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 Três Contos 

 

Heleni Gimenes

 

Um pai. Uma mãe. Um Filho... Uma escada

 

Cidade pequena do interior. O casal entra apavorado na urgência do pronto-socorro. Marquinhos, o filho, machucado chora assustado. São atendidos imediatamente. Agradecem a Deus pelo pouco movimento. A mãe nervosa acarinha o filho para confortá-lo. O pai, tentando se controlar, explica. Mudaram-se recentemente e o filho, não acostumado com a casa, acabou caindo da escada.

Radiografia tirada. Relaxam. Algumas escoriações. Apenas um susto.

Quinze dias depois, o casal volta ao pronto-socorro. O rosto de Marquinhos sangra.  A empregada, mesmo tendo recebido ordens para não encerar a escada, o fez. Marquinhos de pijama e meia de lã escorrega pela escada.

Dessa vez foi um pouco pior. Ferimentos no rosto, nos braços e nas costas.

Pai e mãe, agoniados, retornam ao hospital em menos de uma semana. Marquinhos e o primo brincam no topo da escada. Um movimento brusco. Marquinhos cai.

A mãe chora. Precisa benzer a escada. O pai tentando aparentar tranqüilidade. Está resolvido a mudar de casa. Marquinhos desacordado. Em seu corpo as marcas do acidente. Passam a noite no pronto-socorro.

Os enfermeiros já afeiçoados por aquele menino de 5 anos, de fala pouca e olhar assustado.

Dez dias depois. O telefone da emergência toca. Do outro lado a mãe de Marquinhos chora. Ele descia as escadas com um vaso na mão. Caiu. Estava inerte no chão. O medo era movimentá-lo e piorar o quadro.

A ambulância percorre sirenando as ruas da cidade. Chegam na casa. Os enfermeiros encontram Marquinhos desacordado no chão. Cacos de cerâmica espalhados em volta de sua cabeça.

Atônitos, descobrem. Na casa não há escadas.


E a vida levou...

 

-“Minha filha vai ser doutora.”

Vivianli levantou do sofá tropeçando no tapete.

-Cacete, preciso tirar essa merda do chão, só me atrapalha.

Olhou pra baixo com o intuito de chutar pra longe aquela porcaria, quando percebeu que o tapete não estava lá. Ainda tropeçando em tapetes imaginários foi se equilibrando, se segurando nos poucos móveis que restavam.

Não sabia quanto tempo havia dormido, na verdade não sabia se hoje já era amanhã, ou se hoje ainda era ontem.

- Também que diferença faz? Nada pra fazer ontem, nada pra fazer amanhã.

- “Minha filha vai ser doutora.”

De uns tempos pra cá a voz do pai não saia do seu pensamento:

- “Vai ser doutora, vocês ainda vão ouvir falar muito da minha Vivianli.”

Vivianli, nome ridículo. Só conheceu duas pessoas com esse nome: ela mesma e a tal atriz.

Tentou se aprumar se segurando no mesmo sorriso cínico de sempre.

- Doutora em porra nenhuma.

Podia ser que há alguns anos atras ela tenha se orgulhado de sua capacidade em distinguir com perfeição um bom uísque, mas hoje, álcool, uísque e pinga descem sem distinção. Ela só quer ficar anestesiada, não importa como.

Expert em sexo? Talvez um dia tenha conseguido enlouquecer muitos homens na cama com seu jeito exótico de transar. Todos pagavam muito pra desfrutar os prazeres do seu corpo. Hoje, dependendo do seu estado, não consegue sentir se tem algum homem em cima dela ou não.

Foi se arrastando, queria chegar até o banheiro.

- Que diferença faz mijar aqui ou lá?

- “Minha filha vai ser doutora.”

Começou a bater na cabeça pra ver se conseguia tirar o pai lá de dentro. Levantou os olhos e viu que uma mulher velha, com os cabelos por tingir e olhar assustado a olhava.

- Cacete, nem depois de morta essa mulher me dá sossego. É meu pai me torrando o saco na cabeça, e agora vem a filha da puta da minha mãe pra me assombrar.

Gritando, pedindo para que eles a deixassem em paz, jogou o copo que estava segurando em cima da mãe.

Não percebeu que o copo se espatifou num espelho.

- “Minha filha vai ser doutora, minha filha vai ser doutora.”

Com que idade ela estava agora? Não conseguia se lembrar. A única certeza é que estava envelhecendo, sozinha,  morando numa quitinete na Av.  S. João e vivendo com o que alguns homens deixavam de favor em cima da cama.

Percebeu que não ia conseguir chegar até ao banheiro. Sentou no meio da sala, e misturou seu xixi com pedaços de vidro, copos vazios e um caderno que estava aberto. Antes que ele se encharcasse, conseguiu salvá-lo.

Quando percebeu o que era, fez menção de atirá-lo longe, mas se conteve. Uma letra ainda infantil havia escrito há séculos atras naquele caderno que queria ser doutora, namorar, riqueza não era importante, queria viver um grande amor.

Começou a despedaçar cada folha daquele maldito diário. Porque teve que achar essa merda? Não bastava o pai passar o tempo todo cobrando? Porque essa menina tem que vir do passado cheia de fantasias idiotas e imbecis pra infernizar mais sua vida?

Foi se encolhendo no chão, chorando até o torpor tomar conta dela novamente. Apagou.

Quando acordou, o cheiro de urina tomava conta de todo o seu corpo. Olhou em volta: cadeira caída, espelho quebrado, sua vida desmoronada.

- “Minha filha vai ser doutora.”

Não tentou se livrar do pensamento. Era raro se sentir assim como estava agora: sóbria.

Sabia que esse estado não iria durar por muito tempo.

Foi ao banheiro, tomou banho, se perfumou. A maquiagem feita sem exagero. Os cabelos presos. O único vestido discreto foi colocado vagarosamente. Queria curtir cada segundo, não era necessário pressa. Colocaria ou não os sapatos? Optou por colocá-los.

-“Minha filha vai ser doutora.”

Tinha a certeza que pelo menos uma coisa iria fazer com maestria.

- “Minha filha vai ser doutora.”

Puxou um banquinho até à janela, tirou os sapatos e cuidadosamente os colocou perto da parede.

Não caiu sozinha, seu pai a acompanhou na queda dizendo:

- “Minha filha vai ser doutora.”

 

 

Assim disse o mestre

 

Vivia naquela cidade um grande sábio. Sua morada era no alto de uma montanha. Poucos chegavam até lá, pois o caminho era difícil, cheio de obstáculos e perigos. Mas não são assim as estradas que levam à plenitude? E os que se aventuravam nessa subida não se arrependiam.

Não se tinha notícia de que ele havia negado qualquer tipo de alimento às pessoas que dele se aproximavam, sempre tinha uma resposta para as dúvidas e angústias dos que lá chegavam.

Muitas lendas e histórias envolviam aquela figura, não se sabia ao certo desde quando ele estava no topo daquela montanha, mas pela sua sabedoria alguns acreditavam que ele sempre lá esteve. E era essa a impressão das pessoas  quando o conheciam: estavam diante de um espírito que sempre existiu, não teve começo e não terá fim.

Sempre sentado numa pedra, olhando pacientemente para o infinito. Sabia ser o senhor do tempo.

Vivia com o que a natureza lhe oferecia, frutas e peixes se intercalavam com longos períodos de jejum: “O jejum”, dizia ele, “é o alimento da alma e do espírito.”

Era direto e claro nas suas respostas: “Por que esconder em tolas parábolas a beleza de uma verdade simples e cristalina?”

Naquele dia, um jovem conseguiu chegar ao topo da “montanha mágica” e a visão que teve foi indescritível. Lá estava o mestre envolto numa aura de paz e tranqüilidade.

Com receio, foi se aproximando devagar. O mestre, sem tirar os olhos do infinito, disse:

- Não tenha receio, filho, se aproxime. Mitos não existem, eu sou de carne e osso.

O silêncio só era quebrado com o barulho do rio e por alguns pássaros:

- Mestre, eu tenho uma dúvida que me atormenta. Existe a verdade absoluta?

O grande sábio, com a resignação própria dos que se sabem humanos, respondeu:

- Não, filho, nenhuma verdade é absoluta.

Disse isso e retornou ao seu silêncio sagrado. O discípulo se levantou e estava se retirando quando ouviu o mestre dizer:

- Filho, não vás, pela primeira vez eu me enganei. Você é casado? Vive com uma companheira?

- Sim, mestre, sou casado.

- Então você sabe qual é a única verdade absoluta que existe.

- Mestre, então a verdade absoluta está no amor?

- Não, meu filho, a verdade absoluta está na mulher que, ao abrir as portas de seu armário, percorre tristemente com o olhar o seu conteúdo, e, tentando não gritar de raiva ou desespero, diz solene e tristemente: “Não tenho o que vestir”.