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Textos de Luiz Paulo Santana

 

 

 

Foi o cas que...

O Seôr me adescurpe o atrivimento, ma ieu num querditava nessas coisa não! É que uns furmigamento me deu certa casião e dantão eu num sei até hoje o que fazê, seu moço. Mas o meu cumpadi Vardivino sabe, inda qui até hoje num sei pra que banda ele anda, e já tem é tempo.

Nóis morava numa cafuazinha mar cuidada, pobreza só, mas era filiz. Nóis tudo tinha é muitcho medo. Ôta lugazinho assombrado, sô. Cada um que esticava a canela vortava prali adispois de morto e enterrado, assuntano as conversa. Tinha vez que ieu deitava no catre e nem rôpa tirava pra num senti a mão gelad’argum finado que aparicia, mode requentá no fugão. Foi anssim com Nhá Zefa, com Nhô Tiburso, com meu subrim Osvaidio e muitcho adispois cumigo memo. Nóis vivia borrano nas carça com as aprontação das arma dessa gente e nunca acustumava não seôr.

E tinha o mato do Jeremia no camin que a gente passava mode pudê chegá na cafua do Vardivino.  Ês contava, ieu num querditava um nadinha de nada. Ês contava coisa de um finado que ficava escorado na poiteira lá dos fundo do cafundó, adispois da meia-noite. E tombém de um machad que batia e ribatia nas noite de lua cheia. Credo, sô moço, ieu duvidava. Os assombração aqui da cafua nois via, fazê o que, que ês até drumia no catre junt cá gente, mas coessas histora acolá, quar!

Pois bão.

Um dia percisei memo falá com Vardivino, mode dessas coisa que me dava, uns furmigamento, umas inchação, ancê me adescurpe, que el sabia de simpatia braba, uns escardado que amisturava umas erva e inté terra de campo santo, sim sinhore, tinha. Ieu carecia indesde muitcho tempo, nem se alembro mais,  uai, de menin já sentia uns ameaço.

É que ficô pió foi um dia, que dia que nada, num foi dia, foi noit de lua cheia aí pela vorta do úrtimo natar, ieu me vinha lá dos arto do Tafica, e quando merguiei no breu do buraco do Taquarale, as água lampejano faísca de lua, começô os furmigamento.

Trevessei o coigo e capei o gato ali pra riba e coça aqui coça acolá e dei de inchá, de inchá, ma num sabia, num tinha tento que que aconticia, ma sentia que fiquei foi grande, as ropa nem sirvino diretcho, tudo apertada, butão sartano qui nem baga de fejão na vage sêca.

Num tardô ieu já esbarrava no cafundó, nem se alembrava da tar portera nem do fio duma égua que batia machad, adiscurpe, seu moço, é que só de alembrá ieu infezo, pruquê érinfezado quieu passei naquel camim, e óia, divia de tá era muitcho feio, muitcho escumungado, que bem num cheguei na poitera o tar finado, que tava lá memo, num sei quem era, cara num vi, deu foi um grito que parecia vê o demo e oiava pra mim, e se sumiu de carririnha pru matabaxo, o do machado laigô foi tudo, e foi pantasma pra tudo qué lado.

A cachorrada freveu em cima daquele monstrengo quiera ieu memo e ês assustado i ieu tombém, num sá? só carrera isquisita pro meio do matagar até subi doto lad do Cafundó, aí aliviô um mucado.

No qui sumiro as cachorrada eu resorvi a mijá, que tavá que táva. Foi intonce, sim siô, quieu sustei muitcho. Quando oiei minha pingola, siô, tava iguar um vergaião de boi. Foi aí quieu vi que ieu tava era grande qui nem um.

Bão,

O jeitcho era memo prucurá o Vardivino mode el me curá. Ma quand arcancei a cafua dêl tinha vortado meu jeitcho antigo, minhas mão, meus pé, até minha pingola consertô. Vardivino num querditô um nadinha na minha porza. “Cê tá é porzeano, Zequié, muleceu o miôl?”

Entonce fizemumtrato. Nóis ia passá a noitche de lua cheia acoidado, sêo moço, mode eu porvá prele que ieu num tava com histora não sinhori. Foi Vardivino que pidiu quieu escoiesse o lugá. Pos foi aqui, na bera dessa cafua, si siô. Ficamo os doi jururu esperano nascê a lua, lua cheia, e porzano mode passá o temp.

Num tardô a bichona pontô no arto da serra vermeia quinem quejo prato e Vardivino já tinha era isquicid’o trato qui fez cumig mode prová el que ieu ficava era grande qui nem boi, i tumava mais um gole da branquinha que el tinha trazid. Nóis inté distraimu com a porza e fiquemo sapequero que só veno, aquel luão crariano o terrero que ieu oiava a cafua e via ela arriba do chão.

Quando Vardivino calô a matraca foi quieu apercebi umas cocerinha no cangote e os furmigamento cumeçô. El ficou oiano pra mim e dispois disparô foi caçoá qui ieu tava cum jeito qui mais paricia um poico e ieu, debaxo daquele formiguero arresorvi tomá tento na pingola e ela táva era cresceno. Ieu falei prele “cumpad Vardivino, tá chegano” e el de muitcho mangá foi ficano séro séro e pela mancha do coipo que a lua escrivia no chão ieu vi o tamanho do bicho qui el divia tá veno cuns zóio arregalad que paricia qui ia sartá no chão.

Entonse el bateu foi quexo gaguejano qui nem gago e correu um mar chero dos inferno quieu achei quera o demôno chegano, mar era o cumpad encheno as carça, mas óia, tava era fedeno, qui memo ieu cum aquel narigão qui só vaca quas vumitei.

Poi bão. Cumpad Vardivino levantou dum sarto rasgô a coivara e num dexô maica, travessô o rio e quebrô cerrado pras banda de lá qui inté hoje num sei ondé quelanda. I óia, tô percisado del pruquê, se ancê num sabe, hoje é notche de lua cheia. Me adiscurpe seu moço, ma é muitcho cedo e a prosa tá é boa. Ieu sei qui o seôr querdita nimim. Si num querdita, num tem ofensa, nóis faiz um trato. 

Lendas

Chico Buarque, em conversa com Tom, exprimiu bem a minha insaciável vontade de, vez por outra, reencontrar os amigos diletos. Disse o Chico que gostava de conversar com o Tom, para ouvir dele, no seu modo especialíssimo de narrar, “novas versões de velhos acontecimentos”.

Eis aí o motivo pelo qual delicio-me com os reencontros. De fato, surgem sempre novas versões dos melhores acontecimentos vividos ao longo do tempo, principalmente do tempo em que convivíamos estreitamente.

As novas versões não deixam nada a desejar. Costumam vir com outras cores, novos ângulos de visão, e não raro, alguma coisa nova, isto é, velha, porém não relembrada na versão ou versões anteriores. Às vezes vêm mesmo com adendos efetivamente novos, encaminhando ou reforçando a destinação dos fatos no rumo da lenda.

Parece coisa que relembrar os acontecimentos sob uma nova ótica, sob velhas luas cheias, sob antigos lábaros estrelados, mas novos, novos, porque de novo estão acontecendo sobre as nossas cabeças estas luas e estes lábaros estrelados, velhíssimos, parece coisa que estas relembranças acabam por tornar-se algo literárias, históricas, lendárias, que mais vivamente tocam as nossas almas que a realidade do tempo em que foram vividas.

Até porque, a mim me parece, não se tem plena consciência da beleza e da significação da vivência no momento em que se desfruta. Vive-se o momento com a naturalidade paquidérmica do boi no pasto. Acho que exagerei. Saboreia-se, sim, o momento vivido. Mas com outras cores.

Acontece que ao recontar histórias costuma-se juntar outros ingredientes, como o constatar-se que o nosso filho experienciou algo que nós também, com aquela idade, experimentamos, às vezes em circunstâncias diferentes, e é aí que a lenda vem enriquecer o encontro.

É como um lance paleontológico. Achar um pedaço de osso da perna de algum animal extinto leva o descobridor a imaginar mil e uma situações. Daqui a milhares de anos, um pé de galinha poderá levar alguns fanáticos destas escavações ao delírio. Para nós, quá, a galinha inteira pouco representa em termos de imaginação. Ela está ali, diante de nossos olhos, em carne, ossos e penas.

E nós, que temos mais que um mero esqueleto, que temos a imagem inteira de nossos melhores momentos, poderemos criar quantas versões quisermos, infinitas versões sempre mais e mais coloridas e carregadas de novas nuanças, até que sejamos nós próprios não mais que a própria lenda, sim, até que sejamos nós não mais que uma bela e distante história na sua última, intangível, definitiva versão.

Chuvosofia

Chove chove chove
Chove sobre as ruas
chove sobre as praças
chove sobre os negros
brancos e mulatos
fortes e postiços
bastos e acabados
chove sobre os melros
sobre as costas amplas
sobre as casas castas
sobre as professoras
sobre as ruínas clássicas
sobre as lápides gastas
sobre as partituras
sobre eclesiastas
chove sobre túnicas
sobre as claves soltas
sobre as mortes súbitas
sobre as vacas magras
chove sobre as toucas
as mulheres pagas
as ferrugens soltas
as vestes ornadas
chove sobre os campos
sobre as grotas fartas
sobre os rios plácidos
sobre os vales pútridos
chove nas senzalas
sobre a casamata
sobre os edifícios
sobre os cemitérios
chove no oceno
sobre as ondas fartas
chove nos canteiros
chove nas aguadas
chove nos abutres
nas encruzilhadas
chove nas favelas
chove nas gravatas
sobre as minas de ouro
de cobre, de prata
chove sobre a torre
chove sobre a arcada
chove chove chove
choves fora nada.

 

Palavras e Coisas

Eu vou dizer o que penso
mesmo sabendo as palavras
outras e tantas coisas e sentidos,
mesmo sabendo as coisas e não coisas
mil palavras,
mesmo a palavra e a coisa sendo
dez mil outras forças que a poesia
manifesta e desenfreia,
mesmo entre tiros ricochetes
manchetes escandalosas
sonoplastia e imagens
que não são realidade
no instante em que as degluto na tv,
mesmo isto tudo é diferente da bala
e da palavra bala,
mesmo que refira à bala e ao corpo
e seu encontro inadvertido,
mesmo a bala perdida dentro do corpo encontrado,
o buraco da bala e o sangue do corpo,
as palavras não furam nem são furadas,
a palavra furada não contém furo,
mas, ainda assim, vou dizer,
entre saraivadas de palavras (e Imagens) na TV,
que Deus existe.
Não, não é um Deus
das balas e das palavras,
que o Deus das balas e das palavras somos nós,
seres humanos,
ainda que dos corpos e do sangue seja Deus,
aquele,
a que gostaria de me referir com todas as não palavras
que me fizessem sentir,
e resta-me fazê-lo com palavras como
bala, corpo, sangue, riso, deus, prazer, dor, porvir,
e digo que esse Deus é mesmo aquele que
sem palavras faz viver e morrer o corpo
que a bala não penetrou,
aquele Deus de quem nada sabemos
e de cuja intuição fazemos
nossos deuses filantropos e doentes
de palavras ameaçadoras e tiros
contundentes.
Abaixai as cabeças ante os tiros e ouvi:
de observar as coisas e os seres deste mundo
percebi um Deus maiúsculo
de cujas leis decorre o nosso ser,
em cujas leis escorre o nosso não ser,
não como coisas separadas
por rígidas palavras e definitivos tratados,
mas como coisas harmônicas e cambiantes
como palavras de poesia
em que as coisas e não coisas
se libertam da palavra.
Por favor, parem a guerra de palavras e
obuses, ouçam o tempo, o ritmo suave
do tempo e das coisas e não coisas ao redor.
Inútil prosseguir.
Inútil acumular, pois são palavras palavras palavras
sem sentido e movimento,
inútil aprisionar sentidos nas palavras
e dotá-las de pressa suicida,
manufaturas, obuses, lucro, miséria,
são palavras da pressa e da agonia,
dia, noite, árvore, rio, sol, homem, pedra, estrela
são palavras da calma e da harmonia,
e dir-me-ás, assustado entre paredes e a TV:
tanto faz como tanto fez é tudo inútil,
nada é eterno, tudo muda, estou morrendo,
e dir-te-ei, abre a janela, vê,
constata esse outro Deus de que te falo
sem saber, procura-o,
liberta as coisas e não coisas das palavras
que as prenderam na TV, nos códices,
nas bíblias, nos dicionários, e sobretudo,
liberta na mente essa palavra das coisas
e não coisas,
respira, é simples,
é tudo inútil, sim,
porque inútil é uma palavra que inventamos
tentando colocar o mundo em nossa órbita,
criamos uma rede de palavras e com elas
imaginamos fixar um mundo que se move,
vã inocência, (a)ventura humana.
E mesmo assim, direi,
que me parece fácil
libertar palavras, coisas e não coisas,
deixando-as flutuar a bel prazer,
buscar novas palavras que nos façam
entender o íntimo das coisas e não coisas
segundo essa harmonia onipresente,
não há o que temer porque parece-me
que a verdade está oculta
na transparência do dia,
porque nada podemos com as palavras
senão tentar, tentar, tentar,
sem pressa e sem fadiga,
tentar compreender.