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Antropologia, Ética e Educação no Catecismo Católico

 

Jean Lauand
jeanlaua@usp.br
Faculdade de Educação da USP

 

Introdução: uma "filosofia da educação" no Catecismo

A recente publicação do texto definitivo do novo Catecismo da Igreja Católica [1] brinda-nos a ocasião de reflexão sobre a "filosofia da educação" que nele se propõe. Naturalmente, quando falamos em "filosofia da educação" no CC, estamos pensando principalmente em certos princípios e teses - sobretudo de antropologia filosófica - e não em um tratamento filosófico sistemático e detalhado, que não é - e nem pretende ser - a proposta da Igreja, e menos em seu Catecismo.

Na verdade, a Igreja deixa em aberto também a opção por sistemas filosóficos (desde que não contradigam sua doutrina): dogmas, só os há para verdades de fé e não para filosofias. No entanto, as verdades de fé não são teoremas abstratos e desencarnados, harmonizam-se com as verdades naturais - quer provenham do conhecimento comum, da ciência ou da filosofia... - e, em certo sentido, delas dependem. Daí que o próprio CC afirme:

#354. Respeitar as leis inscritas na criação e as relações que derivam da natureza das coisas é princípio de sabedoria e fundamento da moral.

Assim, para a Igreja, a realidade sobrenatural da graça pressupõe a natural da criação; a doutrina e a vida cristãs partem da afirmação cabal da realidade do mundo, afinal, criado por Deus: qualquer erro em relação à criação é também um erro para a compreensão da mensagem cristã.

Seja como for, não só para a teologia, mas para a própria formulação da fé, a Igreja acaba tendo de valer-se de termos, por assim dizer, "técnicos" de filosofia, como, por exemplo, o aristotélico "forma":

# 365. A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a “forma” do corpo; ou seja; é graças à alma espiritual que o corpo constituído de matéria é um corpo humano e vivo; o espírito e a matéria no homem não são duas natureza unidas, mas a união deles forma uma única natureza.

Sem excluir contribuições de outras linhas de pensamento, a "base filosófica" do CC é tomada - em grande medida - do pensamento de Tomás de Aquino, como indicaremos a propósito dos fundamentos da moral e do conceito de participação (essencial para a compreensão da graça) [2] .

Os fundamentos da proposta moral do CC

Essa pressuposição da realidade natural é o clássico princípio de Tomás de Aquino: Cum enim ...gratia non tollat naturam, sed perficiat (a graça não suprime a natureza, aperfeiçoa-a - I,8,1 ad 2). Se nos voltamos, para a concepção de moral e para a filosofia da educação moral do CC, encontraremos que a Igreja não possui propriamente um conteúdo moral específico; ao afirmar a moral, afirma-a como realidade humana, proposta para todos os homens (e não somente para os católicos).

# 1954 (...) A lei natural exprime o sentido moral original, que permite ao homem discernir, pela razão, o que é o bem e o mal, a verdade e a mentira: "A lei natural se acha escrita e gravada na alma de todos e da um dos homens porque ela é a razão humana ordenando fazer o bem e proibindo pecar (...)

# 1955 (...) A lei natural enuncia os preceitos primeiros e essenciais que regem a vida moral (...). Está exposta, em seus principais preceitos, no Decálogo. Essa lei é denominada natural, não em referência à natureza dos seres irracionais, mas porque a razão que a promulga pertence como algo próprio à natureza humana(...).

# 1956 Presente no coração de cada homem e estabelecida pela razão, a lei natural é universal em seus preceitos, e sua autoridade se estende a todos os homens. Ela exprime a dignidade da pessoa e determina a base de seus direitos e de seus deveres fundamentais.

# 1872 O pecado é um ato contrário à razão. Fere a natureza do homem e ofende a solidariedade humana.

Nesses pontos, como dizíamos, já se vê a referência ao pensamento de Tomás de Aquino: naturalmente, aqui, "razão" e "natureza" são entendidos em seu significado clássico de ratio e natura, tal como aparecem em S. Tomás.

Ratio, razão, não é no CC (porque não é em Tomás) a razão do "racionalismo", nem sequer somente a faculdade racional humana. Dentre os múltiplos significados da palavra latina ratio (que acompanha alguns dos diversos sentidos do vocábulo grego logos), interessam-nos principalmente dois: um que aponta para algo intrínseco à realidade das coisas; e, outro, para um peculiar relacionamento da razão humana com a realidade. Ratio é derivado do verbo reor, contar, calcular. Ratio originalmente é conta; rationem reddere é prestar contas. Mas ratio significa também: razão, faculdade de calcular e de raciocinar; juízo, causa, porquê; título, caráter etc. Em filosofia, aparece como tradução de logos que, como ensina Pierre Chantraine [3] , entre muitos outros significados: "acabou por designar a razão imanente", isto é: a estruturação interna de um ente, e este é o primeiro significado que nos interessa neste estudo; o segundo é a capacidade intelectual humana de abrir-se à ratio das coisas e captá-la [4] .

No âmbito da fé, não é por acaso, portanto, que S. João emprega, em seu Evangelho, o vocábulo grego Logos (razão, palavra) para designar a segunda Pessoa da Ssma. Trindade que "se fez carne" em Jesus Cristo: o Logos não só é imagem do Pai, mas também princípio da Criação (cfr. Ap 3, 14), o responsável pela articulação intelectual das coisas. Pois a Criação deve ser entendida também como essa "estruturação por dentro": projeto, design das formas da realidade, feito por Deus através do Verbo, Logos. E em seu Comentário ao Evangelho de João, Tomás chega a discutir a questão da conveniência de traduzir Logos por Ratio em vez de Verbum. Esta última forma parece-lhe melhor, pois se ambas indicam pensamento, Verbum enfatiza a "materialização" do pensamento (em criação/palavra).

Assim, para Tomás, a criação é também "fala" de Deus: as coisas criadas são pensadas e "proferidas" por Deus: daí decorre a possibilidade de conhecimento do ente pela inteligência humana [5] .

É nesse sentido que a Revelação Cristã fala da "Criação pelo Verbo"; e a Teologia - na feliz formulação do teólogo alemão Romano Guardini - afirma o "caráter verbal" (Wortcharakter) de todas as coisas criadas. Ou, em sentença de S. Tomás: "Assim como a palavra audível manifesta a palavra interior [6] , assim também a criatura manifesta a concepção divina (...); as criaturas são como palavras que manifestam o Verbo de Deus" (I d. 27, 2.2 ad 3).

# 292 Insinuada no Antigo Testamento, revelada na Nova Aliança, a ação criadora do Filho e do Espírito, inseparavelmente una com o Pai, é claramente afirmada pela regra de fé da Igreja: “Só existe um Deus...: ele é o Pai, é Deus, é o Criador, é o Autor, é o Ordenador. Ele fez todas as coisas por si mesmo, isto é, pelo seu Verbo e Sabedoria”, “pelo Filho e pelo Espírito”, que são como que “suas mãos”. A criação é obra comum da Santíssima Trindade.

# 320 Deus, que criou o universo, o mantém na existência pelo seu Verbo, “este Filho que sustenta o universo com o poder de sua palavra”(Hb 1,3) e pelo seu Espírito Criador que dá a vida.

# 299 Já que Deus cria com sabedoria, a criação é ordenada: “Tu dispuseste tudo com medida, número e peso”(Sab 11,20). Feita no e por meio do Verbo eterno, “imagem do Deus invisível”(Cl 1, 15), a criação está destinada, dirigida ao homem, imagem de Deus, chamado a uma relação pessoal com Deus. Nossa inteligência, que participa da luz do Intelecto divino, pode entender o que Deus nos Diz por sua criação, sem dúvida não sem grande esforço e num espírito de humildade e de respeito diante do Criador e da sua obra. Originada da bondade divina, a criação participa desta bondade: “E Deus viu que isto era bom...muito bom”(Gn 1,4.10.12.18.21.31). Pois a criação é querida por Deus como um dom dirigido ao homem, como uma herança que lhe é destinada e confiada. Repetidas vezes a Igreja teve que defender a bondade da criação, inclusive do mundo material.

Essa concepção de Criação como fala de Deus, a Criação como ato inteligente de Deus, foi muito bem expressa numa aguda sentença de Sartre, que intenta negá-la: "Não há natureza humana porque não há Deus para concebê-la". De um modo positivo, poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma: só se pode falar em essência, em natureza, em "verdade das coisas", na medida em que há um projeto divino incorporado a elas, ou melhor, constituindo-as.

Assim, diz Tomás: "Qualquer criatura (...) por ter uma certa forma e espécie representa o Verbo, porque a obra procede da concepção de quem a projetou" (Quaelibet creatura... secundum quod) habet quamdam formam et speciem, repraesentat Verbum: secundum quod forma artificiati est ex conceptione artificis I, 45, 8)).

Próximo do conceito de razão está o de natura, natureza. Se ratio acentua o caráter de pensamento, estruturação racional do ser; natureza indica o ser enquanto princípio de operações (falar, pensar, amar, germinar, digerir, latir, etc.). Não por acaso natureza deriva de natus, do verbo nascer (nascor). Se agimos como homens é porque nascemos homens e não ratos. Natureza humana é, assim, o ser que o homem recebe de nascença. A "natureza", especialmente no caso da natureza humana, não é entendida por Tomás como algo rígido, como uma camisa de força metafísica, mas como um projeto vivo, um impulso ontológico inicial (ou melhor, "principial"), um "lançamento no ser", cujas diretrizes fundamentais são dadas precisamente pelo ato criador que, no entanto, tem de ser completado pelo agir livre e responsável do homem. Assim, todo o agir humano (o trabalho, a educação, o amor, etc.) constitui uma colaboração do homem com o agir divino, precisamente porque Deus - cuja ordem conta com as causas segundas - quis contar com essa cooperação.

# 302 A criação tem a sua bondade e a sua perfeição próprias, mas não saiu complemente acabada das mãos do Criador. Ela é criada “em estado de caminhada” (“in statu viae”) para uma perfeição última a ser ainda atingida, para a qual Deus a destinou.

Esse caminho moral é percorrido, exercendo a liberdade de praticar o bem e, assim realizando sua própria natureza. Mas, o bem remete à verdade: à ratio da realidade que a razão capta, propondo à vontade sua realização.

Todo ente tem, portanto, uma essência, uma natureza, um modo de ser pensado, planejado por Deus; está organizado ou estruturado segundo um "projeto" divino. O homem (e cada coisa criada) é o que é, possui uma natureza humana, precisamente por ter sido criativamente criado pelo Verbo. Daí que haja uma verdade e um bem objetivos para o homem, porque seu ser não é caótico ou aleatório, mas procede de um design divino.

Para estabelecermos uma comparação [7] , poderíamos dizer que assim como o manual de instruções de um complicado aparelho elétrico não é outra coisa que uma decorrência do design, do processo de criação e de fabricação daquela máquina, assim também a moral deve ser entendida não como um conjunto de imposições arbitrárias ou convencionais, mas pura e simplesmente como o reconhecimento da verdadeira natureza humana, tal como projetada por Deus. E da mesma forma que não ficamos revoltados contra o fabricante que nos indica: "Não ligarás em 220V", ou "Conservarás em lugar seco", mas lhe agradecemos essas informações, assim também devemos enxergar, digamos, os Dez Mandamentos não como imposições arbitrárias, mas como verdades elementares sobre o ser do homem.

É, pois, ao homem que se dirige a ética de Tomás (e a do CC); ao homem total, espírito em intrínseca união com a matéria; ao homem, ser-em-potência, que ainda não atingiu a estatura a que está chamado e para quem a moral se expressa na sentença -tantas vezes repetida por João Paulo II - do poeta pagão Píndaro: "Torna-te o que és!". Nesta perspectiva, toda norma moral deve ser entendida como um enunciado a respeito do ser do homem; e toda transgressão moral, o pecado, traz consigo uma agressão ao que o homem é. Os imperativos dos mandamentos ("Farás x...", "Não farás y...") são, no fundo, enunciados sobre a natureza humana: "O homem é um ser tal que sua felicidade, sua realização, requer x e é incompatível com y".

Algumas sentenças de Tomás, a título de exemplo:

A razão reproduz a natureza.

Ratio imitatur naturam (I,60,5).

A causa e a raiz do bem humano é a razão.

Causa et radix humani boni est ratio (I-II,66,1).

"Natureza" procede de nascer.

Natura a nascendo est dictum et sumptum (III,2,1).

O moral pressupõe o natural.

Naturalia praesupponuntur moralibus (Corr. Frat. I ad 5).

Daí que... haja criaturas espirituais, que retornam a Deus não só segundo a semelhança de sua natureza, mas também por suas operações. E isto, certamente, só pode se dar pelo ato do intelecto e da vontade, pois nem no próprio Deus há outra operação em relação a Si mesmo.

Oportuit... esse aliquas creaturas quae in Deum redirent non solum secundum naturae similitudinem, sed etiam per operationem. Quae quidem non potest esse nisi per actum intellectus et voluntatis: quia nec ipse Deus aliter erga seipsum operationem habet (CG 2,46).

Os princípios da razão são os mesmos que estruturam a natureza.

Principia... rationis sunt ea quae sunt secundum naturam (II-II,154,12).

O ser do homem propriamente consiste em ser de acordo com a razão. E assim, manter-se alguém em seu ser, é manter-se naquilo que condiz com a razão.

Homo proprie est id quod est secundum rationem. Et ideo ex hoc dicitur aliquis in seipso se tenere, quod tenet se in eo, quod convenit rationi (II-II,155, ad 1).

Aquilo que é segundo a ordem da razão quadra naturalmente ao homem.

Quod est secundum rationem ordinem est naturaliter conveniens homini (II-II,145,3).

A razão é a natureza do homem. Daí que tudo o que é contra a razão é contra a natureza do homem.

Ratio hominis est natura, unde quidquid est contra rationem, est contra hominis naturam (Mal. 14,2 ad 8).

Tudo que vá contra a razão é pecado.

Omne quod est contra rationem... vitiosum est (II-II,168,4).

Se não há uma "moral católica" (no sentido de normas morais que obrigariam os católicos, mas não os outros homens [8] ), se não há "moral católica" além da moral natural; sim, há, um modo católico de encarar a moral, mas sobre isto falaremos após examinarmos o conceito de participação.

O conceito de participação em Tomás

Dentre os inúmeros aspectos relacionados à "filosofia da educação" presente no CC (ou a ele subjacente), o mais oportuno é destacar aquele que - assim nos parece - é um conceito central em sua estruturação: o conceito de participação. Trata-se de um conceito filosófico que será decisivo para as formulações da teologia e da doutrina da fé.

De fato - como procuraremos mostrar - a proposta do CC depende da doutrina da participação nas quatro grandes partes em que se divide o CC: a doutrina da fé (parte I); a liturgia (parte II), a moral (parte III) e até a vida de oração (parte IV) [9] . Essa dependência é particularmente visível quando nos voltamos para aquilo que o CC apresenta de novo (sobretudo ao relacionar a vida de fé à vida quotidiana) e o que apresenta como especificamente cristão e católico.

Para bem compreender a doutrina da participação é necessário que nos voltemos para Tomás de Aquino, pois esse é um dos tantos pontos em que o CC se apóia no pensamento de Tomás, o pensador que formulou essa doutrina teológico-filosófica [10] .

Participação é um conceito central em S. Tomás [11] , para o qual vale a sugestiva observação de Weisheipl: "Tomás, como todo mundo, teve uma evolução intelectual e espiritual. O fato assombroso, porém, é que, desde muito jovem, Tomás apreendeu certos princípios filosóficos fundamentais que nunca abandonou" [12] .

Essa doutrina encontra-se no núcleo mais profundo do pensamento do Aquinate e é a base tanto de sua concepção do ser como - no plano estritamente teológico - da graça. Indicaremos resumidamente suas linhas principais.

Como sempre, voltemo-nos para a linguagem. Comecemos reparando no fato de que na linguagem comum, "participar" significa - e deriva de - "tomar parte" (partem capere). Ora, há diversos sentidos e modos desse "tomar parte" [13] . Um primeiro é o de "participar" de modo quantitativo, caso em que o todo "participado" é materialmente subdividido e deixa de existir: se quatro pessoas participam de uma pizza, ela se desfaz no momento em que cada um toma a sua parte.

Num segundo sentido, "participar" indica "ter em comum" algo imaterial, uma realidade que não se desfaz nem se altera quando participada; é assim que se "participa" a mudança de endereço "a amigos e clientes", ou ainda que se "dá parte à polícia".

O terceiro sentido, mais profundo e decisivo, é o que é expresso pela palavra grega metékhein, que indica um "ter com", um "co-ter", ou simplesmente um "ter" em oposição a "ser"; um "ter" pela dependência (participação) com outro que "é". Tomás, ao tratar da Criação, utiliza este conceito: a criatura tem o ser, por participar do ser de Deus, que é ser. E a graça nada mais é do que ter - por participação na filiação divina que é em Cristo - a vida divina que é na Santíssima Trindade.

Há - como indica Weisheipl [14] - três argumentos subjacentes à doutrina da participação: 1) Sempre que há algo comum a duas ou mais coisas, deve haver uma causa comum. 2) Sempre que algum atributo é compartilhado por muitas coisas segundo diferentes graus de participação, ele pertence propriamente àquela que o tem de modo mais perfeito. 3) Tudo que é compartilhado "procedente de outro" reduz-se causalmente àquele que é "per se".

No pensamento de Tomás, tanto o ato de ser da criatura como a graça são casos de participação. Na criação, Deus que é o ato puro de ser, dá, em participação o ser às criaturas, que têm o ato de ser [15] . Essa primazia do ser exclui todo "essencialismo" de Tomás, que é, no dizer de Maritain "o mais existencialista de todos os filósofos" [16] .

Nesse sentido, estão as metáforas de que Tomás se vale para explicar a participação. Ele compara o ato de ser (conferido em participação às criaturas pelo ato criador de Deus) ou a graça (a filiação divina que nos é conferida pela participação na Filiação de Cristo) à luz e ao fogo: um ferro em brasa tem calor porque participa do fogo, que "é calor" [17] ; um objeto iluminado "tem luz" por participar da luz que é na fonte luminosa [18] . Tendo em conta essa doutrina, já entendemos melhor a sentença de Guimarães Rosa: "O sol não é os raios dele, é o fogo da bola" [19] .

A graça como participação no CC

Analisemos, agora, o tema que é de decisiva importância para a educação cristã: a diferença essencial do cristianismo: a graça. É precisamente pela sua peculiar concepção da graça que o catolicismo (junto com algumas outras igrejas cristãs) não é uma doutrina religiosa a mais, nem consiste em uma série de preceitos (mais ou menos comuns a outras religiões como o Islam ou o judaísmo...). Há esta diferença essencial: Trata-se no catolicismo de uma vida nova, participação na própria vida íntima de Deus: a vida da graça que principia no sacramento do Batismo. O alcance e o significado da vocação cristã estão ligados a uma compreensão do alcance e do significado do Batismo.

Ao começarmos a tratar deste tema é muito conveniente "desacostumarmo-nos", recordar (ou, talvez, considerar pela primeira vez...) esta espantosa realidade, que é a própria essência do cristianismo: a graça, a vida sobrenatural. Tudo começa quando o Filho de Deus ao se fazer homem e habitar entre nós, misteriosamente comunica-nos sua divindade pelo Batismo de tal modo que somos - e essa formulação é importante - participantes da vida divina de Cristo: como diz o texto essencial de Hbr 3,14. Esta doutrina evangélica é explicada detalhadamente pelo apóstolo Paulo. Aliás, desde o primeiro momento de sua conversão, quando Cristo lhe aparece já lhe propõe a inquietante e infinitamente sugestiva questão: "Saulo, Saulo, por que ME persegues?". E quando Saulo pergunta: "Quem és tu, Senhor?", ouve a resposta: "Eu sou Jesus, a quem tu persegues". E aí precisamente começa a revolucionária revelação: para Saulo, Cristo estava morto e ele perseguia cristãos... e de repente descobre que Cristo é Deus, que Ele ressuscitou e está vivo, não só à direita de Deus Pai, mas de algum modo, em Pedro, João, André, Estevão..., nos cristãos, como dirá o próprio Paulo no essencial Gal 2,20: "Já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim". Nesse sentido o CC afirma que, pelo Batismo, estamos conectados, como que "plugados" em Cristo. Ou para usar a palavra chave (de Hbr 3, 14): participação.

# 1265 O batismo não só purifica de todos os pecados, mas faz também do batizando "um nova criação" (II Cor. 5, 17), um filho adotivo de Deus tornando-o "participante da natureza divina" (II Pe. 1, 4), membro de Cristo (I Cor. 6, 15; 15,27) e co-herdeiro com Ele (Rom 8,17), templo do Espírito Santo (I Cor. 6, 19).

# 1277- O batismo constitui o nascimento para a vida nova em Cristo.

A graça nos dá uma união íntima com Cristo: pelo Batismo somos como que enxertados em Cristo (Rom 6,4 e ll, 23) e principia em nós a in-habitação da Trindade, que se chama vida sobrenatural. Essa nova vida não é que elimina a vida natural, nem a ela está justaposta; pelo contrário, empapa-a, informa-a, estrutura-a por dentro. A espiritualidade cristã - esta é a grande novidade consagrada pelo Vaticano II - dirige-se a que descubramos e cultivemos essa vida interior, também e principalmente em nossa vida quotidiana. Pois, pelo Batismo, Cristo habita em nós e a vida cristã - alimentada pelos demais sacramentos - nada mais é do que a busca da plenitude desse processo - realizado pelo Espírito Santo - de identificação com Cristo, que principia no Batismo e tende no limite àquele: "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim" (Gal 2,20) de S. Paulo.

# 2813  Pela água do Batismo ... durante toda nossa vida nosso Pai "nos chama à santificação"

Cristo vive em seus "terminais": cada cristão não é só nem principalmente alguém que segue um código, é alguém que recebeu e tem a própria vida de Cristo. Cada cristão está chamado a ser outro Cristo. Uma das formas de Cristo perpetuar sua presença no mundo - em todos os lugares do mundo, em todas as épocas - é estando presente nos cristãos. Esta presença principia pelo Batismo... E isto é o que se chama graça: a participação da vida divina em nós. Isto é precisamente o que outras religiões não aceitam: que nossa vida passa a ser (em participação) a própria vida íntima divina.

# 108 (...) Todavia a fé cristã não é uma "Religião de Livro". O cristianismo é a religião da "Palavra", não de um verbo escrito e mudo, mas do Verbo encarnado e vivo"(S. Bernardo).

O conceito fundamental é, portanto, o de graça: uma palavra "técnica" que toca as profundidades da teologia. Graça, no sentido religioso, não por acaso é a mesma palavra que se usa em expressões como "de graça", "gratuito" etc.: a graça é o dom por excelência. Para entendermos isto, detenhamo-nos um pouco numa comparação entre a criação (onde Deus nos dá em participação o ser) e a graça (onde Deus nos dá em participação sua própria vida íntima). Graça e criação: ambos são dom, favor e amor gratuito de Deus; mas a criação é, como diz S. Tomás, o amor comunnis (o amor geral) de Deus às coisas: o amor com que Deus ama as plantas, a formiga, a estrela; entes que são por um ato de Amor e de Volição divina. Mas, além desse "amor comum", há ainda (formulação também de Tomás) um amor specialis, pelo qual Deus eleva o homem a uma vida acima das condições de sua natureza (vida sobre-natural) e o introduz numa nova dimensão do viver.

A graça, que recebemos no Batismo, é uma realidade nova, uma vida nova, uma luz nova, uma qualidade nova que capacita nossa alma a acolher dignamente, para nela habitarem, as três pessoas divinas. Este amor absoluto (S. Tomás) é uma participação na vida íntima de Deus; a alma passa assim a ter uma vida nova: nela habita (ou para usar o termo teológico: inhabita - inhabitatio, habitação imediata, sem intermediários) a Trindade. Assim, quando se trata de definir a graça, Tomás vale-se das mesmas comparações de participação no ser. Não se trata de um panteísmo porque é participação (Hbr 3, 14; 2Pe 1, 4): ter por oposição a ser.  Cristo é o Filho de Deus; nós temos a filiação divina. A Filiação do Verbo (que traz consigo toda a vida íntima da Trindade) nos é dada em participação por Cristo, pelo Batismo.

Daí que ser católico não se restrinja a cerimônias, a práticas ou a cumprir regras de conduta; mas sim a alimentar um processo de identificação com Cristo, por assim dizer, 24 horas por dia. Assim, quando o Catecismo da Igreja Católica declara o Batismo o sacramento da iniciação cristã por excelência está afirmando algo de muito distinto do que um mero "entrar no clube" ou "tirar a carteirinha" de cristão...

# 1212 Pelos sacramentos da iniciação cristã... são colocados os fundamentos de toda vida cristã. A participação na natureza divina...

Precisamente esta novidade: a graça conferida pelo Batismo (que - frisa o Catecismo - alcança a totalidade da vida quotidiana) é a diferença específica entre o cristianismo e as outras religiões: essa espantosa realidade, a própria essência do cristianismo: a graça, a vida sobrenatural, a participação na vida divina. Certamente, a doutrina da graça não é nova, desde sempre tem sido ensinada pela Igreja. Que há, então, de novo? Novo é a ampliação, a extensão e o aprofundamento que o novo Catecismo dá a ela:

# 533 A vida oculta de Nazaré permite a todo homem estar unido a Jesus nos caminhos mais quotidianos da vida...

Nova é a afirmação de que essa identificação com Cristo dá-se - para a imensa maioria dos cristãos - na e a partir da imitação da vida oculta de Cristo (a vida oculta de Cristo, que nem sequer era mencionada no Catecismo anterior - de Trento - e agora ocupa o destaque de todo um capítulo no novo Catecismo). Porque Cristo, princípio da Criação (Jo 1) e autor da Redenção, assumiu toda a realidade humana e toda a realidade do mundo. E assim como misteriosamente no pecado de Adão - Paulo desenvolve isto no Cap. 15 da I Cor - houve para todos um decaimento; em Cristo, novo Adão, há um re-erguimento (Ele, pontífice - construtor de pontes - advogado, primogênito, primícias, "nossa paz" - nosso integrador, etc.). E - tanto em Adão como em Cristo - é afetada toda a criação: Ele é a cabeça do Corpo que é a Igreja. Ele é o Primogênito, o princípio em tudo. E por meio dele Deus reconciliou - e está a reconciliar - consigo todas as criaturas. É o Cristo de Nazaré, em seus 30 anos de vida oculta, anos em que não fez nenhum milagre e viveu uma vida (também ela divina e redentora) com toda a aparência de absolutamente normal: vida de família normal no lar de Nazaré, de trabalho normal na oficina de José, de relacionamento social normal, vida religiosa normal etc.

# 531 Durante a maior parte de sua vida, Jesus compartilhou a condição da imensa maioria dos homens: uma vida quotidiana sem grandeza aparente, vida de trabalho manual, vida religiosa judaica submetida à Lei de Deus, vida na comunidade...

# 564 ...Durante longos anos de trabalho em Nazaré, Jesus nos dá o exemplo de santidade na vida quotidiana da família e do trabalho...

Cristo vivo nos cristãos, nos batizados. Cristo vivo no seo João da esquina e na D. Maria... Cristo que quer levar sua obra redentora à vida de família, ao mundo do trabalho, às grandes questões sociais etc... Isto não estava dito pelo Antigo Catecismo Romano (do concílio de Trento). Nele, após afirmar nossa conexão em Cristo pelo Batismo, o que se dizia era que, pelo Batismo, o cristão torna-se apto a todos os ofícios da piedade cristã (e é certo que o Batismo é a porta para a recepção de outros sacramentos etc.), mas não se falava em identificação com Cristo na vida quotidiana):

Antigo Cat. Rom II, II, 52  Pelo Batismo também somos como membros incorporados, conectados a Cristo cabeça ... o que nos torna aptos a todos os ofícios da piedade cristã. Per Baptismum etiam Christo capiti tamquam membra copulamur et connectimur ... quae nos ad omnia christianae pietatis officia habiles reddit.

A Igreja, hoje, convoca cada cristão, o homem da rua, o profissional, o João da esquina e a D. Maria, cada um de nós a ter uma vida espiritual plena, não apesar de, mas precisamente por estar no meio do mundo, no dia de trabalho, na vida de família, de relacionamento social etc. É pelo Batismo que cada cristão está chamado - é uma vocação - a reproduzir na sua vida a vida de Cristo (Gal. 2, 20)... A Criação e a Redenção são projetos que se estendem aos cristos que são os cristãos. A partir do momento em que ocorre a Encarnação, o mundo - o mundo do trabalho, a vida quotidiana, a vida de família, a vida política, econômica e social etc. - torna-se algo do maior interesse religioso (cfr. p. ex. os capítulos 8 de Romanos e 1 de Colossenses: a criação anseia pela manifestação dos filhos de Deus, pois Cristo quer re-formá-la em Si). Naturalmente, isto não tem nada que ver com integrismos ou clericalismos (cfr. Lauand : http://www.hottopos.com.br/notand5/algeb.htm).

Deus, que tem poder para fazer das pedras filhos de Abrahão (Lc 3,8), quer contar com o amor conjugal de João e Maria para criar uma nova vida. Deus, que poderia fazer as crianças nascerem sabendo inglês e álgebra, quer contar com a tarefa educadora dos professores. Deus quer contar com cristos-cidadãos que construam um mundo de acordo com Seu projeto. Com cristos-engenheiros que canalizem córregos ("não tem um Cristo para acabar com as enchentes em São Paulo?"), com cristos-médicos que identifiquem vírus etc... A redescoberta da Igreja é a da vida quotidiana como chamado a uma plenitude da existência cristã. Cristo, que passou 30 anos trabalhando na vida corrente sem fazer nenhum milagre, é modelo para - "já não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim" - o engenheiro, o taxista, o empresário, o torneiro mecânico, a dona de casa, o professor...; para cada cristão que assuma o chamado que recebeu no Batismo. Toda a proposta da Igreja é reformulada a partir do alcance dessa filiação divina que temos porque nos é dada em participação da Filiação que é em Cristo. Se pensamos nas quatro grande partes do CC: a doutrina da fé está centrada neste fato fundamental; a liturgia e os sacramentos, também; e o mesmo a moral e a vida de oração.

# 1692 O Credo professou a grandeza... de Sua criação e da redenção e da obra da santificação. Isto que a fé confessa, os sacramentos comunicam: pelos "sacramentos que os fizeram renascer" os cristãos se tornam "filhos de Deus" (Jo 1,12; 1 Jo 3,1), "participantes da natureza divina" (2 Pe 1,4). E, reconhecendo essa nova dignidade, são chamados a viver desde então "uma vida digna do Evangelho de Cristo" (Fil 1, 27). É pelos sacramentos e pela oração que recebem a graça etc.

Assim, a moral, longe de ser um código ou um manual, é um convite ao reconhecimento da dignidade desse "Viver em Cristo" (título da parte moral do CC): Agnosce, christiane, dignitatem tuam! (S. Leão Magno, CC # 1691). Para além de proibições e castigos, a moral é uma questão de retribuição de amor a essa presença de Cristo no cristão. Que vou fazer do Cristo que habita em mim? A que vou associá-lo? Com o que vou misturá-lo? "Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo. Ides fazer deles membros de uma prostituta?" (I Cor 6,15) "Não sabeis que sois o templo de Deus e que o Espírito Santo habita em vós?" (I Cor 3,16). É o homem novo de quem tantas vezes fala o Apóstolo, para quem tudo é lícito mas nem tudo convém (I Cor 6,12).

# 1691 "Cristão, reconhece a tua dignidade. Por participares agora da natureza divina, não te degeneres retornando à decadência de tua vida passada. Lembra-te da Cabeça a que pertences..." (S. Leão Magno)

Neste mundo, em que tantos estão desprovidos de qualquer motivação, a educação cristã - que sabe que Cristo vive no cristão e está interessado em transformar toda a criação pela ação dos cristãos - torna-se fascinante. Sua vida fora desta consciência parece-lhe como o verso de Adélia Prado: "De de vez em quando Deus me tira a poesia e eu olho pedra e vejo pedra mesmo".

Nesse quadro ressalta a importância da Missa: é por ela que nosso quotidiano é - por Cristo, com Cristo e em Cristo - enviado ao Pai.

# 1367 - O sacrifício de Cristo e o sacrifício da Missa são um único sacrifício: "A mesma e única Vítima, o mesmo e único Sacerdote que, pelo ministério dos padres, se oferece agora como se ofereceu na Cruz. A única diferença é o modo de oferecer: então, de maneira sangrenta; sobre o altar, de maneira incruenta".

# 1368- A missa é também o sacrifício da Igreja. A Igreja, que é o Corpo de Cristo, participa da oferenda de sua Cabeça. Com Ele, ela se oferece toda inteira. Ela se une à Sua intercessão junto ao Pai por todos os ho-mens. Na Missa, o sacrifício de Cristo torna-se também o sacrifício dos membros de Seu Corpo. A vida de cada fiel, seu louvor, suas dores, sua oração, seu trabalho é unido aos de Cristo e à Sua oferenda total e adquire assim um valor novo. O sacrifício de Cristo presente sobre o altar dá a todas as gerações de cristãos a possibilidade de se unir a Seu sacrifício.

# 1332 (chama-se) Santa Missa porque a liturgia na qual se realiza o mistério da salvação se conclui pelo envio dos fiéis (missio) a fim de que eles cumpram a vontade de Deus em sua vida quotidiana.

Na Missa, se exerce de modo absolutamente único aquela união com Cristo-Cabeça. E "por Cristo, com Cristo e em Cristo" somos levados ao Pai. Do mesmo modo que o Sol, que é luz, dá a participar luz ao ar e o fogo, que é calor, dá a participar calor a um metal a ele exposto, assim a Filiação do Verbo nos é dada em participação por Cristo. Pelo Batismo somos conectados nEle, e na Missa Cristo nos une a seu Sacrifício ante o Pai.

Cristo, que "me amou e se entregou a Si mesmo por mim" (Gal 2,20), associa-me a Seu sacrifício. São Paulo que afirma que o sacrifício de Cristo foi superabundante ("onde avultou o pecado, superabundou a graça" Rom 5, 18-20) é o mesmo que diz - de modo aparentemente contraditório: "Eu completo (?) em minha carne o que falta (?) aos sofrimentos de Cristo" (Col 1, 24). E é que Cristo vive nos cristãos: pelo Batismo, participamos de Sua vida e de sua obra redentora...

A consciência dessa participação na filiação divina, que alcança as realidades mais prosaicas do nosso quotidiano, é, parece-me, a essência da educação cristã para o nosso tempo.



[1] . Para nos referirmos ao novo Catecismo da Igreja Católica, utilizaremos a abreviatura CC. Citaremos os pontos do CC indicando o número pelo sinal # de cardinalidade. Assim: # 354 é o ponto 354 do CC. As citações seguem a 9a. edição brasileira (já atualizada com a edição típica latina). Algumas passagens de nossa conferência, retomam aspectos tratados por Marli Pirozelli N. Silva em "Moral no Catecismo da Igreja Católica": www.hottopos.com/videtur7/marli.htm.

[2] . Tomás foi chamado por João Paulo II de "Doctor Humanitatis", precisamente pela perene atualidade de seu pensamento em relação a esses temas: "En realidad, santo Tomás merece este título por muchas razones (...): éstas son, de modo especial, la afirmación de la dignidad de la naturaleza humana, tan clara en el Doctor Angélico; su concepción de la curación y elevación del hambre a un nivel superior de grandeza, que tuvo lugar en virtud de la Encarnación del Verbo; la formulación exacta del carácter perfectivo de la gracia, como principio-clave de la visión del mundo y de la ética de los valores humanos, tan desarrollada en la Summa, la importancia que atribuye el Angélico a la razón humana para el conocimiento de la verdad y el tratamiento de las cuestiones morales y ético-sociales" (João Paulo II "Favorecer el estudio constante y profundo de la doctrina filosófica, teológica, ética y política de santo Tomás de Aquino - Discurso a los participantes en el IX congreso tomista internacional", 29-9 -90" http://www.multimedios.org/bec/etexts/ixsta.htm).

[3] Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque, Paris: Klincsieck. Logos significa ainda: palavra, discurso, raciocínio, conta etc., e o Verbo, segunda Pessoa da Trindade etc. Para a etimologia de ratio ver Érnout & Meillet Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine, Paris, Klincsieck, 1951, 3ème ed.

[4] É o que Tomás chama também de recta ratio, em oposição a uma perversa ratio que se fecha à ratio das coisas ou as deforma.

[5] Não por acaso Tomás considera que "inteligência" tem que ver com intus-legere ("ler dentro"): a ratio do conceito na mente é a ratio "lida" no íntimo da realidade.

[6] O conceito, a idéia, a ratio.

[7] Comparação necessariamente limitada, na medida em que o ato criador divino transcende infinitamente o âmbito da produção de objetos artificiais.

[8] . Mesmo quando a Igreja impõe obrigações especificamente religiosas - como, por exemplo, a Missa aos domingos ou o jejum em tais tempos - está concretizando obrigações que são, em última instância de moral natural (dar culto a Deus, temperança etc.).

[9] . Até em termos númericos é notável a presença das palavras "participação", "participar" e suas derivadas que perfazem um total de cerca de 230 incidências no CC.

[10] . Trato mais detidamente do conceito de "participação" no estudo introdutório a Tomás de Aquino: Verdade e Conhecimento, São Paulo, Martins Fontes, 1999.

[11] . Doutrina essencialíssima e que não é aristotélica: daí a problematicidade de reduzir Tomás a um aristotélico...

[12] . Weisheipl, James A. Tomás de Aquino - Vida, obras y doctrina, Pamplona, Eunsa, 1994, p. 16.

[13] . Cfr. Ocáriz, F. Hijos de Dios en Cristo, Pamplona, Eunsa, 1972, pp. 42 e ss.

[14] . Op. cit., pp. 240-241.

[15] . Para a "participação" do ser em Tomás, cfr. Lauand, L. J. Razão, Natureza e Graça: Tomás de Aquino em Sentenças, São Paulo, FFLCHUSP, 1995 e o já mencionado estudo introdutório a Tomás de Aquino: Verdade e Conhecimento, São Paulo, Martins Fontes, 1999.

[16] J. Maritain, "L'humanisme de Saint Thomas d'Aquin", in Mediaeval Studies, 3 (1941).

[17] . Evidentemente, não no sentido da Física atual, mas o exemplo é compreensível.

[18] . Participação envolve, pois, graus e procedência. Tomás parte do fenômeno evidente de que há realidades que admitem graus (como diz a antiga canção de Chico Buarque: "tem mais samba no encontro que na espera...; tem mais samba o perdão que a despedida"). E pode acontecer que a partir de um (in)certo ponto, a palavra já não suporte o esticamento semântico: se chamamos vinho a um excelente Bordeaux, hesitamos em aplicar este nome ao equívoco "Chateau de Carapicuíba" ou "Baron de Quitaúna". As coisas se complicam - e é o caso contemplado por Tomás - quando uma das realidades designadas pela palavra é fonte e raiz da outra: em sua concepção de participação a rigor, não poderíamos predicar "quente" do sol, se a cada momento dizemos que o dia ou a casa estão quentes (se o dia ou a casa têm calor é porque o sol é quente). Assim, deixa de ser incompreensível para o leitor contemporâneo que, no artigo 6 da Questão disputada sobre o verbo, Tomás afirme que não se possa dizer que o sol é quente (sol non potest dici calidus). Ele mesmo o explica, anos depois, na Summa Contra Gentiles (I, 29, 2), que acabamos dizendo quente para o sol e para as coisas que recebem seu calor, porque a linguagem é assim mesmo: "Como os efeitos não têm a plenitude de suas causas, não lhes compete (quando se trata da 'verdade da coisa') o mesmo nome e definição delas. No entanto (quando se trata da 'verdade da predicação'), é necessário encontrar entre uns e outros alguma semelhança, pois é da própria natureza da ação, que o agente produza algo semelhante a si (Aristóteles), já que todo agente age segundo o ato que é. Daí que a forma (deficiente) do efeito encontra-se a outro título e segundo outro modo (plenamente) na causa. Daí que não seja unívoca a aplicação do mesmo nome para designar a mesma ratio na causa e no efeito. Assim, o sol causa o calor nos corpos inferiores agindo segundo o calor que ele é em ato: então é necessário que se afirme alguma semelhança entre o calor gerado pelo sol nas coisas e a virtude ativa do próprio sol, pela qual o calor é causado nelas: daí que se acabe dizendo que o sol é quente, se bem que não segundo o mesmo título pelo qual se afirma que as coisas são quentes. Desse modo, diz-se que o sol - de algum modo - é semelhante a todas as coisas sobre as quais exerce eficazmente seu influxo; mas, por outro lado é-lhes dessemelhante porque o modo como as coisas possuem o calor é diferente do modo como ele se encontra no sol. Assim também, Deus, que distribui todas suas perfeições entre as coisas é-lhes semelhante e, ao mesmo tempo, dessemelhante". Todas essas considerações parecem extremamente naturais quando nos damos conta de que ocorrem em instâncias familiares e quotidianas de nossa própria língua: um grupo de amigos vai fazer um piquenique em lugar ermo e compra alguns pacotes de gelo (desses que se vendem em postos de gasolina nas estradas) para a cerveja e refrigerantes. As bebidas foram dispostas em diversos graus de contato com o gelo: algumas garrafas são circundadas por muito gelo; outras, por menos. De tal modo que cada um pode escolher: desde a cerveja "estupidamente gelada" até o refrigerante só "um pouquinho gelado"... Ora, é evidente que o grau de "gelado" é uma qualidade tida, que depende do contato, da participação da fonte: o gelo, que, ele mesmo, não pode ser qualificado de "gelado"... Estes fatos de participação são-nos, no fundo, evidentes, pois com toda a naturalidade dizemos que "gelado", gramaticalmente, é um particípio...

[19] . Noites do Sertão, Rio de Janeiro, José Olympio, 6a. ed., 1979, p. 71.