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Educação e Memória em Confúcio

 

Ho Yeh Chia
(Mestre em
Educação - FEUSP)

 

O Mestre disse: "É por retomar o antigo que se
aprende o novo, e assim nos tornamos mestres"

(Os Analectos, 2: 11).

Disse Tsi-Hah: "Perceber a cada dia o que se
perdeu,e em um mês não esquecer daquilo que
aprendeu; pode-se afirmar que isto é gostar de
aprender. (Os Analectos, 19:5).

 

 

     Se quisermos resumir o núcleo central da antropologia filosófica subjacente à filosofia da educação do Ocidente, recordaremos a sentença "Torna-te o que és!", do poeta grego Píndaro, que nos aponta o problema fundamental do homem: o de identificar e empreender a auto-realização em direção a um máximo (contido no próprio núcleo da areté grega ou da virtus latina), no sentido da conhecida formulação hamletiana: "To be or not to be, that is the question". Neste estudo pretendemos indicar, ainda que brevemente, que a memória é também tema central da antropologia e da pedagogia na tradição do Extremo Oriente.

     Examinaremos o caso da filosofia da educação confuciana, cujo ponto essencial é, naturalmente, o próprio conceito de ser humamo.

     De fato, em "S. Tomás e Confúcio", Lauand ensina: "A palavra latina virtus (virtude) deriva de vir (homem), ou de vis, força (S. Tomás)" e assim "(...) na tradição de pensamento ocidental, virtude é a força própria do homem (...) e a moral diz respeito ao que se é enquanto homem" (Filosofia e Linguagem Comum, p. 37). E conclui: "A moral é, pois, um caminho (homo viator), um processo de auto-realização do ser, daquilo que - pelo ato criador de Deus - estamos chamados a ser".

     Ora, o fundamento de ética apontado por Confúcio acaba coincidindo com o clássico ocidental uma vez que, a principal virtude nos seus ensinamentos é o ren, a virtude mais própria do homem, aquilo pelo qual um homem se torna homem e, segundo o mestre, "a aquisição do ren supõe vencer-se a si mesmo e a abertura de compreensão, solidariedade, amor, compaixão e compromisso com o outro" (ibidem, p. 39).

     Note-se, a propósito que - ainda hoje - em chinês o homem que procede contra a moral é fei-ren, literalmente, não-homem:

chines21.gif (3146 bytes)

     ren - homem                    fei-ren - Não-homem

     E mais, foneticamente em chinês, ren é uma mesma e única palavra tanto para expressar virtude como o próprio homem, pessoa, gente. Tal identidade não é casual: a grafia repete duas vezes o ren de homem.

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     Tal fato é extremamente sugestivo do ponto de vista semântico (confirmado, aliás, pelas próprias reflexões de Confúcio: um homem se conhece como tal, quando ele entra em contato com o outro, ou seja, é necessário haver dois homens): o homem no homem, o que é próprio do homem, o homem que é homem, o verdadeiro homem, homem ao máximo etc.

     E esse humano só pode ser atingido pelos caminhos do Tao.

     Porque, para Confúcio, o homem verdadeiro - que em alguns momentos é chamado também de homem sagrado - é aquele que segue o Tao, isto é, a moral do homem.

     Assim é o que está escrito no Capítulo I do livro Harmonia Perfeita:

Aquilo que o Céu confere é chamado "natureza".

O que está em harmonia com a natureza é chamado Tao.

O cultivo do Tao é chamado pedagogia.

     Enfim, Tao é o caminho que o homem deve seguir se ele procura se realizar enquanto homem.

     Confúcio (551-479 a.C.), vivendo numa época de constante guerra, de caos político e social (a chamado Era dos Estados Combatentes - quando todos os valores humanos estavam desmoronando, esquecidos, desprezados), procurou restaurar a harmonia, a ordem e o amor na sociedade.

     Em meio a esses conflitos, Confúcio empreende o resgate do estudo dos ritos e dos grandes Reis, e dedicou sua vida a buscar um ideal e uma realização: ser conselheiro de um grande Rei e governar para a paz.

     Para tanto, compilou as obras mais importantes dos escritos antigos (datadas de até dois mil e quinhentos anos antes de Confúcio), reorganizou-as e editou-as de acordo com seus princípios. E depois de sua morte, esses pensamentos têm predominado na cultura chinesa até hoje, portanto, por outros dois mil e quinhentos anos...

     Nesse trabalho de editor, pôs em prática sua tese da importância da relação entre memória e educação que, como dizíamos, é a base da pedagogia ociental. Convergem assim, na educação para o lembrar, Oriente e Ocidente.

     Essas teses encontram-se também formuladas em Confúcio.

     No livro A Grande Escola, Confúcio - comentando uns versos do Livro dos Cantares - atribui aos grandes antigos, precisamente a excelsa qualidade de não-esquecer (razão, aliás, pela qual eles mesmos não são esquecidos):

O Livro dos Cantares diz também: "Oh, os antigos reis não são esquecidos". O homem verdadeiro tem a virtude dos virtuosos e se aproxima do que eles (os reis virtuosos) se aproximam. O povo simples ainda se alegra com suas alegrias e se beneficia de seus bens. Por isso é que as gerações vindouras não os esquecem" (ed. cit. p. 689)

     É o mesmo Confúcio quem nos Analectos (7, 19), proclama o valor da lembrança dos ensinamentos dos Antigos:

Confúcio disse: "Eu não nasci sábio. Gosto da sabedoria dos antigos e busco neles para o meu ser" (ed. cit. p. 275)

     O que o Mestre afirma, portanto, é que não inventou nada, mas sim aprendeu com os antigos, e aquele que também assim fizer, será sábio:

É por retomar o antigo que se aprende o novo, e assim nos tornamos mestres" (Os Analectos, 2: 11).

     Não se trata, porém, de "conservadorismo", pelo contrário: a recordação dos Antigos é condição de progresso. É o que diz o Mestre no Livro da Harmonia Perfeita (27,6):

É por respeitar a natureza virtuosa que o homem verdadeiro dedica-se a aprender o Tao. Examinando em conjunto e por miúdo; do máximo da claridade encontra o caminho do meio. É por retomar os antigos que se descobre o novo e, com isto, honra os Ritos. (ed. cit. p. 815)

     Não será este precisamente o sentido profundo do essencial papel conferido aos Ritos na educação confuciana? Qual o sentido dos ritos - que, no Oriente não são rituais vazios - senão o de ajudar a memória do ser humano esquecente?

     Confúcio diz que os ritos são honrados (isto é, cumprem sua missão) se remetem aos ensinamentos dos antigos...

     E no âmbito pessoal, no cotidiano, também devemos recordar quem somos, o que fizemos e o que queremos... e é muito importante que reflitamos todos os dias sobre o que deixamos de aprender ou sobre nossos erros e falhas, e ao final de "um mês" não esquecer as verdades essenciais:

Disse Tsi-Hah: "Perceber a cada dia o que se perdeu (pelo esquecimento...), e em um mês não esquecer daquilo que aprendeu; pode-se afirmar que isto é gostar de aprender. (Os Analectos, 19:5).

     Naturalmente, dessa tese de que o homem é um esquecedor decorrem muitas conseqüências pedagógicas, sobretudo as relativas à linguagem.

     Uma primeira exploração, nesse sentido, visando identificar a estrutura antropológica por detrás das formas quotidianas de linguagem. (cfr. meu "Estudo Etimológico de Algumas Formas Quotidianas em Chinês", In Lauand, L. J. Ética e Antropologia, São Paulo, Mandruvá, 1997, pp. 93-104)