Nota sobre a Tradição
e a Individualidade
Fábio
Silveira Braoios
(Graduando em Medicina FMUSP)
Inicialmente, gostaria de deixar claro que, neste ensaio, não
pretendo fazer um profundo tratado antropológico, nem tenho
condições para tanto. No entanto, posso tentar simular um agrupamento
social num tempo longínquo, que me ajude a demonstrar a importância
dos elementos de tradição em qualquer grupo humano.
Imaginemos uma época de lutas intensas não tão intensas,
mas mais disseminadas que as do mundo globalizado atual
na qual as diversas e supostas sociedades primárias se combatessem
sem trégua. Coisas como a descoberta de uma grande árvore frutífera
ou de uma caverna ampla e sem a presença de feras deviam ser,
de preferência, habilmente escondidas, até mesmo para evitar
os efeitos dispendiosos da defesa ostensiva. A identificação
imediata de um companheiro ou de um inimigo era também evidentemente
básica para a sobrevivência do indivíduo. Não é difícil, assim,
supor o porquê da manutenção e mimetização por determinado grupo
humano de sinais como o oscilar de uma das mãos ou mesmo
uma dança e da expressão física dos valores compartilhados,
como uma pintura no rosto ou uma cicatriz provocada. É desta
forma que a tradição começa a se estruturar.
Ao que parece, a primeira face da tradição na história do desenvolvimento
social é a da utilidade . A construção da tradição é fruto direto
da capacidade humana de selecionar e acumular experiências positivas
e de ensiná-las aos semelhantes.
Tais quais as línguas faladas e os sistemas escritos
aliás profundamente relacionados ao elemento tradicional
as estruturas da tradição foram-se tornando cada vez mais complexas
e novas faces foram por elas incorporadas. Ao que era claramente
necessário, somaram-se os protótipos de regulação social e religiosa,
que, por sinal, são difíceis de dissociar. A partir daí, o argumento
da utilidade em nome do instinto de sobrevivência não funciona
mais. Como então explicar o desenho de tantos novos contornos
sobre a tradição inicial de serventia?
Por mais paradoxal que possa parecer, o "supérfluo"
é algo muito necessário à vida humana coletiva e/ou social.
O homem não prescinde de maneira alguma do detalhamento cada
vez maior que ele pode conferir às coisas. Não parece a muitos
estudiosos hoje que as pinturas sobre as paredes das cavernas
visassem meramente à sistematização da caça possivelmente
tinham seu caráter decorativo. Enterrar os mortos sob árvores,
envolver ou não seus corpos com ramagens e folhas, tudo isso
não são questões tão práticas assim, mas não há quem conteste
a inviolabilidade dos rituais de morte e das tumbas. O ser humano
percebe o quanto ele é diferente dos animais ao seu redor, orgulha-se
disso e faz de tudo para reforçar a diferença. Ao contrário
dos outros bichos, ele pode sustentar e ampliar o desnecessário,
o extravagante. Os elementos supérfluos ajudam-no a se situar
num grupo e também a destacá-lo nesse grupo. Reforçam nele o
que aceita como "identidade".
A tradição é, então, uma longa corda que une fortemente os diversos
componentes de um grupo, mas sem uma força tal que os impossibilite
de se mover. E, por sinal, sem a trajetória de cada um, não
há como o grupo atado pela corda deslocar-se no caminho que
o tempo e o ambiente lhe impõem. A tradição é, pois, o resultado
das diversas ações individuais aceitas e reproduzidas pelo meio
humano.
Essa imitação a faz sobreviver à morte dos inovadores e prolonga-se
até onde a conveniência social permitir. Assim, se é um aspecto
museológico que a frase de Chesterton "A tradição é a democracia
dos mortos" confere a ela, talvez uma correção desfaça
o mal-entendido. Sim, a tradição é constituída com respeito
à manutenção das experiências positivas dos que já morreram.
Mas também do bom senso que não deixa que ela se enrijeça e
lhe permite eliminar o que não é mais sustentável e incorporar
novas ações. Considerando que hoje quem está vivo e contestando
o que está estabelecido um dia morrerá e será por outros contestado,
concluímos que a tradição se estrutura em camadas que se sobrepõem,
porém tendo a cautela de espanar, se preciso, o que não adere
ao seu suporte.
Obviamente, nem tudo aquilo que surge de novo é aproveitável.
Se as inovações humanas deixaram de ser apenas utilitárias,
não perderam o potencial deletério intrínseco a qualquer inovação
. Como um pequeno caco de vidro que penetra o dedo, a inovação
precipitada ou indevida é naturalmente expelida, com o tempo,
pela estrutura maior. Se não há lógica em nos mantermos confinados
em redomas de vidro, já que o nosso organismo é capaz de enfrentar
os agentes externos, não há por que apertar a corda da tradição
para evitar que alguém mais apressado acelere o passo. Se o
grupo não achar conveniente, vai, através de seu ritmo dominante,''
readequar ''o afobado. Caso o grupo ache a idéia de andar mais
rápido oportuna, todos acelerarão o passo e os descontentes,
que não estão com vontade de suar, terão de rearranjar-se, tal
qual o afobado solitário. A tradição, por incrível que pareça,
é dinâmica.
Digo "por incrível que pareça" já que dinamismo comumente
é a última coisa que as pessoas associariam à idéia de tradição.
Esse erro corriqueiro, numa situação social normal, não é problema.
O ser humano tende a reproduzir o que aprendeu sem a necessidade
de nomeá-lo ou teorizá-lo. O problema ocorre quando, em nome
da tradição, cometem-se graves violações à condição humana.
Para nós, é difícil enxergar a corrupção que a imprensa de hoje
esfrega diariamente na nossa cara sob os grossos mantos papais
de outrora, por baixo dos cachos da peruca afetada de Luís XVI
ou por trás da serenidade viril dos atenienses e espartanos.
Depois de certa relutância, acabamos admitindo a corrupção como
um triste atavismo. Não deveria haver espanto nessa verificação,
já que em qualquer agrupamento social razoavelmente arquitetado
os interesses pessoais do segmento mais forte e poderoso podem
"apertar a corda", agindo de forma egoísta. E a principal
exigência do homem é que a corda não o sufoque nem aperte seus
pulsos e tornozelos.
A própria sofisticação social na história do desenvolvimento
humano, criando contrastes, tornou a tradição suscetível ao
vício. Poderíamos então, simplesmente, tentar minar as diferenças
dentro da estrutura de classes? Não. Seria como proclamar o
computador "o mal da atualidade" num mundo que depende
de suas funções, bancando o profeta apocalíptico de uma dessas
seitas obscuras que existem por aí. A questão tem a ver com
a honestidade e a boa fé humanas, um tanto quanto oscilantes.
É nessa "brecha" da tradição que nascem os regimes
autocráticos; é aí que a hipocrisia e o temor da inovação a
enrijecem (sendo que a sua sobrevivência depende não apenas
de ouvir os mortos, mas também de dar atenção aos clamores dos
vivos).
A deturpação que a tradição pode sofrer cria para ela uma face
indesejável que oculta as outras: a face da imobilidade. E o
homem, com uma imagem equivocada da tradição, nega-a como suporte
para suas contribuições. Desta forma, fica difícil continuar
o processo de deposição que a caracteriza. Os períodos de sufocamento
nunca são períodos construtivos. A pintura impressionista radical
é composta de "ilhotas de tintas" totalmente independentes
entre si, que, apenas à distância, com a diminuição da resolução,
conseguem, juntas, criar uma imagem inteligível. Os períodos
de silenciamento compulsório são os períodos em que o homem
perde a noção de quem é. E, se não é capaz de reconhecer-se
a si mesmo, não consegue reconhecer os outros ao seu redor.
A mudez reina então.
A tradição como agente sufocador transforma a sociedade num
museu de cera. As particularidades de cada peça limitam-se a
variações físicas, mas o talhe é o mesmo.
O Eu e o Nós convivem juntos dentro de cada homem.
Se o Nós permite a identificação de nossos similares
e faz gritar a necessidade de nos agruparmos o que protege
e facilita a vida humana , o Eu, nos dá a consciência
da nossa importância individual para o grupo e do quanto nós
valemos por nós mesmos.
O homem destituído do Nós está impossibilitado de viver
em grupo e está sozinho diante de todas as adversidades do meio.
Não pode haver uma sociedade de homens sem Nós, já que
não há como se firmar acerto entre os que não se comunicam e
não se compreendem. O homem destituído do Eu é
um zumbi social, que só existe enquanto a engrenagem de uma
máquina fadada ao desuso a sociedade dos homens sem Eu
é possível, mas estagna, esperando para ser engolida pela necessidade
de renovação que o tempo exige.
Não podemos negar a herança da tradição. Ela mesma nos fornece
munição para alvejarmos o que de errado verificamos no status
quo. Apesar de nos dar a segurança de parar sempre que as
dificuldades pedirem pausas para uma maior reflexão, não é certo
aceitarmos mordaças em nome dela. A própria discussão em torno
de algum assunto indica que há o que repensar sobre ele. A tradição
que cria barreiras intransponíveis em torno de certos valores
contraria a sua própria essência democrática.
Até agora, apenas apresentei situações em que tradição e individualidade
se confrontam. Mas a nova ordem mundial nos proporcionou um
agente que acua tanto a tradição quanto a individualidade. A
homogeneização cultural que o mundo globalizado perversa ou
acidentalmente traz torna as duas reféns de uma descaracterização
crescente que ataca o Eu e o Nós igualmente.
A eficácia dessa ação prejudicial está baseada na ligação entre
tradição e individualidade, que se criam e se moldam mutuamente.
Atacar uma delas significa necessariamente atacar a outra. Quando
as pressões econômicas e culturais fazem, por exemplo, com que
a língua irlandesa entre num processo de extinção, não espanta
que um jovem irlandês se pareça tanto com um jovem de subúrbio
norte-americano. Assim como quando a propaganda de um "jeito
"de se viver é tão eficiente e abrangente que faz a garota
peruana ver as características pessoais de sua etnia e de sua
sociedade como empecilho para se integrar à "realidade"
maior do mundo moderno.
É claro que os jovens são os grandes afetados por esses fenômenos
da atualidade, devido à flexibilidade de seu caráter, importante
para que ele crie seu ''rosto'', em meio a todos os outros da
multidão. Como a renovação da tradição depende das gerações
subseqüentes, ela corre risco.
A massificação cultural é necessária num tempo em que os produtos
devem ser vendidos em qualquer parte sem que se exija das indústrias
o árduo trabalho de diversificá-los. Alguém poderia dizer que
a nova ordem ajudará a diminuir a intolerância entre os povos.
Bem, é preciso se lembrar de que a raiz da intolerância é o
desconhecimento do que é alheio a nós. Para se tolerar um determinado
comportamento, não é necessário vivenciá-lo o que poderia
esbarrar na nossa própria vontade e disposição. Para entender
por que um ocidental é capaz de perder minutos numa fila para
comprar BigMac, um indiano não precisa virar um apreciador
de hambúrguer.
O conhecimento e compreensão das diversas sociedades pode permitir
um fluxo de idéias e experiências tão intenso quanto o de capitais,
mercadorias e serviços.
A homogeneização cultural não respeita relevo, clima, etnia
ou língua. Ou seja, não respeita o que ajuda a constituir o
Eu de cada um. O conhecimento do outro e do diferente só
pode reforçar o Nós, já que faz com que retomemos a consciência
do nosso próprio grupo e percebamos o quanto de interessante
temos também para dizer ao resto do planeta. A relativa paz
e estabilidade de um mundo que começa a ficar cético diante
das ideologias apaixonadas e do totalitarismo às vezes nos deixa
menos alertas às formas silenciosas de ameaça ao Eu
e ao Nós. Se todos no globo terrestre estiverem unidos
pela mesma corda, uma corda única e gigantesca em substituição
às que as tradições regionalizadas impunham, a trajetória conjunta
com certeza vai se tornar mais lenta, longa e demorada.
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