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Thiago M. S. Rodrigues
Coord. do curso de Relações Internacionais da FASM e pesquisador no
Núcleo de Sociabilidade Libertária da PUC-SP (Nu-Sol/PEPG-Ciências Sociais)

Não gosto de palavra acostumada
Manoel de Barros

 

1. formas & brados

O Museu de Arte Moderna de São Paulo abrigou, de dezembro de 1956 a janeiro de 1957, a Exposição Nacional de Arte Concreta, evento que reuniu um pequeno grupo de poetas e artistas plásticos afinados às propostas construtivistas da vanguarda artística européia dos anos 1940, cristalizadas, principalmente, no campo da música, da pintura e da escultura. Como representante das artes visuais, a Exposição trazia obras de pintores vinculados ao grupo Ruptura, liderado por Waldemar Cordeiro e atuante no cenário artístico brasileiro desde o final da década anterior [1] . Da poesia, compareceram com poemas-cartazes, Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, todos paulistanos, e Ferreira Gullar, Wladimir Dias-Pino e Ronaldo Azeredo, três poetas radicados no Rio de Janeiro. A repercussão na mídia da cidade foi mínima. Escândalo ou demonstrações públicas de ojeriza, esperadas reações de rechaço às manifestações de claro afrontamento aos valores estéticos estabelecidos, não vieram para decepção dos participantes [2] .

Como tentativa para contornar a frieza com que a mostra foi recebida em São Paulo, os participantes decidem remontar a exposição no Rio de Janeiro. Instalada no saguão do Ministério da Educação e Cultura a exibição das peças concretistas causou furor. A imprensa carioca deu grande cobertura ao evento e aos debates provocados pela exposição, em especial à nova poesia concreta. A revista O Cruzeiro, por exemplo, dedicou matéria intitulada “O ‘rock’n roll’ da poesia” associando a poética proposta à energia e à polêmica do gênero musical “que causava mais sensação na época.” [3] A reportagem registrava, ainda, o clima acalorado da ‘Noite de Arte Concreta’, mesa redonda promovida pela União Nacional dos Estudantes que contou com palestra de Décio Pignatari. “Quando o Sr. Décio Pignatari acabou sua conferência”, descreve o artigo de O Cruzeiro, “o crítico Antônio Houaiss anunciou que tinha 40 objeções. Os debates laterais exacerbaram-se” [4] .

Essa ‘nova poesia’ fora publicamente apresentada como ‘poesia concreta’ ainda em 1955, quando em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, Augusto de Campos anunciava a estréia de um espetáculo no Teatro de Arena no qual seriam oralizados poemas seus sob a regência de Diogo Pacheco. Augusto de Campos chamava a atenção para o fato que, “em sincronização com a terminologia adotada pelas artes visuais e, até certo ponto pela música de vanguarda, diria eu que há uma poesia concreta. [5] Os poemas apresentados foram três da série poetamenos, escritos a partir de 1953 e publicados, em 1955, no número 2 da revista Noigandres. Organizavam a Noigandres os irmãos Campos e Décio Pignatari, poetas que emergiram de uma prática poética relacionada à poesia da ‘Geração 45’ para romperem explicitamente com as obras de poetas como Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. O nome da revista, também o nome do grupo formado pelos três poetas, fora sacado do Canto XX dos Cantares de Ezra Pound, no qual o poeta estadunidense fazia referência ao poeta provençal Arnaut Daniel:

“E ele disse: ‘Noigandes! NOIgandres!

Faz seis meses já

Toda noite, qvando fou dormir, digo para mim mesmo:

Noigandres, eh, noigandres,

Mas que DIABO querr dizer isto!

(...)

o aroma desse lugar – d’enoi gandres.” [6]

A escolha do nome, ainda no começo dos anos 1950, sugeria a orientação que o grupo de jovens poetas pretendia assumir, evocando Pound e seu paideuma (Joyce, Mallarmé, Apollinaire); norte poético explicitado em textos teóricos e críticos posteriores.    

Dos poetas paulistanos, foi Augusto de Campos que entrou em contato com Ferreira Gullar, em 1955, após conhecer seu livro A luta corporal editado em 1953. Soando num ainda pouco claro ‘espírito vanguardista’, Augusto de Campos e Ferreira Gullar trocaram correspondência e estabeleceram um canal de interlocução entre poetas irrequietos de São Paulo e do Rio de Janeiro. Vínculo que se mostraria frágil. Apesar da aproximação entre os poetas das duas cidades ter sido intensa o suficiente para possibilitar a montagem (e sucesso na versão carioca) da Exposição de Arte Concreta e a inclusão de Ronaldo Azeredo no grupo Noigandres, o descompasso “no modo de conceber a poesia e a própria cultura” [7] entre a tríade paulistana e Gullar, membro mais combativo do núcleo concretista fluminense, evidenciou-se com rapidez.  

O aparecimento, em 1958, do ‘Plano-piloto da poesia concreta’ nas páginas de Noigandres 4, foi marco-síntese da proposta concretista e estopim para o afastamento de Ferreira Gullar dos poetas paulistanos. O ‘Plano Piloto’ foi publicado como um manifesto, recurso usual das vanguardas históricas para decretar a morte da ‘arte velha’ e o surgimento da ‘nova verdade’. O texto, assinado pelos Campos e Pignatari, colocava a poesia concreta como “produto de uma evolução crítica de formas” que dava “por encerrado o ciclo histórico do verso”. [8] A caduca expressão poética em verso deveria, pois, ser sucedida pela exploração espaço-temporal da matéria gráfica, numa interpretação do poema como “um objeto em si e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas.” [9] Pelo trabalho matemático do signo e pela procura da subversão da comunicação usual através da conquista de emissões que dessem conta do tríptico verbivocovisual (palavra, som e forma visual), o poema concreto soterraria toda “poesia de expressão, subjetiva e hedonística” abrindo passagem para o poema como “objeto útil.” [10] Estavam alinhados no manifesto concretista, poetas, músicos e movimentos vanguardistas considerados ‘precursores’ da nova estética: Mallarmé, Pound, Apollinaire, Joyce, Cummings, Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Fenollosa; Dadaísmo e Futurismo; Webern, Stockhausen e Boulez (música concreta e eletrônica); Max Bill e “arte concreta em geral”. 

Delimitava-se, assim, a postura poética dos concretistas, com seu quadro de referências e com alvos bem delimitados. Ultrapassada era, desse modo, toda a poesia produzida no país: tributários da discursividade da Geração de 45, os versos de então eram considerados líricos, estéreis e negadores dos ‘avanços’ formais alcançados pelos modernistas. Era antiquada, portanto, toda produção poética que desconsiderasse a poesia, em sua materialidade, como cristalização do momento histórico de sputniks e televisores. Subversão da linguagem, destruição do verso e do sentido que rasgariam a vanguarda poética brasileira.

2. marcha & desbunde

Meses após a publicação do ‘Plano-piloto da poesia concreta’, o Jornal do Brasil estampa um texto assinado por Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmaner, Lygia Clark, Lygia Pape, Reinaldo jardim e Theon Spamídis identificado como ‘Manifesto Neoconcreto’. Nele, os autores argumentavam a favor da retomada urgente da ‘sensibilidade na arte’ contra o que identificavam como a “perigosa exacerbação racionalista” [11] da arte concreta. Afirmavam, os neoconcretos, que a arte concreta lastreava-se numa espécie de ‘ditadura da teoria’ que rompia os laços entre artista e espectador, uma vez que a arte produzida era demasiadamente cerebral, mecânica e hermética. Para a retomada da arte como veículo de comunicação de sensações era preciso romper com a desumanização da obra promovida pelo concretismo. O neoconcretismo nascia, desse modo, para negar “a validez das atitudes cientificistas e positivistas em arte e [repor] o problema da expressão, incorporando as novas dimensões ‘não-verbais’ criadas pela arte-não figurativa”. [12] Tratava-se, pois, da tentativa de retornar ao sentimento e à inteligibilidade sem retomar modos de expressão figurativos. Do ponto de vista da poesia, o neoconcretismo ataca a postura do grupo Noigandres, reputando-a tão mecânica quanto a da pintura concreta.

A poesia neoconcreta “ao contrário do concretismo racionalista, que toma a palavra como objeto e a transforma em mero sinal ótico, devolve [a palavra] à sua condição de ‘verbo’, isto é, de modo humano de representação do real”. [13] O neoconcretismo, em poesia, está lastreado na acusação de “frieza e desumanidade” que a poesia concreta teria ao investir na “formulação da poesia e do poema como técnica de linguagem, como estrutura verbal que se esgota em si mesma.” [14] Um tato deveria ser restabelecido na relação entre o poeta e seu leitor uma vez que o poema só existe “a partir do momento em que o leitor possa lê-lo (...) por isso, ele é um não-objeto, um projeto de existência que só vem a se realizar quando lido.” [15] O afã em religar poeta e leitor pela força semântica impressa na forma, promove a produção de livros-objeto e poemas-objeto, como os do próprio Gullar e os de Lygia Pape [16] , com o convite para que o espectador-leitor tocasse e interagisse com a obra.     

O período vanguardista de Ferreira Gullar, contudo, tem pouca sobrevida após o Manifesto Neoconcreto. O panorama político e social brasileiro de princípios dos anos sessenta dominado por agitações urbanas, ligas camponesas e instabilidade institucional compele o comunista Gullar a avaliar sua participação na vida cultural do país tendo como pano de fundo para sua auto-crítica a idéia socialista da necessidade de atuação política do artista. Nesse momento, as críticas à ‘frieza’ e à ‘desumanidade’ da poesia concreta, contidas na profissão de fé neoconcreta, transmutam-se em negação à própria postura de vanguarda. Para Gullar, a poesia concreta e neoconcreta incorrem no mesmo erro fundamental, pois “partem de uma concepção mágica da linguagem, segundo a qual seria possível imprimir à linguagem verbal um modo de expressão aconceitual”. [17] Por ‘aconceitual’ Gullar afirma entender a crença de que “existe uma verdade que não pertence ao mundo racional e à qual só a arte tem acesso.” [18] Tal postura implica no enclausuramento do artista num mundo no qual opera apenas sua lógica, transformando-o num indivíduo desconectado das necessidades e questões do homem em sociedade. As vanguardas poéticas brasileiras de então seriam, tão-somente, movimentos auto-referentes e alienados. A poesia do grupo Noigandres, formalista e racional estaria, a partir desse ângulo, apartada da realidade social; atitude que, em tempos de marcada cobrança ideológica, apresentava-se como ‘retrógrada’ e ‘reacionária’. 

À medida que se desvencilhava das suas então recentes pesquisas vanguardistas, Gullar se aproximava do CPC da UNE e de uma postura literária que defendia como possível a manutenção de uma obra poética rica e ao mesmo tempo atenta à vida social. A poesia política deveria ser entendida enquanto “linguagem concebida como meio de comunicação social e não como código para iniciados” [19] . A obra poética assume, portanto, a dimensão de um “instrumento de conscientização social (...) que contribui para que o povo tome consciência cada vez maior de seus problemas e das causas deles” [20] . Visão do papel da arte e do artista perfeitamente afeito à concepção de vanguarda marxista-leninista, na qual cabe aos ilustrados e detentores das chaves de análise e cognição do real apresentar à massa pouco instruída as leis que instauraram e sustentam sua situação de penúria, bem como os caminhos para sua superação.  

A resposta do grupo Noigandres a essa súbita ‘politização’ das discussões que aparentemente apenas se davam no plano estético, vem impressa, já em 1961, num post-scriptum adicionado ao ‘Plano-piloto da poesia concreta’. Os poetas concretos adicionam ao seu manifesto a afirmação de Maiakovski: “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”. A seca réplica concretista promove uma estocada com duas dimensões: num plano mais evidente, contesta o chamamento à atuação política de Gullar lembrando que a linguagem e o discurso devem ser transformados para que se operem câmbios sociais palpáveis; num segundo plano, podemos destacar que os poetas paulistanos contra-argumentam a acusação de ‘direitismo’ pela voz de um poeta russo, entusiasta da Revolução de Outubro de 1917 e que se vê perseguido com o endurecimento do regime soviético nos anos 1920.  

Ainda como reação a tais acusações , os poetas concretos se propuseram, no começo dos anos sessenta, a investir no “enriquecimento semântico” [21] dos poemas com o intuito de incrementar a adoção de temas sociais em sua poesia. Seria o ‘salto participante’que, segundo Menezes “consistia apenas na adoção um tanto artificial de temas ligados às questões político-sociais (fome, greve, reforma agrária), sem que isso afetasse significativamente a estrutura formal do poema concreto e sua concepção de poesia.” [22]

A publicação, em 1964, do livro Cultura posta em questão, de Ferreira Gullar, incita Augusto de Campos a responder às críticas tecidas pelo poeta à poesia concreta. No artigo “Poesia concreta: memória e desmemória” [23] , Augusto de Campos rebate observações formais realizadas por Gullar acerca da poesia concreta e sustenta que a ‘secessão’ do grupo vanguardista em concretos e neoconcretos foi “forjada, jornalisticamente, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil”. [24] Em adição, Gullar, afirmava Augusto de Campos, teria apenas com esse ‘ato rebelde’ acrescentado um “ ‘neo’ e não um ‘não’” [25] , permanecendo ‘concreto’. No que se refere ao tema do engajamento político, Augusto de Campos chama a atenção para o fato de que na “proclamação da morte cultural da arte e da sua ressurreição na base de possí-veis populismos nacional-socialistas ou realistas-sociais [há o perigo] da reincidência nas teses gêmeas e solidárias da ‘arte degenerada’ (nazista) e da ‘arte decadente’ (stalinista)”. Poucas linhas abaixo, completa: “Maiakovski, sufocado e sabotado pelos proletcultores stalinistas, preferiu matar-se a si próprio a matar sua arte” [26]

Quando o concretista escreve suas réplicas ao texto de Ferreira Gullar, a situação política no Brasil agravava-se com rapidez. Os dois primeiros anos do regime de exceção haviam sido permeáveis a certo grau de manifestação artística e popular, fato que motivou uma explosão de manifestações contrárias à ditadura militar, que foram desde passeatas reunindo milhares de pessoas nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro à produção cultural ampla plasmada em filmes, peças teatrais, romances e poemas. Para evitarmos a impossível reconstituição sociológico-política desse período, esforço que vai muito além das possibilidades desta breve reflexão, atentemos para um fenômeno particular – a música popular – e, dentro dele, a uma questão que nos interessa pela relação com o embate discutido acima entre os concretistas e Ferreira Gullar: tomemos, ainda que superficialmente, a querela entre o Tropicalismo e a música de protesto.  

Em passagem de Verdade Tropical [27] , Caetano Veloso relata a noite em que, após uma sessão bem sucedida de gravação de sua canção “Baby” por Gal Costa, ele e um grupo de amigos, incluindo Gal, encontraram Geraldo Vandré, músico paraibano conhecido por compor temas de forte apelo social, num restaurante de São Paulo. Vandré teria pedido para que Gal cantasse um trecho da canção que tanto os entusiasmara. Nos primeiros versos, Vandré interrompeu com violência a interpretação iniciando forte discussão com Caetano. Segundo o compositor baiano, Vandré o atacou tendo como base de sua argumentação um discurso de cunho nacionalista que reverberava acusações referentes à utilização de uma estética calcada no rock ‘n roll e à letra desatenta ao tema da ‘conscientização das massas’.

O episódio é tão mais interessante, pois concentra a tensão política que deve, ao menos, ser problematizada no curto espaço dessa reflexão. Os exemplos de situações nas quais o antagonismo entre músicos engajados e os tropicalistas são inúmeros, reproduzindo o ambiente de discussão criado entre concretistas e poetas ‘com preocupação social’, no início dos anos 1960. Se, num rápido exercício, contrapusermos os versos de “Alegria, alegria”, canção de Caetano Veloso gravada em 1968, e os de “Para não dizer que não falei em flores”, composição de Geraldo Vandré, estaremos diante da batalha semântica e estética que passava a ser travada. Frente aos versos de Vandré: “Vem, vamos embora/ que esperar não é saber/ quem sabe faz a hora/ não espera acontecer”, evidente convocatória à ação organizada das massas contra o regime ditatorial, os de Caetano Veloso (“Caminhando contra o vento/ sem lenço, sem documento/ no sol de quase dezembro/ eu vou”) soavam, aos ouvidos ‘politizados’, descomprometidos com a situação política e social do Brasil de então. A letra de “Alegria, alegria” é, para Luiz Tatit, dotada de “extrema presentificação”, tratando-se de “um eu/aqui/agora exercido com toda a plenitude, descomprometido com o passado remoto ou recente e apenas ligeiramente voltado a um futuro imediato”. [28] Essa postura de recusa, ou mesmo simples constatação de que o agente da canção é um indivíduo não-localizável (“sem lenço, sem documento”) é, por si, provocação radical à urgência em se identificar colocada tanto pelos artistas engagés, quanto pelo regime militar.

Na transformação dos “É proibido proibir” grafados nos muros da Paris convulsionada de maio de 1968 em canção por Caetano Veloso esteja, talvez, a pista que nos permita vislumbrar como a política emerge num discurso e numa prática considerados ‘pouco politizados’ para os padrões da época. As agitações estudantis em Paris e em diversas cidades no globo anunciaram o esgarçamento das formas tradicionais de resistência à hierarquia e às diversas formas de dominação. Há, de fato, uma desterritorialização das maneiras de sentir e reagir a situações plurais de submissão e sublevação. Resistir deixou de significar uma filiação direta a uma organização socialmente reconhecível. Os partidos socialistas, sindicatos e organizações sociais tradicionais pareciam inaptos a responder pelas vontades múltiplas de indivíduos não homogêneos ou homogeneizáveis. O momento era de contestação as normas e costumes e as agremiações políticas de esquerda se apresentavam, não raro, como espaços impermeáveis às novas demandas locais. Brotava uma sensibilidade que percebia a urgência em resistir ao mesmo tempo em que se explicitava a impossibilidade de uma luta universal. Ao serem detidos, em dezembro de 1968, Caetano Veloso e Gilberto Gil tardaram a perceber o motivo de sua prisão. Ao serem hostilizados abertamente pela esquerda artística, os tropicalistas acreditavam estar imunes à perseguição perpetrada contra os ‘subversivos’. A prisão e posterior expulsão dos músicos revelou, no entanto, que o governo brasileiro parecia ter a exata medida do ‘potencial subversivo’ da proposta tropicalista, encabeçada por Gil e Caetano [29] . Não se tratava, por certo, de uma atuação política tradicional, afinada às clássicas facções socialistas, mas uma insubmissão de novo tipo, construída sobre a transgressão comportamental e estética: novos movimentos para o corpo, novas sonoridades para a música.

A incorporação de recursos eletrônicos, notadamente a guitarra elétrica, fizeram com que os concretistas percebessem no tropicalismo a continuação do movimento de internacionalização da música brasileira iniciado pela bossa nova. O diálogo com o que havia de inovador no plano internacional aproximava tropicalistas e concretistas, bem como os colocava sob a mira dos artistas nacionalistas de esquerda. As aproximações entre os grupos continuavam na adoção de referenciais comuns, como por exemplo, a obra de Oswald de Andrade. O contato entre concretistas e tropicalistas deve ser percebido no campo da produção poética e cultural [30] e também nas afinidades políticas que se pode apreender de posicionamentos polêmicos e pouco convencionais segundo os parâmetros políticos de resistência dos anos sessenta. Esse trabalho, pesquisa extensa e provocativa, deve ser alvo de investigação posterior. Por ora, vale ressaltar que o desmonte da linguagem, seja pelo rompimento do verso no concretismo, seja pela deglutição antropofágica dos elementos da cultura pop internacional pelo tropicalismo, vibram num diapasão inusitado que coloca a resistência política potencialmente em outro espaço: uma vasta extensão de singularidades.         

3. poesia pop: fluxos & eletronika

A impossibilidade de inventariarmos minimamente o que se produziu ou não em termos de poesia de invenção no Brasil desde a poesia concreta, nos conduz a outro desfecho. Com a preocupação no presente, a questão a ser posta deve transitar pela reflexão sobre a possibilidade de agir política-poeticamente, sem, contudo, procurar uma direção inequívoca. Sem ganas de indicar caminhos, cabe perscrutar as potencialidades políticas do fazer poético na contemporaneidade. Dois aspectos parecem-nos importantes como orientação: o papel da música popular e da poesia musical (letras de canção) na história do fazer poético na qual vivemos e a explosão do conceito de política, rompendo amarras dos cânones tradicionais. De um lado, revisitar uma tradição; de outro, apontar o esgotamento de outra tradição. A produção poética no cancioneiro do Brasil responde por muito da originalidade das soluções poéticas desenvolvidas no país. Do ponto de vista estético e de complementaridade de linguagens, a música cumpre papel importante ao explicitar referências e definir procedências. O rock’n roll enquanto signo comportamental foi componente capturado pelo tropicalismo para anunciar o reprocessamento do ‘velho’ e o regurgitar do ‘novo’. As guitarras elétricas eram, então, a cristalização da rebeldia, da insurreição contra os costumes, da destruição da ambiência musical de outrora. A Tropicália não foi um movimento de roqueiros, mas fez do rock matéria para digestão. 

Desde a poesia marginal dos anos setenta, a produção de poesia literária está diretamente vinculada à produção de poesia musical: poetas são músicos, poetas dialogam com estilos musicais ou letristas se relacionam com a poesia de livros. Mesmo o suporte tradicional da poesia literária – a folha de papel – perde terreno como veículo preferencial para a comunicação poética ao serem tecnicamente viabilizados outros canais de produção e distribuição de poemas e canções. Assim, o verbivocovisual preconizado pelos concretistas ainda nos anos cinqüenta pôde ser exercitado com maior desenvoltura a partir dos anos oitenta. Os próprios concretistas puderam ousar em leituras tridimensionais e sonoras de seus poemas, como atestam as experiências de Haroldo de Campos (no CD “isto não é um livro de viagem: 16 fragmentos de galáxias”, de 1992), de Augusto e Cid Campos (no show/disco “Poesia é risco”, de 1995) e as animações computadorizadas de poemas concretos como “Bomba” de Augusto de Campos e “Femme” de Décio Pignatari, realizados entre 1992 e 1994. [31] O trabalho de Arnaldo Antunes é exemplo de explorações intersemióticas que tem a palavra como materialidade a ser contorcida, processada e transfigurada. A experimentação concretista permanece, assim, vinculada à produção de música pop, em versões mais ou menos ‘palatáveis’ para o mercado fonográfico.

Nos anos noventa, as pesquisas do poeta Philadelpho Menezes a partir da poesia visual o conduziram à poesia sonora, gênero com história própria e especificidades dentro da vanguarda do século XX. [32] As investigações de Menezes, por sua vez, o levaram à exploração da interatividade mediada por recursos informacionais que ganharam voz com a edição (em parceria com Wilton Azevedo) do CD-ROM “Interpoesia”, em 2000, pouco antes de sua morte precoce. A virada do século registra ainda trabalhos como os da importante dupla Tetine, composta pelo poeta Bruno Verner e pela música Eliete Mejorado, que investem em discos/performances que mesclam as línguas inglesa e portuguesa numa poética, por ora verborrágica, por ora contida, sempre com grande carga sensual e referenciais pop.Vale ainda destacar o projeto musical de musicalização de poemas experimentais promovido por Cid Campos (ver CD “No olho do lago”, de 2001), nas experiências visuais-computadorizadas do poeta Lucio Agra e, mesmo, na ainda incipiente experimentação do texto poético parametrada por indicações da música pop internacional do grupo R2, integrado por este que escreve.       

Apesar da profusão de exemplos que vem para atestar a permanência da experimentação poética após o propagado anúncio da ‘morte da poesia de invenção’, o espaço para tal forma de fazer poético é pequeno dentro do já reduzido ambiente reservado à poesia. Parece haver acontecido, em anos recentes, uma opção dos atuais jovens poetas pela revalorização estética de poetas da Geração de 45 acompanhada de certa visão da poesia de invenção como ‘picardia juvenil’, interessante como manifestação apenas na tenra idade do poeta. Não há, contudo, uma batalha deflagrada no ambiente poético brasileiro que provoque o escape da letargia ensimesmada que retorna em poemas de manso lirismo. Não se trata, logicamente, de uma prédica melancólica pela volta da polarização ‘ideológica’ dos anos sessenta. A poesia política de hoje não pode ser a mesma ‘poesia política’ preconizada por Ferreira Gullar, tampouco o contato vida/obra, cobrado pelo poeta nos anos sessenta, pode ser traduzido como a produção de uma poesia impregnada de indignação social.

Na pulverização das demandas, multiplicidade não-catalogável da política contemporânea, resistências pululam na emergência de uma nova ética. Uma ética de si, de construção da própria existência sem, com isso, promover isolamentos e hedonismos. Pode, nesse ambiente, a poesia ser política ao ser entendida como um viver em poesia? Não, certamente, no sentido de ‘uma vida belamente poética’, onírica ou bucólica, mas no sentido de uma ‘vida como obra de arte’ como sustenta Foucault: estetização da vida não como sinônimo de ‘embelezamento’ mas como ‘forma’. O indivíduo como esteta de si é o homem que se talha em contato com os outros. A poesia de invenção pode, todavia, cumprir um papel de ‘inversão’, demolição e descoberta de possibilidades outras de vida. Uma arte revolucionária como açoite da linguagem. Uma poesia que incomode, embaralhe e resignifique. Uma poesia de parabólica cravada na carne. Essa reflexão, pequeno (balão de) ensaio, tão-somente, lança no ar palavras em pergunta que amola: poesia? 

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[1] Sobre o Grupo Ruptura ver CINTRÃO, Rejane; grupo ruptura: revisitando a exposição inaugural; São Paulo, Cosac & Naif, 2002. Nessa publicação, catálogo da remontagem da exposição do grupo de 1952 atualmente em cartaz no Centro Universitário Mariantonia da USP, é possível encontrar reproduções de obras, a breve história do movimento de arte concreta e biografia de seus principais nomes como Luis Sacilotto, Waldemar Cordeiro, Geraldo de Barros, entre outros.

[2] MENEZES, Philadelpho; Poesia concreta e poesia visual; São Paulo, Editora Ática, 1998, p. 42.

[3] FRANCHETTI, Paulo; Alguns aspectos da teoria da poesia concreta; Campinas, 1993, p. 131.

[4] Reprodução da página inicial da reportagem ‘O ‘rock’n roll da poesia’ de O Cruzeiro in MENEZES, op. cit., pp. 44 e 45.

[5] CAMPOS, Augusto de; Poesia, antipoesia, antropofagia; São Paulo, Cortez & Moraes, 1978, p. 68 (grifo do autor).

[6] POUND, Ezra; Poesia, (traduções de Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, J.L. Grünewald e Mário Faustino); São Paulo-Brasília, Hucitec/Editora UnB, 1993 p. 182.

[7] MENEZES, idem, p. 50.

[8] CAMPOS, A.; CAMPOS, H.; PIGNATARI, D.; Teoria da Poesia Concreta, São Paulo, Editora Duas Cidades, 1975, p. 156.

[9] Idem, p. 157.

[10] Ibid., p. 158.

[11] ‘Manifesto Neoconcreto’ in TELES, Gilberto Mendonça; Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro, Petrópolis, Editora Vozes, 1999, p. 406.

[12] Idem, p. 408.

[13] Ibid., p.410.

[14] FRANCHETTI, op. cit. p. 124.

[15] MENEZES, op. cit. p. 51.

[16] Para entrar em contato com poemas-objeto de Lygia Pape ver PAPE, Lygia; Gávea de Tocaia, São Paulo, Cosac & Naif, 2000.

[17] GULLAR, Ferreira; Cultura posta em questão/ Vanguarda e Subdesenvolvimento, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 2002, p. 154.

[18] Idem, ibidem.

[19] GULLAR, p. 155.

[20] Idem, ibidem.

[21] FRANCHETTI, op. cit. p. 133.

[22] MENEZES, op. cit. p. 46.

[23] Esse artigo encontra-se na coletânea de ensaios Poesia, antipoesia, antropofagia, op. cit., onde somos informados de que ele fora escrito para ser publicado na revista Invenção, todavia, tendo sido interrompida a circulação da publicação concretista que substituiu, no começo dos anos sessenta, a revista Noigandres, o mesmo permaneceu inédito até 1978, ano da publicação do mencionado livro.

[24] CAMPOS, A., op. cit. p. 69.

[25] Idem, ibidem.

[26] Id., Ibid.

[27] VELOSO, Caetano, Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 280.

[28] TATIT, Luiz, Análise semiótica através das letras, São Paulo, Ateliê Editorial, 2001, p. 185.

[29] CALADO, Carlos, Tropicália: a história de uma revolução musical, São Paulo, Editora 34, 1997.

[30] SANTAELLA, Lúcia, Convergências: poesia concreta e tropicalismo, São Paulo, Nobel, 1985.

[31] ARAÚJO, Ricardo, Poesia visual, vídeo poesia, São Paulo, Perspectiva, 1999.

[32] MENEZES, Philadelpho (org.), Poesia sonora: poéticas experimentais da voz no século XX, São Paulo, Educ, 1992.