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Nelly Novaes Coelho
 (Professora universitária, pesquisadora
e crítica literária – USP)

 

“As transformações, universalmente conhecidas do comportamento erótico dos jovens, indicam a decomposição do indivíduo, que não tem mais a força necessária para a paixão – a força interior da libido – e muito menos precisa dela, de um lado porque a organização social que a integra encarrega-se de afastar os interditos, que antigamente inflamavam as paixões; e de outro, porque transfere o controle (de suas pulsões) para o próprio indivíduo, que dee adaptar-se (à nova ordem/desordem) a qualquer preço.” (Adorno, A Dialética Negativa)

Essa constatação de Adorno acerca da sexofilia (fruição desordenada, promíscua e aleatória do sexo) que é uma das marcas de nosso tempo, em reação contra a sexofobia (interdito ao sexo) dos tempos de ontem, toca num dos principais nervos (se não o principal) dos movimentos feministas e da literatura feminina contemporânea: o desafio à interdição ao sexo.

Em um momento de fundas crises mundiais (ou planetárias?), como este que atravessamos, que interesse poderia haver em questões aparentemente secundárias, como literatura feminina, sexo interdito ou livre e poesia? Nenhum, se tais fenômenos forem encarados como puro entretenimento ou isoladamente, cada qual como coisa-em-si, desligados do contexto em que surgiram. Mas, se vistos pelo prisma de acontecimentos visceralmente ligados ao evoluir da história, da cultura ou da nossa consciência-de-mundo em contínua transformação, eles se revelam como essenciais.

É nessa ordem de idéias que propomos aqui a leitura de certas vozes poéticas femininas que, no início de século XX, pioneiramente, se assumiram como transgressoras do cânone fundante da civilização cristã-burguesa: o interdito ao sexo. Ao rastrearmos os motivos dessa transgressão e as formas poéticas pelas quais ela se deu, possivelmente compreenderemos melhor o porquê dessa onda de sexofilia que hoje avassala o mundo ocidental.

Referimo-nos às vozes de: Colombina (S. Paulo); Gabriela Mistral (Chile); GiLka Machado (Rio de Janeiro); Juana de Ibarbourou (Uruguay); e Florbela Espanca (Portugal). Todas elas contemporâneas e que estrearam em livro nos anos 10. Como se vê, são vozes de diferentes continentes e diferentes estágios de cultura, mas identificadas entre si (mesmo sem se conhecerem umas às outras) por um denominador comum: a imagem ideal de mulher (pura, submissa ao poder do homem) que está na base da civilização herdada e cujo modelo foi criado na Idade Média, durante o grande movimento espiritualizador realizado pela Igreja. “Modelo” que no Renascimento se transformou na imagem da “amada pura e inacessível” e do Amor visto como valor absoluto, tal como vivido na poesia (Dante, Petrarca, Camões…). Modelo que se impôs até meados da Era Romântica, quando o avanço da Ciência veio pôr em questão a própria existência de Deus e roubou do homem a sua origem divina, como “filho de Deus”… É o momento (meados do século XIX) em que o homem de “alma” vira “lama”. Amputado de sua transcendência, que sentido tinham os interditos aos “apetites baixos”? que significado teria o “pecado” se já não havia Céu para os bons e Inferno para os maus? Se o homem era pura matéria, que sentido tinha abster-se dos “gozos carnais”, para preservação da pureza da alma?

Claro está que tais perguntas não foram feitas de imediato com tal objetividade. As novas idéias sempre se propagam devagar, como uma espécie de fumaça ou atmosfera que se vai imiscuindo pelos interstícios das certezas já consagradas. Assim aconteceu com as poetas aqui em causa: o desafio primeiro que todas elas lançaram ao “interdito ao pecado da carne” foi o de assumir o pecado, como um mal ao qual era impossível resistir. Para avaliarmos melhor o grau de coragem e ousadia da transgressão assumida pelas poetas aqui em causa, comecemos pelo contexto social e cultural a que elas pertenciam.

O que era a poesia feminina no início do século XX

Nascidas no apagar das luzes do século XIX, Colombina, Gabriela, Gilka, Juana e Florbela surgiram num momento em que a poesia feminina era vista como o “sorriso da sociedade”, -rótulo dado pela crítica à poesia lírico-pueril então em moda nos salões e revistas culturais. Poesia que cantava a convencional graça feminina, ingênua e casta, lamentos de amor não correspondidos etc. Criticando a mesmice dessa poesia, o crítico argentino, José Bariel, escreve, em 1921: “(Essa poesia) não conhece outro mundo senão o dos amores, […] e está constituída por um íntimo horror contra a expressão da vida real e comum, ou chamar as coisas por seus nomes. Obedientes unicamente a sua infantil imaginação e a essa atitude espiritual do subjetivismo puro, no qual a complexidade da vida real cede ao simplismo da ficção, todas elas imaginam a mesma coisa, todas expressam os mesmos sentimentos e convergem para os mesmos motivos, formas, frases, locuções e termos.” (El Hogar n° 588)

É contra o panorama dessa “mesmice” (resultante da pacífica submissão da mulher aos cânones que a sociedade lhe impunha), que vão se fazer ouvir as primeiras vozes transgressoras, -as que expressam um eu que se busca como dono de sua própria verdade. Afinal, o que disseram elas? Comecemos com Colombina, seguindo a ordem cronológica de publicação dos livros de cada uma delas.

COLOMBINA (pseud. de Yde S.Blumenschein.São Paulo, 1882-1963) -  Vislumbres. 1908.

Personalidade de grande agudez intelectual e sólida formação cultural (estudou na Alemanha e dominava várias línguas, -algo insólito para as mulheres da época), Colombina desde a adolescência revelou-se poeta e teve seus poemas divulgados pela imprensa. Em sua palavra poética, se fundia a preocupação formal parnasiana com o decadentismo finissecular e a paixão dos sentidos ultra-romântica. Sua principal temática é o erotismo, -o tema tabu da sociedade tradicional. Foi duramen- te discriminada pela crítica que, de modo geral, confundia obra e vida do autor e, nesse caso, não podia admitir que uma mulher “séria” assumisse tais paixões. Tal comba- te não a intimidou e a levou a fazer da poesia sua “bandeira de resistência” à opressão do meio. Teve grandes amigos e inimigos. Admirada por companheiros de geração (Martins Fontes, Vicente de Carvalho, Olavo Bilac…), recebeu o apelido de “Cigarra do Planalto”. O seu talento venceu. Em seu livro de estréia, a paixão explode em san-gue, fogo, veneno, febre e morte. Explosão absolutamente insólita na poesia da época.

No sanguíneo cristal dos teus lábios ardentes

a paixão esbraveja em rubra labareda:

é a taça que contém um filtro que embebeda

e oculta no seu mel venenos inclementes.

[…]

Meus lábios quero unir aos teus lábios em febre,

mas, cuidado, por Deus! que a taça não se quebre,

e possas me beijar mesmo depois de morta!    (Vislumbres.1908)

O texto fala por si. Quanto à relação Amor e Morte (de fundas raízes míticas: Eros/Tanatos) é um dos grandes temas da poesia amorosa. Nos anos subseqüentes, coincidindo com os tempos de guerra, Colombina silenciará em livro. Só em 1930, volta a aparecer com Versos em lá menor, e até sua morte, prossegue escrevendo e publicando uma dezena de livros, sempre dando voz ao amor e à paixão dos sentidos.

GABRIELA MISTRAL (pseud.de Lucila Godoy y Alcayaga.Chile, 1889-1957) - Sonetos de la muerte. 1915.

Figura que se tornou quase lendária na América do Sul, Gabriela Mistral levou uma vida praticamente errante, imposta pela carreira diplomática e sua obstinada luta em defesa da Educação e dos direitos humanos. Foi a primeira mulher sul-americana a receber o Prêmio Nobel (1945), ocasião em que foi consagrada como o “mais alto nome da poesia feminina em língua espanhola”.

Desde adolescente entregou-se a uma vida de ação, notabilizando-se por sua preocupação com a americanidade; por seu trabalho revolucionário no âmbito da educação feminina. Seu universo poético é dinamizado por duas interrogações básicas: qual o verdadeiro lugar da mulher em um mundo que afundava, por ter perdido sua ordem, seu centro? E qual a verdadeira identidade dos povos sul-americanos, solapados pela cultura européia? Coerente com seus ideais, sua poesia exalta duas faces da mulher: a mater familiae, procriadora, protetora, responsável pela continuidade da humanidade e pela harmonia e equilíbrio da família; e a mulher apaixonada, entregue ao amor como um destino superior, luminoso, avassalante, mas trágico porque irremediavelmente condenado à morte.

Amor Amor

Anda libre en el surco, bate el ala en el viento

Late vivo en el sol y se prende al pinar.

No te vale olvidarlo como al mal pensamiento:

¡lo tendrás que escuchar!

Habla lengua de bronce y habla lengua de ave;

ruegos tímidos, imperativos de mar.

No te vale ponerle gesto audaz, ceño grave:

¡lo tendrás que hospedar!

[…]

Te ofrece el brazo cálido, no le saves huir.

Echa a andar, tú le sigues hechizada aunque vieras

¡que eso es para morir!

Em Gabriela Mistral, o Amor essencial, autêntico, amor-paixão que arraiga nas profundezas do ser erótico, está indissoluvelmente ligado à Morte.

GILKA MACHADO (Rio de Janeiro, 1893-1980) - Cristais partidos.1915.

Voz feminina de alta categoria poética, Gilka Machado está entre as mulheres que, durante o tempo em que construiram suas obras, não tiveram o justo reconhecimento de seu valor. Felizmente, o fato de ter alcançado a idade de 87 anos, permitiu-lhe conhecer em vida a consagração dos meios oficiais. De família de poetas, músicos e artistas, Gilka Machado revelou muito cedo sua atração pela poesia. Estréia em livro, com Cristais partidos, poesia que expressa o sincretismo finissecular (fusão de parnasianismo, decadentismo e esteticismo d’annunziano), e a ousada temática do desejo erótico ou de desafio ao “interdito ao sexo”, mas sempre em conflito com uma funda ânsia de pureza. É em Gilka Machado que se expressa com mais evidência o conflito entre o “pecado” e o desejo de “pureza”, -impulsos que a tradição estigmatizara como contraditórios e excludentes.

Que gozo sentir-me em plena liberdade

longe do jugo atroz dos homens e da ronda

da velha Sociedade.

-a messalina hedionda

que, da vida no eterno carnaval,

se exibe fantasiada de vestal!

[…]

Esta alma que carrego amarrada, tolhida

num corpo exausto e abjeto,

há tanto acostumado a pertencer à vida

como um traste qualquer, como um simples objeto,

sem gozo, sem conforto,

indiferente como um corpo morto,

[…]

Quando longe de ti, solitária, medito

neste afeto pagão que envergonhada oculto.

vêm-me às narinas, logo, o perfume esquisito

que teu corpo desprende e há no teu próprio vulto.

A febril confissão deste afeto infinito

há muito que, medrosa, em meus lábios sepulto,

pois teu lascivo olhar, em mim pregado, fito,

à minha castidade é como que um insulto.

O texto fala por si, revelando Gilka Machado como das mais importantes pioneiras que se insurgiram contra o interdito ao corpo, que era a base da moral social (e hoje, transgredido, é um dos mais fortes fatores da desagregação social… todo radicalismo é nefasto, embora inevitável em certo momentos).

JUANA DE IBARBOUROU (Uruguai, 1895-1979) - Lenguas de diamante. 1919.

Tocada pelas mesmas forças conflitantes (dentre as quais avultam as novas idéias naturalistas-positivistas, com sua ênfase na materialidade), a uruguaia Juana de Ibarbourou foi uma das grandes vozes da poesia latino-americana da primeira metade do século XX. Quando ela surgiu, a literatura uruguaia vivia um momento de estagnação: o romantismo se esgotara e o decadentismo expirara. Nesse contexto decadente, a poesia dionísiaca de Juana explode como uma nova força da natureza e é, de imediato, acolhida como a voz inovadora que se fazia necessária.

Movida pelos ventos “mundonovistas” que começavam a soprar na América, Juana se entrega à sedução cósmica da natureza, ou melhor, da terra americana, e com ela se identifica.

Mi cuerpo está impregnado del aroma / de lo pastos

maduros. Mi cabello sombroso / Esparce, al destrenzarlo,

olor a sol y a heno. […] Cierva y can, astro y flor /

Agua viva que glisa a tus pies. / Fluí / para ti. Bêbeme.

El cristal / Envidia lo claro de mi manantial.

Em seu universo predomina a sensual euforia de ser a mulher amada, -refúgio, emoção, âncora-, tal qual a terra-mãe. Mas, como sombra que pesa sobre essa mulher luminosa, aflora em sua poesia o pessimismo bíblico: “Lembra-te, ó homem, de que és pó e ao pó hás de voltar.” Daí ela dizer ao amado: “No codicies mi boca. Mi boca es de ceniza. […] No me oprimas las manos. Son de polvo. Y al estrecharlas tocas comida de gusanos.”

Fusão eu-natureza, sentimento de plenitude cósmica ensombrada pela idéia da morte… são alguns dos motivos maiores da poesia de Juana de Ibarbourou, que ficaram na memória latino-americana, como alta expressão da busca de um novo senttido para a vida humana…

FLORBELA ESPANCA (Portugal, 1894-1930) -  Livro de mágoas. 1919.

Poeta de desmesurada sensiblidade e sensualidade narcisista, Florbela Espanca está entre aquelas (e aqueles) que não chegaram a ter em vida o reconhecimento público de seu valor. Por acaso, posta aqui em seguida a Juana de Ibarbourou, a poesia de Florbela chama a atenção para inúmeros pontos de contato com a da uruguaia. A começar pelo ano de estréia (1919) e também pela mesma atração pela natureza e o mesmo impulso narcísico que as singulariza. Entretanto, enquanto em Juana vai predominar a plenitude solar, em Florbela predomina o sentimento finissecular da dor, do sofrimento e da frustração existencial. Em seu livro de estréia, já se expressa a visão-de-mundo que a alimentava:

Este livro é de mágoas. Desgraçados / Que no mundo passais,

chorai ao lê-lo! / Somente a vossa dor de Torturados / Pode

talvez senti-lo e… compreendê-lo.

Nos rastros do narcisismo magoado de Antônio Nobre e do decadentismo crepuscular, a criação poética florbeliana vai transformando a mágoa, a dor, o sofrimento de viver, numa verdadeira liturgia da paixão, na qual o eu é o centro, que se quer ponto de convergência do mundo, mas continuamente frustrado, em seu desejo ou necessidade.

Sonho que sou a Poetisa eleita, / Aquela que diz tudo e tudo

sabe, […] Sonho que sou Alguém cá neste mundo… / Aquela

de saber vasto e profundo, / Aos pés de quem a terra anda

curvada! […] Eu sou a que no mundo anda perdida / Eu

sou a que na vida não tem norte […] Sou aquela que passa

e ninguém vê […] Sou talvez a visão que Alguém sonhou,/

Alguém que veiu ao mundo p’ra me ver / E que nunca na vida

me encontrou.

“Narcisismo, donjuanismo, hermafroditismo” (José Régio) são os rótulos que têm definido a poética de Florbela. Na verdade, nela podemos ver a mais clara expressão da “mulher fatal”: a que se ama no amor que o amante tem por ela, -a do eu que seduz o outro, para neste encontrar a sua própria imagem sendo amada. A poesia de Florbela expressa, em essência, a paixão que ela nutria por si mesma e a dor de não ser reconhecida em sua grandeza. E a tal ponto foi essa paixão que, vendo frustrados os caminhos de realização dessa ânsia, desiste de viver e se suicida. Sua poesia é daquelas em que a psique do poeta é a própria matéria poética.

Conclusão

Este breve percurso pela poesia das primeiras transgressoras do cânone-base da sociedade tradicional pretendeu chamar a atenção para a natureza existencial dessa transgressão. E, por decorrência, levar a descobrir que a revolução sexual, hoje em curso no mundo, tem raízes bem mais profundas do que pode parecer, quando vista apenas pela ótica espetacular dos multimídias. Há uma “mística do corpo” que é preciso redescobrir, e que vai além da performance.

O “Interdito ao sexo” decretado pela Igreja, desde a Idade Média, e que regulamentou durante séculos as relações homem-mulher, acabou por criar uma nova ordem político-econômico-social que tinha na “família” um dos seus motores ou sustentáculos principais. Claro está que a civilização progressista e brilhante que, ao longo do séculos, se construiu sobre esse “sustentáculo”, ao entrar no século XX já começara a se deteriorar, pois o “homem”, que ela havia engendrado, deu tão certo que já não cabia (e não cabe) nos seus naturais limites. Daí o caos. Um novo homem e uma nova cultura entram em gestação.

A liberação das forças eróticas –poderosa força criadora- provoca a revolução sexual, hoje em processo. E assim como a grande poesia amorosa de um Dante, um Petrarca, um Camões… no passado difundiu o interdito ao sexo, ou melhor, o ideal da Amada pura e inacessível e o Amor como valor existencial absoluto (o único que levaria à plena realização do ser), também a poesia do nosso tempo, em suas mil diferentes faces, ajudará a compor amanhã o mosaico de vivências (eróticas ou não), fruídas hoje, e que um dia revelarão a nova ordem que se imporá ás relações homem-mulher, no sentido não só de alcançarem a plenitude existencial, mas também darem continuidade a uma humanidade feliz… Uma felicidade fecunda e duradoura que a sexofilia atual, descartável, não está dando…