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Sistema/Norma/Fala e
o Ensino de Língua Materna

 

Sandra Maria Silva Palomo
Professora do Programa de Mestrado em Educação do
Centro Universitário Nove de Julho
Doutora em Semiótica e Lingüística Geral (USP)

 

A constatação do fracasso ocorrido em nossas escolas em relação a um dos principais objetivos do ensino de língua materna – o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos – desencadeou, principalmente a partir da década de oitenta – inúmeros trabalhos contendo discussões e propostas com intenção de promover melhorias nessa terrível situação. Sem dúvidas, de lá para cá o avanço foi grande, mas , parece-nos, ainda faltam maiores elucidações sobre as concepções de linguagem e língua a fim de que se concretize com eficácia toda a teorização já existente. Aliás, no campo da prática os resultados são ainda bem frágeis.

Não pretendemos aqui, em tão curto espaço, discorrer sobre tudo o que se escreveu a respeito do assunto, nem ao menos retomar apenas algumas das produções mais importantes. Por outro lado, também não almejamos  abordar os inúmeros aspectos envolvidos nas questões de língua e linguagem. Anima-nos tão somente a possibilidade de uma modesta contribuição para subsidiar a questão do ensino, com vistas a um domínio mais amplo da língua materna. Escolhemos, com esse objetivo, enfatizar aspectos da famosa tríade de Eugênio Coseriu: Sistema/Norma/Fala.

Esse lingüista, ao formular sua tríplice oposição, colabora intensamente para derrubar o conceito rigidamente estático de sistema lingüístico. No conjunto dos fatores responsáveis por impedir o sucesso da prática pedagógica, acreditamos que um dos principais motivos seja  justamente uma compreensão restrita sobre o caráter dinâmico da língua e sua diversidade.

Diz Coseriu que é possível distinguir na língua três séries de características, conforme o grau de abstração e de formalização: 1) as características concretas, infinitamente variadas e variáveis, dos fatos lingüísticos observados nas infinitas manifestações individuais → a fala ; 2) as características normais, comuns e mais ou menos  constantes, independentemente da função específica dos objetos → primeiro grau de abstração: a norma ; 3) as características indispensáveis, isto é, funcionais → segundo grau de abstração: o sistema.

Com o intuito de estabelecer relações com o ensino, retomemos separadamente cada um dos conceitos acima.

Fala

Atividade lingüística concreta, movimento dialético entre criação e repetição, inclui todas as variações que o falante pode acrescentar às inúmeras estruturações lingüísticas já formuladas e aceitas socialmente. Representa sempre um ato individual. Só aí é  possível a comprovação de realizações inéditas do sistema e, por isso mesmo,  constitui o grau máximo de variação lingüística. Mensagem codificada, nível de observação objetivamente comprovável, indica como se diz num determinado ato de fala. Caracteriza-se ainda por ser não convencional e opcional, mas opção individual de cada falante. Enfim, a fala é como funciona concretamente.

Nos processos de ensino/aprendizagem de língua materna a desconsideração dos fatos lingüísticos que compõem a fala significa uma atitude perversa. Eles aparecem, por exemplo, nas manifestações espontâneas dos alunos, sobre as quais deve se desenvolver todo o trabalho docente com vistas a um aperfeiçoamento da competência lingüística e, obviamente, comunicativa. O aprendizado refere-se sempre a um não-saber, mas deve tomar como base essencial e como ponto de partida o saber que uma pessoa ( o aprendiz ) possa ter sobre  o objeto de ensino. Ora, já se tornou indiscutível o fato de o aluno chegar à escola, mesmo os mais novinhos, com um saber lingüístico altamente significativo. Como desprezá-lo? Além disso, são manifestações espontâneas dos alunos, em qualquer nível de escolaridade, seus comentários e suas perguntas a respeito do tema tratado em aula. Por que impedi-los?  

São também manifestações lingüísticas de fala aquelas que os alunos produzem a pedido do professor, tais como intervenções orais e textos escritos. Reformulá-las exageradamente ( “corrigi-las” ), ou até mesmo rejeitá-las totalmente, se constituirá um grande obstáculo no desenvolvimento da competência comunicativa, na medida que impossibilitará as realizações inéditas e o caráter individual dos atos de fala, como se o aluno não pudesse ser o autor do que diz ou escreve.

O objeto do ensino de língua materna é, na realidade, a funcionalidade das produções lingüísticas dos educandos, numa perspectiva de adequação a cada situação comunicativa de que poderão participar. Para tanto, torna-se imprescindível a oferta e, muitas vezes, a análise de modelos de realizações funcionais. Referimo-nos a atividades de ouvir e ler, entendendo, é claro, que os modelos ofertados são também manifestações de fala.

Norma

Os fatos de norma são modelos abstratos e não manifestações concretas. Representam obrigações impostas numa dada comunidade sócio-lingüístico-cultural. Inclui elementos não relevantes, mas normais na fala dessa comunidade. A norma se constitui como realização coletiva, tradição, repetição de modelos anteriores. Indica como se diz, ao estabelecer códigos e subcódigos para diferentes grupos de uma mesma sociedade. É convencional e opcional, mas opção do grupo a que pertence o falante. Preserva apenas os aspectos comuns, eliminando tudo o que, na fala, é inédito, individual. A norma é modelo de como funciona.

Nos processos de ensino/aprendizagem de língua materna, cumpre propiciar ao aluno o conhecimento das diversas normas coexistentes na sua comunidade sócio-lingüístico-cultural. Pode-se falar em normas de: espaço geográfico ( dialetos, falares, etc...); classes sociais; faixa etária; grupos sociais ( jargões, gírias.etc...); discurso ( os universos do discurso, tais como o jurídico, o pedagógico, etc...); sexo; modalidade ( oral/escrito); registro ( formal/informal), etc.

Dessa forma, a imposição da chamada “norma culta” ou “padrão”, em detrimento de outras normas, configura a perda da identidade de um determinado segmento social. Com isso, não se consegue uma compreensão mais completa dos fatos lingüísticos permitidos pelo sistema da língua. Ao mesmo tempo, deixar de ministrar a norma padrão impede o acesso do aluno a um estrato social considerado superior e impede, também, seu acesso à tradição cultural escrita. Num caso e no outro, há prejuízo no desenvolvimento da competência comunicativa.

É, pois, desejável que o aluno compreenda o maior número possível de normas a fim de alcançar sua plena integração na comunidade sócio-lingüístico-cultural onde vive.

Sistema

Os fatos de sistema são modelos abstratos,constituídos de oposições funcionais. Representa um código para toda a sociedade. Coseriu considera o sistema como um indicador de caminhos abertos e fechados, ou seja, de todas as possibilidades. Mais que um conjunto de imposições, é um conjunto de liberdades, a técnica lingüística propriamente dita. Elimina da norma tudo o que é simples hábito, simples tradição. É formado exclusivamente de invariantes. Sistema é o que funciona.

Nos processos de ensino/aprendizagem de língua materna, a compreensão dos fatos de sistema significa compreender a tão almejada funcionalidade das produções lingüísticas. Pode parecer, então, que sistema e fala se equiparam.. Não, apenas se assemelham quanto a um aspecto, pois se a fala deve ser funcional, o sistema indica quais os elementos dessa  funcionalidade. Por conseguinte, um ensino que se pretenda eficaz deve enfocar o exame dos mecanismos subjacentes ao percurso que vai da invariância (sistema ) ao grau máximo de variação ( fala ).

Compreender os mecanismos de funcionamento de um sistema lingüístico é fundamental para o sucesso de qualquer ato comunicativo, em qualquer situação. Mas para tanto, é necessário conhecer as possibilidades que esse sistema oferece. Isto, por sua vez, só se consegue através de uma investigação do uso lingüístico, ou seja, da observação da formação de inúmeras variantes presentes nos atos de fala. Acrescentando-se o estudo das diversas normas e subnormas e o da articulação destas em relação ao sistema e à fala, estarão criadas condições para o estudo da constituição da “gramática” do sistema.

Como se vê, não é possível ensinar o sistema lingüístico sem recorrer aos níveis de norma e fala, ou apenas considerando uma única norma – a padrão. É, entretanto, o que se tem feito, com muita freqüência, em sala de aula.

Tendo em vista o propósito desse trabalho, e para complementar o já exposto, passamos a discorrer sobre algumas das idéias de Henriette Walter, contidas no seu artigo “Diversidade Fonológica e Comunidade Lingüística”. Percebe-se, nas colocações desse autor, fatos de sistema, de norma e de fala. Interessa-nos, porém, apresentar a relação que ele estabelece com aspectos do processo de comunicação verbal, alvo de todo ensino de línguas.

Uma língua é instrumento de comunicação que serve a vários usuários e, por isso, não será surpreendente que esses usuários a empreguem de formas diferentes.

O sistema de oposições firmes é aquele que concerne às oposições observadas por todos os falantes, enquanto que as oposições sobre as quais a totalidade da comunidade não está de acordo constituem o que se pode chamar de sistema periférico. Dessa forma, determina-se o que é essencial para a comunicação, já que se trata de distinções comuns a todos, e as oposições que são parcial ou aleatoriamente observadas, e somente por um certo número de falantes.

É assim que se chega ao sistema restrito de uma língua, o qual forma a sua parte central. Pode ser extremamente útil para o ensino das línguas, pois a comunicação não existe sem essas oposições.

Entretanto, a apresentação desse sistema restrito, que considera apenas as oposições indispensáveis, não apresenta as oposições que, se não são gerais, contribuem, no entanto, para dar à língua sua fisionomia particular.

Nos processos de ensino/aprendizagem de língua materna, toda observação deve constituir o objeto de uma menção particular, na condição de hierarquizar os fatos, atribuindo a cada oposição o lugar que lhe é funcionalmente devido no sistema em questão. O professor não poderá renunciar a ensinar algumas oposições, cuja descrição teórica revele que elas são estaticamente insignificantes ou que marquem o falante como membro desta ou daquela classe da sociedade. Se assim ocorrer, o professor se expõe ao inconveniente de considerar apenas uma parte do processo : emitir enunciados. Ora, “ falar” uma língua não significa simplesmente isso, mas, sobretudo, compreender os enunciados emitidos pelos outros falantes dessa língua. O falante atua também como ouvinte. Daí a necessidade, para o ouvinte, de estar preparado para captar as distinções feitas por seus interlocutores, mesmo que ele próprio se dispense de realizá-las. Deve saber que elas existem, se deseja poder identificá-las, para compreender rápida e seguramente as mensagens que lhe são transmitidas.

Referências  bibliográficas:

COSERIU, Eugenio. Teoria da Linguagem e Lingüística Geral.     Rio de Janeiro/ São Paulo, Presença/ EDUSP, 1979.

WALTER, Henriette “Diversidade Fonológica e Comunidade Lingüística”. In: MARTINET, Jean et alii.  Da Teoria Lingüística  ao  Ensino da Língua. Rio de  Janeiro, Ao Livro Técnico, 1979.