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 O Contrato 
(excerto do livro Luz e Sombra)

 

Antonio Carli

 

É um dia nublado e quase frio, o solo, o viço da erva e os jardins mostram o efeito da última chuva. 

Heitor dirige-se à sede da Honorável Sociedade para acertar detalhes das últimas negociações. A secretária o trata com grande deferência. Depois que aceitara o desafio de Aquiles, com a mediação da Honorável, ele era agora olhado como um objeto valioso, e de fato era, comparável a um cavalo de raça, que rende prêmios ao seu dono.

A sala do escritório não é grande e contém poucos móveis. A um canto está a secretária sentada junto de sua mesa, na parede oposta há várias portas que comunicam o escritório com outras salas e alguns sofás. Após cumprimentar e dizer ao que vem, é convidado a sentar-se. Ela não conhece os pormenores da importância de Heitor, mas sabe que ele é belo, tem um porte majestoso, que mexe com ela e lhe dá arrepios. Vez ou outra ela levanta os olhos de seus papéis e corre-os em volta, para vê-lo disfarçadamente, e sente ganas de mordê-lo.

Por uma das portas, apesar de fechada, chega um  ruído de vozes. Ele conhece aquelas vozes, são de Nestor e Ulisses, cientistas da Honorável, que estão empenhados em determinar a curva parabólica, que ele e Aquiles deverão descrever no dia do confronto. Devido à sua formação profissional, Heitor sabe, por antecipação, aonde vai dar aquele palavrório. Ele ajeita-se no sofá, desliga-se e sente sonolêeencia... foge... foge... raspa-te... pedaço de madeira... o problema é geométrico... geométrico... uma perpendicular pelo sangue desse camarada...  

A secretária vem a ele, saltitante, com trejeitos de menina brejeira. Traz uma rosa vermelha presa ao cabelo, sorri exibindo uma fileira de dentinhos, segurando a fímbria da saia para desimpedir seus passos de dança. Abre a boca e fala, mas nenhum som é ouvido. Mesmo assim Heitor obedece e se dirige para “aquela porta” que lhe é indicada. Os advogados estão chamando.

Finalmente, pensa ele, vou conhecer o teor do contrato que vou celebrar com a Honorável Sociedade. Levo no bolso minha lente mágica, que me permite ler as letrinhas miúdas nos rodapés e as letrinhas invisíveis. 

Enquanto caminha, a secretária vem atrás dele, dançando saltitante, dando corrupios e cantarolando.

Ela abre a porta e o convida a entrar com uma reverência digna de um rei. Era um salão enorme, repleto de mesas, funcionários, funcionárias e processos. Rapazes ajudantes, correm esbaforidos entre as mesas, recolhendo e entregando processos, que retiram de carrinhos de pedreiro. Quanta gente está sendo processada, pensa ele. Coitados!

Mas assim que a porta se abre e a figura dele preenche o vão entre os beirais, o burburinho estaca.

Uma multidão de olhos apontam para ele, olhares curiosos, nervosos, raivosos, desafiadores; olhares femininos, arregalados, admirados, cobiçosos, voluptuosos. Heitor sente-se intimidado, como se tivesse que entrar ali para pleitear emprego. Tem ganas de fugir e, por um momento, imagina-se diminuído e mais burro que nunca. Está impotente e não consegue avançar contra a força daqueles olhos.

-   Entre, Heitor, diz a secretária, eles não mordem, pois conhecem a fama de teus dentes poderosos.

Aquelas palavras o reanimam, como se a própria Minerva tivesse baixado do Olimpo para aconselhá-lo.

Ele sente raiva e vontade de mastigar a todos, um a um. Abre a boca de dentes arreganhados e lança um rugido aterrador que, preenchendo o grande salão, como numa caixa de ressonância, faz tremerem as paredes.  

A secretária escapule. Uma amarelidão tinge todas as fisionomias e a multidão de olhos desvia-se, baixando cada um as vistas para a leitura de seus processos, como se dissesse: não é comigo!

Ele avança, e à medida que caminha as cadeiras são afastadas, as mesas empurradas e um corredor se abre à sua frente, fechando-se à sua retaguarda. Os funcionários que lhe limpam o caminho postam-se à margem e, numa reverência, dizem: “Pode passar, Excelência! Quer um processo, Excelência?”

Um carregador passa em disparada rente a uma mesa e a funcionária que ali está atira o braço num gesto fulminante, como o camaleão atira a língua sobre a mariposa distraída, que quando percebe o que ocorre já está sendo mastigada. Ele então mastiga prazeroso, enquanto os dois olhinhos, como duas pintinhas pretas no topo de dois vulcãozinhos verdes, se movem para os lados, independentes. Ela atira o braço como um flash de lâmpada de magnésio na máquina fotográfica, agarra um processo que trata da proibição de voar sobre o palácio do governo. Segura-o com o polegar sobre a borda das páginas, torce o volume e deixa as páginas voltearem, como o faria um carteador habilidoso. Dali salta um papelzinho que, planando, cai ao chão. Ela o apanha e lê:

Deliciosa Etelvina:

Aqui, quem escreve, é aquele rapaz que está apaixonado. Durmo contigo, sonho contigo, mas quando acordo e estendo o braço sinto o meu lado vazio. Quando almoço e como costeletas, partindo os ossos com os dentes em busca do tutano, imagino que estou triturando teus frágeis ossinhos. 

Deixe-me beber o teu olhar e respirar o ar que tu exalas. Anseio por ele como à fumaça de um cigarro.

Oh! deliciosa Etelvina, tu me matas de paixão.

Assinado:
             Rapaz apaixonado

Sem que ela perceba, outras moças escondem-se às suas costas e lêem também, e quando terminam fazem algazarra, interpelando:

-   Aí, Etelvina! Destruidora de corações. Uma delas declara: de minha parte, por mais que me produza, por mais que trate de minhas penas e voe alto, não consigo agarrar um gavião.

-   Ora, Marialva, deixe de ser assanhada. Assim os homens se assustam. Seja mais recatada, valorize sua mercadoria. Rebole-se um pouco enquanto caminha e os gaviões voarão sobre você.

-   Acho que não vai adiantar, Etelvina. Há mulheres que têm estrela na testa.  Você tem uma e eu, nenhuma.

Um funcionário, baixinho, barrigudinho, sentindo-se com as vistas cansadas e membros entorpecidos pela posição estática de leitura dos processos, se levanta e bate as asas para se exercitar como o faria uma galinha caipira, que inopinadamente levanta o bico do solo que está bicando, estica-se na ponta das patas e bate as asas. Não sabemos por que, se para exercitar-se, se para refrescar-se ou para quebrar a rotina. Em seguida ela cacareja uma melodia curta, que termina com uma nota prolongada. Sai caminhando e vai bicar noutra parte.

Esse procedimento é uma tradição da sociedade galinácea.

Assim faz o funcionário, coloca-se na ponta dos pés, olha para o forro e bate as asas. O deslocamento de ar faz os papéis voarem das mesas, as páginas em consulta dos processos se fecham e outras se abrem, como uma lufada de vento faria num monturo de folhas secas. As brasas dos cigarros se avivam e lançam fagulhas incandescentes sobre as folhas e sobre as camisas de linho. Ocorre um gritaria geral e um voz irada ordena:

- Vá voar lá fora, seu cretino!   

A uma das mesas, um funcionário gordo e suarento, folheia e lê com gestos demorados, como se estivesse em câmara lenta. Vez ou outra, aponta uma palavra com o dedo e resmunga: cáspita.

Sentado junto de outra, um homem magro e espigado, com uma aba de plástico verde protegendo os olhos, presa à cabeça por anel elástico, está parado diante de um processo aberto à sua frente, sobre a mesa. 

Estaria lendo? Heitor não sabe, pois nada dele se move, nem pisca e os olhos estão parados como se dormisse de olhos abertos, enquanto as moscas caminham em seus braços, mas, rápido como um raio e numa fração de segundo, aquele processo é empurrado e ele pega outro. Folheia-o com rapidez, como um mágico trabalhando, enquanto as moscas esvoaçam espavoridas. 

Heitor quase cai de susto. Novamente o funcionário volta à posição estática, enquanto as moscas retornam, aos poucos, desconfiadas. Assim fica ele, enquanto uma corda invisível dentro dele, vai se enrolando e se retesando até o próximo disparo.

Heitor vai passando. Nas paredes, dezenas de quadros de todos os tamanhos assistem à passagem dele. Olha de relance um dos quadros. Ele apresenta uma cena idílica: leões, gazelas, ovelhas, alados, estão num prado relvado e florido. Trazem as cabeças cingidas por coroas de flores campestres, amarradas ali por uma fita, onde se lê: “paz e amor”. Um grupo deles,  formado de várias espécies, brinca de roda e canta. Noutro, leões, ovelhas e gazelas, cingem-se pela cintura e ensaiam passos de dança. Uma ovelha, parida e sentada, traz no colo um filhote de leão, acaricia a cabecinha peluda e macia com infinito carinho e oferece os seios fartos e leitosos, enquanto seu próprio filhote ao lado, faz birra.

Aí está uma alusão à paz e à concórdia, pensa Heitor.

Ele olha outro quadro e nele vê uma mulher de cabelos longos, rosto levantado, lábios vermelhos e carnudos. Ela, de boca aberta e dentes à mostra, está gargalhando estrepitosamente. Ela ri com os lábios, com os dentes, com os olhos e com o corpo todo. Será que teria ouvido alguma piada picante? Aí está uma alusão à Mona Lisa, pensa Heitor.

Finalmente Heitor se depara com um quadro que o faz parar. Uma mulher muito bela, de ar majestático, com um diadema na cabeça, está sentada de frente, numa cadeira de espaldar alto, de madeira esculpida e envernizada. Seus cabelos negros, ondulados e brilhantes, caem-lhe sobre os ombros e é possível visualizar parte dos seios. Seu vestido é branco e rendado, de tecido leve, embora com alguma folga, cai-lhe com perfeição. É como uma embalagem de luxo, que permite antever o conteúdo. Embora branca, sua pele é amorenada e deliciosa, denunciando-lhe nas veias, uma a pitada de sangue negro. Aquela pitada de sangue é como um enfeite que lhe realça a formosura, como gotas de pimenta em feijoada suculenta lhe avivam o sabor. Correias douradas à moda antiga amarram um par de sandálias em seus pequenos e magníficos pés. 

Suas pernas são bem torneadas e os joelhos arredondados e sedosos são plenos de promessas.  

O braço esquerdo levantado, segura um binóculo sobre os olhos, dirigidos para longe, para a linha do horizonte.

Heitor sente-se incomodado, pois está se interpondo entre o horizonte e o binóculo e este, assestado sobre ele, o ameaça. Tudo o que ele pode fazer é examinar o quadro com a periferia dos olhos. O braço direito da mulher, formando ângulo reto com o antebraço, segura uma balança desequilibrada, com a trava articulada que segura os pratos quase na vertical. Há dois grupos de homenzinhos nus agarrados a cada prato, dependurados pelas bordas e quase caindo. Outros, que já cairam, estão no assoalho, e olham para cima em atitude de desespero.

A bela mulher não demonstra incômodo por sua balança desequilibrada ou pelos homenzinhos nus, e, certamente, assim que Heitor se retirar, ela continuará olhando o horizonte. O que estaria vendo lá ao longe?   

Algum batedor de carteira? Algum colarinho branco? Heitor não sabe interpretar aquele quadro, mas também não consegue despregar-se dali. Inopinadamente, a bela mulher deixa cair a balança, ferindo os homenzinhos nus, que gritam de dor. Uma profusão de pernas quebradas, rostos amassados e respingos de sangue se espalha pelo assoalho. Ela retira o binóculo dos olhos, e Heitor finalmente pode ver aqueles olhos amendoados. Ela estende o braço e o toca no ombro dizendo: Heitor! Heitor! Acorde! O doutor Emplumado Branquinho está chamando! Por ali, por favor, por “aquela porta!”

Sob o impacto daquelas palavras e de um quadro que, de repente fica vivo e fala, tudo ao redor se distorce e se desmancha, e uma escuridão momentânea se estende como um cobertor, mas ele abre os olhos e uma nova claridade penetra. Ele vê a secretária ligeiramente inclinada sobre ele, tocando-o delicadamente no ombro. Ela já não traz a rosa vermelha no cabelo, é a secretária circunspecta e competente que ele conhece. Endireita-se no sofá, volve a cabeça e olha para “aquela porta” e se pergunta: “O que haverá do outro lado? Acabei de passar por ela!”