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Os Mundos de Sophia

 

Fabio Ulanin
Professor da FASM
Mestrando em Literatura - PUC-SP

 

Existem aqueles poetas que procuram construir seu texto a partir de um referencial teórico rebuscado, na tentativa de moldar seu texto às teorias poéticas/estéticas em voga, na ânsia pela obediência cega à “contemporaneidade” ou coisa que o valha. Não são, necessariamente, maus poetas – mas permanecem presos a “ismos” impostos que não devem ser a primeira preocupação de quem pretende recriar o mundo através da palavra.

Existem, por outro lado, aqueles que buscam na simplicidade do texto, das formas e palavras, um elemento que possa criar este mundo poético a partir de coisas que já estavam à frente de seus olhos – basta, e verdade, de como se vê a realidade. Dentre estes poetas, encontramos Sophia de Mello Breyner Andresen.

A sua preocupação é clara, como a própria poeta afirmou em seu discurso de 11 de julho de 1964, na Sociedade Portuguesa de Escritores, quando da entrega do Grande Prêmio de Poesia à sua obra Livro Sexto:

“A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. Eu também a reconheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeu de Souza Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.”

É deste real que parte Sophia na constituição de sua obra, intensa, sem arestas, sem falseamentos: uma observação clara e objetiva daquilo que a cerca, seja uma maçã numa mesa de quarto de hotel frente ao mar, seja a própria paisagem que se abre em revelação intensa da verdade tão obviamente escondida, seja o sentimento/sentido do sujeito na decodificação poética desta mesma realidade. Isto, como afirmou a poeta, revelou-se na leitura de Homero, o que já é significativo: a poética clássica, com seus valores miméticos, é o grande exemplo que deve ser resgatado para a construção da poíesis, como podemos notar no poema “Meio-Dia”:

“Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso solitário e antigo,
Parece bater palmas.”
(Obra poética – I. Lisboa: Caminho, p. 19)

É um quadro que se pinta através da pura observação objetiva, filtrada, claro, pela subjetividade do sujeito observador. A Natureza, assim, reflete a necessidade do isolamento do ser (“Um canto da praia sem ninguém”) para a fruição da realidade. A mimese, desta forma, a imitação nos moldes aristotélicos, soma-se à idéia de solidão – afinal, imitação não é daquilo que se apresenta, mas sim daquilo que poderia ser. É, como a própria poeta afirma, a perseguição do real:

“Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem.”

Desta “perseguição”, cujo resultado nem sempre se mostra positivo (pois que o real, em sua essência verdadeira, nos escapa pelo simples fato de sua representação ser imperfeita – e daí o papel da poesia para Sophia de Mello Breyner Andresen: a ida ao mundo imanente, à definição deste real só possível e plausível pela palavra poética), vamos ao encontro da Justiça e da Verdade, dois princípios clássicos que regem o homem. E é a partir do poema que encontramos esta relação: Justiça e Verdade são o único caminho que eleva o ser ao mundo ideal, partindo da concepção da realidade e da própria criação literária:

“Que poema, de entre todos os poemas,
Página em branco?
Um gesto que se afaste e se desligue tanto
Que atinja o golpe de sol nas janelas.
Nesta página só há angústia a destruir
Um desejo de lisura e branco,
Um arco que se curve – até que o pranto
De todas as palavras me liberte.”
(Ibidem. P. 233)

O que se nota é a presença, por vezes angustiante, da claridade que domina o ambiente, seja a do sol intenso sobre o mar, seja esta, da página em branco e, de novo, do sol nas janelas: uma iluminação constante e reveladora da consciência da mente criadora que vê a realidade além da sua aparência. A angústia pode ser, talvez, gerada pelo uso de um código imperfeito e inseguro – a palavra-pranto –, insuficiente para  a apreensão da Verdade. O questionamento que se abre não é frente o que o poeta vê, ou seja, à realidade objetivamente apresentada ao seu olhar, mas frente ao que este olhar pode perceber de verdadeiramente real na imagem apreendida. Neste sentido, a busca, a perseguição, do poeta nunca cessa, pois não existe um porto seguro: tudo é tão claro, tão intenso, tamanho para esta percepção sensível que o resultado será sempre o sentimento da solidão:

“É esta a hora perfeita em que se cala
O confuso murmurar das gentes
E dentro de nós finalmente fala
A voz grave dos sonhos indolentes.

É esta a hora em que as rosas são as rosas
Que floriram nos jardins persas
Onde Saadi e Hafiz as viram e as amaram.
É esta a hora das vozes misteriosas
Que os meus desejos preferiram e chamaram.
É esta a hora das longas conversas
Das folhas com as folhas unicamente.
É esta a hora em que o tempo é abolido
E nem sequer conheço a minha face.”
(Ibidem, p. 88)

A solidão precisa, objetiva: o mundo deixa de existir objetivamente para assumir uma verdade irrecusável: a dos sonhos indolentes que revelam as coisas na sua simplicidade essencial (“as rosas são as rosas”,  “a hora das vozes misteriosas”, “conversas/das folhas com as folhas”, “o tempo abolido”), revelada pela constância dos artigos definidos (as rosas, a hora, as folhas, o tempo) ressaltando a própria essência das coisas, como se elas tivessem uma vida secreta que só se revelasse no momento do silêncio, da solidão absoluta – a solidão do canto da praia, da página em branco, do tempo abolido graças ao silêncio.

Quem pode revelar este mistério – ou o segredo da realidade – é o próprio poeta e – mais – o próprio poema. O poema é a Justiça (justeza, definição objetiva das verdades) que se confunde com tudo e com todos a todo momento. É o equilíbrio do mundo, o contraponto ao murmurinho constante e perene dos homens, cegos por opção. Deste modo, o poema revela-se como uma moral cujas regras são outras que não os padrões exigidos para o comportamento social – moral essencial que vê a verdade escondida e, como se disse, tão óbvia:

“A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo duma profunda tomada de consciência. [...] Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa”.

Desta moral, desta justiça e desta verdade Sophia gera a sabedoria do mundo. A sabedoria de sua alta poesia de claridade e silêncios:

“Devagar no jardim a noite poisa
E o bailado dos seus passos
Liberta a minha alma dos seus laços,
Como se de novo fosse criada cada coisa”.