Gates, numa tarde de domingo no Pacaembu, comentando o golaço de um dos 22 Pelés presentes em campo e voltando depois para os braços de suas queridas “Ladies Di”: “Querido, estou preocupada com o nosso filho Mozart 419-Xa3: ele não quer mais tocar piano como os irmãos...”. E ainda, propagandas como: “Novo lançamento: Homo sapiens GTX SL-6. Já vem vacinado contra sarampo, caxumba e poliomielite. Disponível nos modelos loiro, ruivo, moreno e misto. Veja nosso catálogo na Internet (http//www.H@sap.com)”.

     Qual é o limite? É o que se pergunta Axel Kahn, da revista Nature, por ocasião da clonagem da ovelha Dolly, por Wilmut et al. Após propor uma série de perspectivas assustadoras que a clonagem abriria ao homem, Kahn afirma que não é uma barreira técnica que vai nos proteger delas, mas apenas uma barreira moral, originada de uma reflexão sobre a base da nossa dignidade. Mas, no final, chega ao impasse: por que não clonar seres humanos, se estamos “produzindo” dignidade ao criá-los? E, sem querer se comprometer, deixa a dúvida no ar: qual é o limite?(1)

     O ponto em que o dr. Kahn falha, e, junto com ele, tantos cientistas, políticos, jornalistas, membros da ONU etc., é o de se meterem em acaloradas discussões acerca da dignidade sem se porem de acordo sobre o que este termo significa. Fala-se muito de “dignidade”, mais pela sonoridade da palavra que pelo seu conteúdo, que continua envolto pela névoa do subjetivismo; e assim seu significado acaba se perdendo, tanto nos dicionários como na vida prática.

  • “E este estado de coisas não te assusta?” – pergunta o Conde Bartholi no romance A 25a Hora de C. Virgil Gheorghiu.
  • “Não”, responde o seu filho Luciano.
  • “Isso é que é mais grave – disse o Conde. Sim, porque isso quer dizer que não tens respeito nenhum pelo ser humano. E tu também és um ser humano. Não tens portanto respeito algum por ti mesmo."

     Gheorghiu, romeno de nascimento e exilado na França, tinha noção do que dizia... Como o seu personagem Johann Moritz, foi perseguido sucessivamente por nazistas, comunistas e democratas ocidentais... Sabia em que davam as repetidas tentativas de criar “homens novos”, perfeitos e assépticos.

  • “Eu respeito cada homem segundo o seu valor – disse Luciano. Não creio que tenhas motivo de queixa contra mim nesse sentido.
  • “Respeitas o homem como respeitas o teu automóvel, porque representa um certo valor.”
  • “E que tem isso?
  • “Mas tu respeitas o homem pelo seu valor intrínseco, pelo seu valor humano?”
  • “Pois claro! Eu nunca poderia fazer sofrer qualquer ser humano sem piedade e remorsos!”

     É o que dizia Rudolf Hess, diretor do campo de extermínio de Dachau: “É uma maravilha o método do monóxido de carbono: poupa-nos os banhos de sangue, e as próprias vítimas são poupadas ao sofrimento até o fim”(2)...

  • “Nem a um cão [...], pois sabes que se lhe bateres com uma chibata o fazes sofrer. Tens piedade do homem como de qualquer ser vivo. Gostaria de saber se respeitas o ser humano como ser humano e valor insubstituível, único [...]?”
  • “Nunca tinha pensado nisso -- disse Luciano.-- Só sei que respeito o homem pelo seu valor social e no que tem de ser vivo. Toda a gente, parece-me, sente e pensa como eu...”

     E por isso muitas vezes acha que é a mesma coisa sacrificar um homem e sacrificar um cão, quando estão doentes.

  • “Isso é muito grave!
  • “Que achas nisso de grave?
  • “A nossa cultura desapareceu, Luciano! Nela, existiam três qualidades: respeitava e amava o Belo, hábito que lhe ficara dos Gregos; amava e respeitava o Direito, que lhe vinha dos Romanos; amava e respeitava o Homem, coisa que aprendeu muito tarde, e com grande dificuldade, com os cristãos. E não foi senão por respeito desses três símbolos [...] que a nossa cultura ocidental pôde ser o que foi. E agora acaba de perder a herança mais preciosa: o amor e o respeito pelo Homem. [...] [Antigamente] desconhecia-se o homem, e o sacrifício humano praticava-se por barbárie. Mas tínhamos vencido a barbárie e começava-se a dar apreço ao ser humano.[...] Com o aparecimento da Sociedade Técnica, porém, destruiu-se tudo o que havíamos ganho. O homem está reduzido hoje em dia à sua dimensão social...”(3).

 

2. A Revolução Assentatória

     Diz a sabedoria popular que “mingau se come pelas bordas”. Consideremos primeiro algumas características da dignidade, para poder chegar mais facilmente a uma definição.

     Sabemos que, quando falamos da dignidade de alguém, é porque reconhecemos nessa pessoa um valor especial. Mas que espécie de valor é este?

     Pensemos, por exemplo, que um belo dia as cadeiras se revoltem contra os seres humanos e queiram declarar independência: é a Revolução Assentatória. Todas as cadeiras, desde o piedoso e comportado banco de igreja até as poltronas mais gordas e bonachonas. Publicar-se-ia a Declaração Universal dos Direitos dos Assentos, com um parágrafo dedicado especialmente às carteiras escolares, que sofreram torturas terríveis nas salas de concentração dos colégios públicos. Fica a dúvida sobre se os urinóis seriam lembrados nessa declaração ou se eles seriam considerados apenas um ancestral evolutivo das cadeiras, uma espécie de “elo perdido”...

     Fica óbvio o ridículo da situação. As cadeiras não têm a menor razão em se revoltarem, pois a sua razão de ser é servir de assento! A máxima “realização” de uma cadeira, e também a sua máxima perfeição, é alcançada justamente quando alguém se senta nela. Foi criada como um instrumento para o conforto humano. Estranho seria o homem sujeitar-se a que uma mera cadeira o cavalgasse. Sentimos, ou melhor, intuímos, assim, uma idéia complexa, tão grande que não é possível deduzir e que é assim expressa na Metafísica dos Costumes de Kant: que uma pessoa não pode nunca ser usada como meio, mas sempre como fim.

     Se formos estudar as coisas “segundo o seu valor” e descontarmos características acidentais como cor, forma, etc., veremos que as cadeiras não têm nenhuma “individualidade”, nenhum valor “em si”. Algumas talvez sejam mais confortáveis do que as outras, mas isso não significa que umas sejam “mais cadeiras” do que as outras. Todas as cadeiras são iguais perante uma pessoa cansada! Em compensação, duas crianças nunca são iguais para sua mãe, nem que sejam gêmeos monozigóticos. É comum ouvir dizer que “todos os homens são iguais perante Deus”. De certa maneira, o valor especial que vemos nas pessoas é justamente de que “todos os homens são diferentes perante Deus”. Quer dizer, quando falamos de pessoas, não há simples repetição; cada caso é um caso.

     Ao mesmo tempo, não há valor nenhum no simples fato de ser diferente: uma borboleta não é nem um pouco pior ou melhor do que um elefante. Tem de haver um certo pano de fundo comum. Uma borboleta pode ser mais bonita (e nesse sentido melhor) que uma outra borboleta, e um elefante pode ser mais gordo do que outro elefante. No caso do homem, esse pano de fundo é o que chamamos “natureza humana”. É como se cada ser humano individual fosse uma execução diferente da mesma música: para oboé, para flauta, versão Blues, barroco, etc., ao passo que a natureza humana é a música propriamente dita.

     Essa variação não deriva apenas de diferenças físicas; as principais características que observamos nos outros são espirituais. Notamos se uma pessoa é alegre ou triste, honesta ou desonesta, chata ou simpática, e não só se ela é alta ou baixa. Sabemos diferenciar perfeitamente entre um boneco de cera do Bill Clinton e o Bill Clinton ao vivo. Seus inimigos talvez não concordem, mas é claro que é apenas má-fé da parte deles.

     Assim, chegamos a um caso único: a natureza humana integral é uma natureza mista, “anfíbia”, ao mesmo tempo material e espiritual, e por isso a dignidade humana aplica-se a estes dois campos. Voltaremos a considerá-lo mais adiante.

 

3. “Passe o titio, por favor”

“Ora, se cada ser humano é diferente do outro, a dignidade não se torna um conceito relativo, que pode mudar de pessoa para pessoa, e de época para época? Há tribos de canibais, por exemplo, em que devorar um guerreiro é considerada uma ação altamente digna!”

     Na verdade, não. Nas culturas mais diferentes e mais primitivas, há já uma noção da dignidade que se manifesta na sua forma mais simples por uma invenção com a qual todos convivemos quase o tempo todo: a roupa. Dando os descontos para os selvagens que vivem nos trópicos, e que mesmo assim não estão “nus”, pois pintam o corpo, temos notícias da utilização de roupas desde os primeiros documentos históricos. Quais são as únicas razões possíveis para isso? Uma delas, e que não se pode aplicar a todos os casos, seria proteger do frio; outra seria enfeitar o corpo para algum ritual religioso por exemplo, e os conceitos de religião e dignidade normalmente andam juntos; por fim, o objetivo da roupa pode ser diretamente pôr em destaque a dignidade do corpo humano, dando à roupa um papel semelhante ao do véu de um templo.

     Como explicar então os canibais?

     O fato de comer o morto não necessariamente atenta contra a dignidade do canibal, se ele sinceramente acha que está demonstrando dessa forma o seu respeito pelo morto; em muitos casos, inclusive, isto é para ele um delicado ato de religião. Também a dignidade do morto não é violada, pois ele está sendo honrado, mesmo que o método nos pareça estranho. É, de certa forma, uma variante sobre o enterro. Inclusive, o famoso Neanderthal já enterrava piedosamente os seus mortos: um dos achados arqueológicos mais interessantes foi o do esqueleto de uma criança Neanderthal, junto dos quais havia brinquedos de pedra, para que pudesse continuar a brincar no outro mundo.

     Como eles - os canibais - podem considerar meritório algo que nos parece tão repulsivo? É o que os filósofos chamam de “ignorância invencível”: uma vez que o canibalzinho duma tribo totalmente isolada aprenda do pai que “o titio foi um grande guerreiro, por isso merece ser comido”, ele dificilmente poderá chegar sozinho à conclusão de que isso está errado.

 

4. Ser e parecer

     No entanto, não seria a dignidade apenas uma espécie de “máscara social”? Basta ver a vida privada de tanta gente “digna”...

     Entretanto, por mais corrupto que um magistrado possa ser (nada contra os magistrados, é só um exemplo), é meio difícil imaginá-lo chegando em casa e, ao atravessar o limiar da porta, cair de quatro e começar a latir e coçar a orelha com a perna... Quero dizer com isso que devemos diferenciar entre dois tipos de dignidade: uma dignidade intrínseca, inseparável da natureza humana, imutável, uma espécie de número de chassi do ser humano, e uma dignidade extrínseca, ou “virtuosa”, que se adquire por repetição de atos bons; podemos dizer que ela é uma conseqüência espiritual da virtude, um aumento na perfeição do ser que a possui. Como diferenciar as duas?

     Imaginemos um carro. Ou melhor, dois carros: um Santana 2 portas, sem nenhum acessório, e outro, com 4 portas, vidro elétrico, desembaçador, CD player, ar condicionado, air bag, “viva-voz”, teto solar e “brake light”. Os dois são carros, têm, por assim dizer, a mesma “natureza carral”, e portanto a mesma “dignidade carral”, o mesmo “status locomotivo”. Qual é a diferença? Por que, podendo escolher (e tendo o dinheiro), preferiríamos o segundo? Porque o segundo tem a sua “natureza carral” aperfeiçoada por um monte de acessórios.

     Imaginemos agora dois homens: o primeiro é um egoísta, chato, ranzinza, avarento, um tipo parecido com o sr. Scrooge do conto de Natal de Dickens. O segundo é honesto, trabalhador, generoso, alegre, responsável, paciente, etc. Os dois são homens, por isso têm uma dignidade própria da natureza humana. O próprio Dickens reconhece isso, pois permite que o seu personagem mude de vida, isto é, não desiste dele simplesmente porque é mau. Além disso, Dickens cria um personagem cuja função principal é mostrar que é possível respeitar o sr. Scrooge como pessoa: o empregado de Scrooge, sempre paciente e fiel ao patrão. No entanto, o segundo homem que considerávamos foi “instalando” em sua natureza uma série de virtudes, que a aperfeiçoam. Tornou-se, assim, mais digno que o primeiro.

     Que tem isso a ver com a dúvida que tínhamos: vida privada indigna x vida pública “digna”?

     Não é difícil entender: a tendência natural em uma sociedade humana é escolher para cargos importantes pessoas que tenham mais virtudes (e que sejam, portanto, mais dignas de exercer aqueles cargos): para juiz, o homem conhecido por ser o mais justo da região, para professor o mais sábio, para Papai Noel o mais gordo, etc.

     No entanto, pode acontecer que não se escolham para ocupar esses cargos as pessoas mais preparadas, além de que os pretendentes aos cargos às vezes fingem, por amor à fama, uma dignidade que não têm. Ora, isso é fatalmente descoberto, pois sustentar uma farsa é sempre trabalhoso; ninguém agüenta ser o que não é 24 horas por dia.

     No entanto, ninguém propõe como meta de vida ser o mais indigno dos homens. O que acontece? Pode ser que a dignidade verdadeira esteja sendo confundida com a mera afetação. Uma pessoa pode querer parecer melhor do que é e começar a andar como um pombo (ou um pavão, ou um peru, ou uma galinha d’angola; depende do interessado); no entanto, isso fica estranho, como se vê pela reação dos observadores.

     Como diz Tomás Melendo, filósofo espanhol deste século, autor de Metafísica da dignidade humana, a dignidade corresponde a um senhorio sobre o próprio ser e as circunstâncias. A pessoa digna é justamente “ela mesma”, aconteça o que acontecer, porque é, de certa maneira, dona da sua própria existência, do “seu nariz”. Pode dizer, com propriedade, que “o que vem de baixo não me atinge”. Faz o que decide fazer. Sua vontade é coerente com a sua razão. Quer dizer, não existe ninguém mais livre que uma pessoa digna.

     Um exemplo dessa autonomia é aquela reconhecida pelo geneticista francês Jerôme Lejeune: desde o começo da vida humana, observa ele, é o embrião que controla o próprio desenvolvimento; a mãe dá apenas o suporte material necessário.

     É preciso não esquecer que a dignidade está dentro do homem, antes de aparecer fora. Não adianta nada tentar montar uma carroceria de Ferrari em um Fusca: a verdade será revelada na primeira ladeira. Nem se pode dizer que o motor da Ferrari torna a Ferrari menos espontânea, menos livre. É o contrário: quanto mais digna, mais livre, e vice-versa.

     Em resumo, como diz o já citado Melendo, só aquele que é nobre, superior, pode apresentar-se como tal. Mesmo assim, por menor que seja a dignidade extrínseca de uma pessoa, não podemos em hipótese alguma esquecer que já tem dignidade pelo simples fato de ser pessoa. Por isso comentei sobre a chegada do magistrado em casa. Por mais corrupto que possa ser, e que saiba ser, ele tem uma noção do próprio valor intrínseco que o levará, muito provavelmente, a recusar-se a comer “Bonzo”.

     Mas então, a dignidade não é uma imagem que a pessoa forja para si mesma a partir de uma certa idade? Uma criança de menos de um ano, por exemplo, não vê o menor inconveniente em engatinhar pela sala de visitas fantasiada de Adão.

     Podemos responder facilmente com um contra-exemplo: quem jogaria fora um diamante bruto? Ele já é um diamante, e já é valioso. A única coisa que falta é lapidá-lo, para que ele se torne a gema maravilhosa que todos admiram. Com a criança, acontece a mesma coisa: já tem um valor altíssimo, isto é, uma dignidade, desde que é ser humano, ou seja, desde que existe. O comportamento correspondente a essa dignidade, sim, é que vem com o tempo, como conseqüência da sua tomada de consciência do próprio valor e da educação que recebe. É o comportamento que se ajusta à dignidade, e não o contrário. Da mesma forma, uma luva tem 5 dedos por causa das nossas mãos, e não o contrário. A dignidade não é uma imagem, é um fato, e a criança já é digna antes de saber o que é isso. Mesmo pelada.

     Por outro lado, os adultos pela praia já deveriam ter idade suficiente para estar conscientes da própria nudez. Andam pelados, ou quase, por afetação - curiosamente, talvez tanta quanto a de algum magistrado que fizesse questão de desfilar sempre com sua toga e quejandos -; e, nesse sentido, acho inclusive que a criança é mais digna, porque é ela mesma.

 

5. O Pelé

     Agora podemos começar a aproximar-nos de uma definição. Antes, vamos esmiuçar apenas mais dois pontos, que darão o impulso final para a decolagem:

     Há dignidade apenas quando há consciência? Como admitir a dignidade de alguém que está há muitos anos em coma profundo ou a de um embrião?

     Pensemos num caso mais próximo e menos radical: o Pelé. Será que o Pelé é um craque só enquanto está jogando bola? Quero dizer, será que, após ter saído de um Santos x Palmeiras no qual ele fez 3 gols, o “rei” se transforme misteriosamente num “perna de pau” e sua habilidade só volte a renovar-se misteriosamente cada vez que ele entra em campo, como a Fênix? Não parece razoável. O Pelé continua em todos os momentos a ser o Pelé; inclusive, a ser “o” Pelé, o atleta do século, maior craque do futebol de todos os tempos, mesmo quando faz propaganda para as Casas Bahia. Só que, nesses momentos, ele não está exercitando a sua habilidade.

     Da mesma forma que o Pelé não deixa de ser o Pelé dentro ou fora do campo (e não deixa de ser “o” Pelé), o Joãozinho não deixa de ser o Joãozinho dentro ou fora do útero materno. Inclusive, ele não deixa de ser “o” Joãozinho, diferente do Antenorzinho e do Arnaldinho e de todos os outros colegas de berçário, isto é, ele é ao mesmo tempo ele mesmo e único. A melhor prova disso são as mães: que mãe aceitaria trocar seu filho com a vizinha de quarto na maternidade? Quer dizer, a natureza humana, ao mesmo tempo em que torna os seres humanos semelhantes entre si, torna-os também diferentes uns dos outros, faz com que cada um deles se torne uma pessoa. Alguns filósofos se referem a essa qualidade do homem como “pessoalidade”. Funciona mais ou menos como com as montanhas: de certa forma, são todas iguais: elevações do terreno, na maioria das vezes com uma forma aproximada de pirâmide. Mas, ao mesmo tempo, são todas diferentes: pergunte para um alpinista.

     Desta forma, a consciência, na verdade, não importa grande coisa para determinar a dignidade. Podemos (e devemos) falar em dignidade sempre que nos referirmos a uma pessoa. A consciência, entendida aqui como capacidade de conhecer racionalmente, isto é, como a capacidade de dizer para si mesmo “Penso, logo existo”, é apenas uma manifestação da natureza pessoal de um homem, que antes de de dizer “penso, logo existo” foi capaz de aprender o que significam “penso”, “logo” e “existo”, que são idéias bastante abstratas. Assim, a consciência é um estado da pessoa, e não a pessoa uma conseqüência da consciência.

     Por que as pessoas têm dignidade e os animais, plantas e coisas não? Esta é a pergunta. Chegamos aqui ao cerne da questão: qual é esse valor especial que reconhecemos nas pessoas para lhes atribuírmos o que chamamos dignidade?

     Conhecemos apenas três tipos diferentes de seres pessoais: os homens, os anjos e Deus. O que há de comum a todos eles? O seguinte: a natureza dos seres pessoais inclui pelo menos uma parte espiritual (no caso dos anjos e de Deus, 100 % espiritual). A natureza mista do homem é facilmente provada: a parte material nem precisa de comentários. E, sobre a parte espiritual, eu sinceramente não espero receber cartas dos babuínos de algum zoológico cumprimentando-me por este trabalho, nem que as cadeiras abram um processo contra mim por tê-las usado como exemplo sem pedir permissão, como poderiam fazer o Pelé ou a família Dickens.

     Assim, as pessoas têm espírito. O espírito, por definição, é imortal, pois não tem partes em que possa dividir-se, e assim não pode quebrar-se ou morrer. Além disso, o espírito não precisa de uma forma para existir, ao contrário de uma moto, por exemplo, pois ela só será moto enquanto todas as peças estiverem juntas de um determinado jeito. Por isso, a natureza dos seres pessoais entra no campo do infinito. Que prova mais clara disso do que o namorado que promete amar a namorada “para sempre”. O simples fato de dizermos “para sempre” a toda hora já mostra quão profundamente estamos ligados ao infinito.

     Diz Tomás de Aquino que “toda a nobreza de qualquer coisa lhe pertence em razão de seu ser”. Quer dizer, quanto mais perfeita for a maneira como uma coisa possui o ser, tanto mais valiosa, nobre, digna ela será.

     Um pé de abóbora, por exemplo, é mais valioso que uma pedra, porque tem vida. Um cachorro é mais valioso que o pé de abóbora, porque tem sensibilidade. Um homem é infinitamente mais valioso que um cachorro, porque tem espírito, o que faz sua natureza dar o salto para o nível mais elevado dos seres pessoais. E Deus é infinitamente mais valioso do que tudo, porque é o Ser por definição.

     Juntando todas essas características, podemos agora tentar uma definição: a dignidade é a medida (ou grau) da perfeição espiritual de um ser pessoal. Explicando melhor: medida da perfeição, porque um ser espiritual pode ser mais perfeito do que outro (nesse sentido, o ser humano é único, porque é o único que tem, além da sua dignidade intrínseca imutável, uma dignidade extrínseca que pode ser aumentada ou diminuída); perfeição espiritual, porque, como já vimos, a dignidade se refere a valores espirituais, como inteligência, bondade, etc.; de um ser pessoal, porque o ser pessoal é o único que tem natureza espiritual.

     Do que dissemos derivam várias coisas: É possível perder completamente a dignidade, no caso de um criminoso convicto, por exemplo?

     Um amigo contava-me que tinha assistido na televisão a uma rebelião de presos. E, durante a reportagem, o microfone acidentalmente captou a voz da mãe de um dos detentos, berrando: “Meu menino! O que fizeram com o meu menino?”. Para essa senhora, não havia o “Zé do Crime”, mas apenas o “meu menino”. E não há como negar que ela via mais longe do que os outros, pois enxergava o homem por trás do criminoso. É um fato: ele é o “seu menino”.

     Além disso, uma pessoa não consegue deixar de ser uma pessoa. Não se pode esquecer que uma pessoa é um ser espiritual, e que por isso é imortal. Quer dizer, tendo sido criada, não há mais como desfazer: uma vez pessoa, sempre pessoa. Isso vale até para o caso mais extremo dos suicidas: devem ter uma bela decepção ao descobrirem na prática que não conseguem deixar de ser. Mas não tem jeito: o suicídio é tentar passar uma borracha sobre uma página escrita a caneta, ou melhor ainda, sobre mármore entalhado.

     Dessa, forma, é praticamente impossível perder totalmente a dignidade extrínseca, aquela que se conquista, e é totalmente impossível perder a dignidade intrínseca, da mesma forma como é possível cair da escada, mas não passar do chão.

 

6. “O diabólico Dr. Seed”

     Se não é possível perder a dignidade, também com certeza não será possível ignorá-la. É o que se deve ter em conta na seguinte questão: A dignidade de uma pessoa seria motivo suficiente para cercear, “castrar” o avanço da ciência, quando esta procura o bem, o progresso da sociedade humana, o qual permitiria inclusive uma vida mais digna para tantos? Não acontece como o que diz o sr. Spock, de Jornada nas estrelas, “o bem de muitos superpõe-se ao bem de poucos”?(4) É esse o argumento que usa o Dr. Richard Seed, cientista americano que ganhou fama na comunidade científica por dizer que estará pronto para clonar seres humanos daqui a um ano e meio. Enquanto isso, Bill Clinton e os países europeus procuram vetar os planos de Seed.

     A posição do Dr. Seed parece a dos super-vilões das histórias do Cap. América: enquanto os EUA e a Europa procuram deter Seed, este os desafia: “Bill Clinton não tem o poder de me deter”. Só falta a risada diabólica no final para a caricatura ficar perfeita...

     Em primeiro lugar, que podemos entender por “uma vida mais digna”? Em sentido próprio, toda vida humana é digna, mas no sentido popular, quando falamos em “vida digna” estamos omitindo o final da frase; queremos realmente dizer “vida digna de ser vivida por um ser humano”, na qual uma pessoa possa desenvolver ao máximo as suas capacidades.

     É uma grande verdade que o progresso pode, nesse sentido, dar uma vida mais digna para muita gente, mas há dois grandes problemas nisso. Um é pensarmos que o progresso sempre dá uma vida mais digna para alguém. A clonagem, por exemplo, daria uma vida mais digna a alguém? O homem clonado, uma vez que é produzido, poderia ser vendido, leiloado, alugado e até destruído pelo seu “criador”; se quebrar, é só fazer outro... . Em uma das histórias de Calvin e Haroldo, de Bill Watterson, Calvin pergunta a seu pai: “Como as pessoas fazem os bebês?”, e este responde: “Bem, a maioria da pessoas vai ao supermercado, compra o kit e segue as instruções de montagem.”; Calvin, desconcertado, volta a perguntar: “Então quer dizer que eu vim de um supermercado?”, e seu pai responde: “Não, você estava em oferta especial em um camelô. Quase tão bom e muito mais barato...”.

     Por falar em dinheiro, Seed afirma que os primeiro homens clonados custarão por volta de U$ 1 milhão cada. Matthew Shirts, cronista em O Estado de S. Paulo, brinca que o Internazionale de Milão pagou U$ 64 milhões pelo passe de Ronaldinho e que talvez não fosse mau negócio levar dois por U$ 65 milhões; ele imagina também anúncios na televisão, na linha da propaganda das facas Ginzu: “Na compra de um Chitãozinho, leve também para casa o seu Xororó...”

     O outro problema é esquecermos que um verdadeiro progresso nunca pode dar uma vida menos digna para ninguém. Não existe progresso que faça como a introdução da conhecida série “O Planeta dos Macacos”, em que se vê uma “escala evolutiva” ao contrário, com o homem tornando-se progressivamente menos ereto: Homo sapiens até Pithecantropus erectus. A dignidade corresponde, segundo Tomás Melendo, ao absoluto, isto é, uma pessoa tem que ser vista e tratada como se fosse única no universo; causar o “bem de muitos” não justifica esquecer o “bem de poucos”, e nem vice-versa. O progresso deve procurar, tanto quanto for possível, o bem de todos, e não pode nunca causar ou procurar diretamente o mal, mesmo que seja de um só. Por exemplo, o dos clonados; será que o garoto recém-clonado ficará contente ao descobrir que ele foi criado só como substituto para alguém que os seus pais tenham perdido, ou pior ainda, só para que eles pudessem ter a sua própria cópia do Ronaldinho?

     A ciência pode ser impedida se atentar contra a dignidade de uma pessoa? Se um cientista descobrisse que a vítima seria ele, o que faria? Provavelmente queimaria os papéis, mudaria de endereço, transformaria o laboratório em estacionamento, não sei. Mas se um cientista acha que a dignidade dele é suficiente para “castrar” a ciência, por que não pensar o mesmo do porteiro do seu prédio ou de um camponês nalgum país distante?

 

7. “Proibida a entrada de pessoas estranhas”

     Vamos voltar ao começo, agora, à dúvida do dr. Axel Kahn: por que não criar novas vidas humanas, já que não estaríamos destruindo, mas criando seres humanos dotados de dignidade?!

     O problema é o seguinte: a barreira para criação de vidas humanas é uma espécie de porta de escritório com a placa: “Proibida a entrada de pessoas estranhas”; no entanto, muita gente gostaria de interpretar isso como “Entre sem bater”. A vida humana é “anfíbia”, porque pertencemos ao mesmo tempo ao universo material e espiritual. Acontece que, por essa característica espiritual, ela se torna sagrada. A vida de um homem e a vida de um cachorro não são a mesma condição chamada “vida”, apenas aplicada a criaturas diferentes, como acontece entre um cão e um gato.

     Dizer que uma coisa é sagrada equivale a lacrá-la com o selo “exclusivo para uso divino”. Dessa forma, o único que tem o direito de interferir com a vida humana é Deus, que é o único que tem acesso a ela, porque Ele detém desde sempre a “exclusividade” da produção de almas. As verdadeiras vacas sagradas somos nós; nós é que somos intocáveis. E, se pensarmos um pouco, veremos que não poderia ser de outra forma. Se não fosse Deus que criasse as almas, quem o faria?

     Outra forma de provar é pelo método indireto, ou do absurdo. Com um mínimo de conhecimento do ser humano, reconhecemos que “a ocasião faz o ladrão”. No caso da criação de vidas humanas, tecnologia nova e, como reconhece o dr. Kahn, não isenta de riscos, quem pode garantir que sabe o que está fazendo? Quero dizer, se surgem oportunidades de abusar da técnica da clonagem, por exemplo, em proveito próprio, não podemos simplesmente confiar que “desta vez tudo vai ser diferente”, da mesma forma que não podemos acreditar bobamente que é impossível haver mais guerras, só porque os EUA e a URSS assinaram um cessar-fogo.

     Conforme o ditado, “Deus perdoa sempre, os homens às vezes, a natureza nunca”. Uma vez que as técnicas de produção de seres humanos em laboratório tenham sido liberadas, o que pode se seguir? A tentativa de formar uma super-raça, por exemplo, eliminando os fracos, bem no estilão nazista. Casais de lésbicas, como o próprio dr. Kahn observa, poderiam exigir seus direitos para ter uma filha clonada e formar uma “família”. Seria muito fácil, a longo prazo, dividir o trabalho por castas, como imagina Aldous Huxley em seu Brave New World; poderíamos criar “homens-estepe”, para doação de órgãos, etc; poderíamos cruzar homens com outros primatas, para conseguir uma raça nova que servisse aos homens; produziríamos cobaias para testar drogas; faríamos os dublês do cinema em laboratório, etc.

 

8. “Professor, pode sair assim mesmo?”

     A conseqüência mais direta da dignidade na nossa vida é que não suportamos que rebaixem a nossa condição, que nos tratem como menos do que pessoas, que nos menosprezem, isto é, que nos prezem menos do que deveriam. Isso se manifesta, por exemplo, na preocupação pelo “bom nome”.

     Um fato verídico: um professor universitário, ao publicar um trabalho, teve o seu nome escrito errado na capa. O tipógrafo trocara o segundo “p” de “Pupo” por um “t”... e ainda teve coragem para levar uma prova à sala do tal professor e perguntar se ele se importaria se o trabalho saísse assim mesmo... Podemos imaginar como o rapaz foi recebido.

     Outro exemplo é o adolescente que parece revoltado contra tudo e todos: não é mais do que alguém que está começando a tomar consciência do próprio valor e, deslumbrado com isso, quer que todos o respeitem.

     Todos nós detestamos sentir-nos usados pelos outros. Que moça gosta de saber que o rapaz que a convidou para jantar só quer causar os ciúmes de outra? Quem procura ser assunto de piada? Quem confia naqueles “amigos” que parece que só vêem no outro uma qualidade: o carro?

     Enfim, por mais que se insista na ciência, e na modernidade, e em tudo o mais, ainda existe, gravada no coração de todo o homem, a boa e velha regra áurea: Não faça aos outros o que você não gostaria que eles lhe fizessem. Antes de pensar em clonar, o certo seria pensar em ser clonado. É agradável a perspectiva?

 


(1) Nature, vol 386 - 13 de março de 1997, p. 119.

(2) Cf. Cohen, Peter Arquitetura da destruição, Poj Filmproduktion, AB, Estocolmo, 1989.

(3) C. Virgil Gheorghiu. A 25a hora, cap. 70.

(4) Cf. A ira de Khan (Startrek II)