Velório

 

Antonio Carli

 

Eles vão chegando com ar de seriedade e mal se cumprimentam, quando muito murmuram um mísero “boa-noite”. Vão se apertando, sentados ou em pé, em volta do falecido, que fica sempre no centro da sala, quieto e sério em seu caixão, sobre a mesa da sala de jantar, com velas acesas ao lado da cabeça e dos pés. A sala fica empestada do cheiro de velas, que lembra defunto. Em geral o velório dura parte de um dia e toda uma noite. As pessoas quase não falam, como se remoessem no íntimo o fim inglório que as aguarda algum dia, quando também ficarão imóveis no centro da sala impondo silêncio. Quando falam, fazem-no em voz baixa, quase num cochicho, para não se denunciarem diante da morte. Ouvidos atentos podem perceber, vez ou outra, algumas palavras ou partes de frases:

— O minino quebrô o braço.

— Vô prantá feijão.

— A Bíblia tá errada.

— Amélia vai casá este ano.

— Mais num é muito nova?

— É muito nova, mais quéeee!

— O mandruvá tá comeno o argudão.

— Taca veneno nele.

— Vô tacá.

Devagar a conversa se anima e todos se põem a relatar as últimas novidades, a se colocar em dia com os preços do leite, do feijão, da arroba do boi em pé. Eles não costumam vender boi deitado.

Um homem, de pé, encostado num canto, coça sua barba rala, que cobre uma face encarquilhada, tostada de sol. Para onde olha ele, com tanta insistência enquanto se coça? Será que pretende abiscoitar alguma cabrocha de ancas largas, seios fartos e boa parideira? Outro sentado, enrola um cigarro de palha, passando-o pelos lábios salivados para amaciar. Dentro em pouco, ao cheiro de vela, vai se juntar o cheiro de tabaco.

Uma senhora jovem, incrivelmente gorda, mal cabe na cadeira. Ela tem bochechas vermelhas e olhos lacrimejantes; seus braços roliços repousam comodamente sobre o regaço e o direito termina por uma mão que acaricia um gato malhado. A não ser pela mão acariciante, o resto é imobilidade. Seus olhos se dirigem para um ponto em frente, porém ela nada vê, seus pensamentos viajam. Veste uma saia cinza de camponesa, que chega até os pés, calçados por sandálias. Deve ser solteirona e nada lhe resta para acariciar, a não ser um gato, não há um marido para lhe aquecer a cama e o coração. Ela não sabe se chora o morto ou o próprio desamparo. Colocando-se-lhe uma moldura em volta, tem-se ali um quadro de Fernando Botero, um Botero legítimo.

Pela porta entreaberta, contra o fundo escuro, chega um murmúrio de vozes. Olhando melhor dá para perceber dois vultos acocorados, distraídos num diálogo interessante. De onde são eles? Não parecem gente das redondezas, pelo jeito de falar, parecem pessoas instruídas, chegadas da cidade grande. Um deles gesticula, tentando impor ao outro seu ponto de vista:

— Não, não é assim, aquele azul que está lá em cima, não é céu coisa nenhuma, não passa de ilusão; para alguém que voasse muito alto, acima da atmosfera, o firmamento seria visto como um fundo negro e vazio, onde as estrelas brilham mas não cintilam.

— Muito bem, exclama o outro, e para onde vão os espíritos dos mortos? Pois se o céu não existe então não existe também o inferno, pois ambos formam um par, colados um no outro como irmãos siameses, como o bem e o mal. Elimine um deles e o outro também desaparece, pois lhe falta o pilar de sustentação. Para onde vão os espíritos?

— Bem, olha, está aí uma pergunta que não sei responder, não sei mesmo.

— Será que o espírito do morto simplesmente desaparece, como o clarão de uma vela que se apaga?

— Não o creio, na natureza nada desaparece, tudo se transforma, esse é o princípio da conservação.

— Não seria mais prático admitir que não existe o espírito, não existe a alma? Assim não haveria o problema de fazê-lo sumir, ou colocá-lo em alguma parte?

— Também não é fácil admitir que o espírito não exista, porque não haveria como justificar tudo o que somos. Não podemos ser apenas um amontoado de matéria agitada por reações químicas. Temos que ser algo mais. De onde vêm nossos pensamentos e sentimentos? Seriam apenas reações químicas e um fluxo elétrico através dos neurônios? Não pode ser, a reação é o efeito, mas a causa é outra.

— E então, como ficamos?

Bem, imagine uma casa de barro, algum dia essa casa se degrada, desmorona, então a madeira apodrecida se incorpora ao solo e poderá alimentar uma planta; o barro, que já é terra, se incorpora à terra.

Assim é o corpo do falecido, ele se desmancha e é incorporado ao ciclo vital, o pó volta ao pó. O espírito deve seguir o mesmo processo, se desmancha, se desintegra. Um paranormal vê a morte como flocos de algodão esvoaçantes, saindo pela cabeça do moribundo. Aqueles flocos são fiapos de consciência que se incorporam à consciência universal. A consciência também volta à origem. No futuro, um desses fiapos poderá fazer parte de uma consciência de outro vivente.

Adão e Eva – F. Botero - Museo de Antioquia

— Se é assim, de alguma forma, vamos desaparecer como ocorreu com sua casa de barro. Para alguém que fosse ao local daqui a cem anos, nada seria visto da casa, até o cenário desapareceria e a capoeira invadiria tudo. Não haveria qualquer sinal dos corações que ali bateram.

— Bem, isso tudo são idéias, e tudo o que sabemos é que não sabemos. O mundo segue seu curso, indiferente às mais belas teorias, a única coisa que sei, no momento, é que estou com a bexiga estufada.

Os dois vultos se levantam e entram no mato, para atender aos reclamos da bexiga.

O finado continua impassível em seu caixão, nem desconfia de que dois vultos acocorados no escuro e na surdina, acabam de decidir qual o destino dele, um destino para o qual ele não foi consultado.

A conversação geral, muito tempo animada, qual partida de tênis em que cada um desfere o seu golpe de raqueta, vai se apagando aos poucos. Está agora fragmentada, esmigalhada, e nada mais se ouve distintamente no ruído harmonioso de todas aquelas vozes, de timbre caipira, que chalreiam como os pássaros, ao amanhecer, na orla do bosque.

Ao peso da noite que se arrasta, as faces empalidecidas ou avermelhadas que se abrasam, os olhares exaustos nos olhos encovados, e até sob as luzes bruxuleantes das velas, iluminando as faces e os pés do defunto, essas hastes brancas de cera espalham seu odor de morte.

A noite é longa, o tempo não passa, vêem-se cochilos pelos cantos, alguém cambaleia e ameaça cair da cadeira, acorda assustado, olha ao redor e disfarça. É nessa hora que aparece uma rodada de pão com café, oferecida pela dona da casa e do defunto. O lanche consiste de muitos pedaços de pão caseiro cortados e servidos numa peneira de abanar café. Uma moça carrega a peneira e outra, uma bandeja com bule de café e muitas xícaras.

— Vosmecê é servido?

Mas é claro que o “vosmecê” é servido, ainda pergunta?

Nesse momento o pessoal se reanima, os sonolentos despertam remelentos, tangidos pelo forte cheiro do café, que, por si só, já é bastante para insuflar alma nova, por todo canto se levantam olhares curiosos e ansiosos.

Às vezes, para alegria geral, ao pão com café segue-se uma rodada de pinga, sempre apresentada como caninha da boa. É então que as línguas presas se soltam em definitivo, como se todos de comum acordo mandassem às favas o defunto e a morte, e curtissem a vida enquanto estão vivos.

A felicidade não é eterna e a tristeza não dura para sempre.

Ninguém mais se lembra de que está num velório e o defunto já não é o tirano assustador de antes, não passa agora de um corpo estranho a ocupar um espaço que não lhe pertence, já não incomoda.

As meninas casadoiras dão espiadas rápidas em direção aos rapazes, trocam cochichos e dão risinhos, tampando a boca com as mãos.

Começam a contar piadas e um sujeito de voz clara, conta a respeito do mineiro que estava fazendo turismo no Rio Grande do Sul. O garçom, muito gabola a respeito de seu estado e da valentia de seus patrícios, diz ao mineiro:

— Aqui no Rio Grande somos todos machos.

— Éeeh! Lá em Minas, metade é homem e metade, mulher, e nós achamos bom!

As piadas pipocam de todos os lados e vão ficando picantes, uma se destaca, o papagaio que está empenhado em colocar chifres na cabeça do galo. As risadas explodem por toda parte espontâneas e soltas, risos banguelas e risos amarelos. Este ri como a dizer: qui qui... qui qui, aquela outra ri como se dissesse: tá chocho... tá chocho... o falecido que até então estava plácido e descansado, indiferente a tudo, com suas faces lívidas, brancas como pó de arroz, franze de leve os lábios num riso imperceptível, quase invisível, um riso de monalisa. Quando tudo parecia mais calmo, um dos compadres, por efeito retardado, num gargalhar desenfreado, quase desaba, agarrando-se ao caixão e sacudindo o morto. Algumas velas caem no chão e rolam, apagando-se. Estabelece-se uma confusão.

— Que Deus me perdoe! — exclama o culpado, compungido, benzendo-se.

O falecido habilmente se aproveita da fraqueza momentânea de seu oponente e restabelece a ordem, reivindicando o quinhão a que tem direito. Todos se assustam, surpresos, estacando o riso, só então notam a presença do defunto como que surgido do nada. O silêncio volta a renascer, um silêncio forçado, cansado, eles olham-se entre si num ar de cumplicidade.

Mas eis que as estrelas já estão se apagando e no horizonte uma nesga de nuvem já brilha tingida pelo sol nascente.

É a hora das despedidas, dos choros e soluços, o morto é pranteado como merece, porque ele foi um santo. Todos os mortos são santos, como se a morte fosse uma faxina geral limpando tudo, todos os pecados foram perdoados, o defunto está pronto e confiante para o confronto final com São Pedro.

Fecha-se o caixão, enquanto os últimos gemidos vão se diluindo num suspiro queixoso. Há um lufa-lufa em volta do caixão, segura daqui, gira dali. Parece que aquela faina desperta a viúva de sua letargia, que agora, aos gritos, num desespero inútil, ainda tenta segurar, ainda tenta retardar aquela partida final e definitiva.

Os pequenos a rodeiam, chorando e puxando-a pela saia, rogando:

— Deixa o pai, mãe, deixa o pai, mãe! Você machuca ele!

Agora há uma choradeira geral estimulada pela viúva, e até pelos mais sorridentes na hora das piadas.

Até que enfim saem levando o falecido, depois que dois homenzarrões decidem tirá-lo pela porta estreita, segurando cada um numa das extremidades. A multidão o segue, enquanto na casa ainda continua o tumulto.

A viúva, agora postada no terreiro, se descabela de braços erguidos. Amanhã, quando as lágrimas lhe secarem, ela vai descobrir que a vida continua, vai se levantar cedo, fazer uma sopa de macarrão com caldo de feijão e seguir para o roçado. Na cabeça vai carregar uma vasilha com a sopa, por sobre uma rodilha de pano. Com o braço direito vai carregar a filha menorzinha, com o esquerdo vai segurar o cabo da enxada apoiada sobre o ombro. Os outros vão acompanhá-la em silêncio, caminhando atrás em fila indiana.

Durante a doença do falecido o mato cresceu e ameaça a lavoura. Será que ela vai dar conta de tanto capim colchão? Será preciso que o pessoal se reúna e faça um mutirão para ajudar a viúva, se não, como vai ser?

Agora lá vão eles em direção ao cemitério do patrimônio, por aquela estradinha de terra batida, margeada de ambos os lados por pés de café, gotejantes de umidade trazida pelo sereno da noite. Os homens resfolegam na caminhada, este segura uma alça do caixão, caminha cinqüenta metros, quando outro se apresenta para substituí-lo. O caixão avança como um aríete, arremessado por quatro braços contra o vento. Segue sempre na frente, e aquele que viveu apagado quando vivo, agora aparece quando morto, puxando o cortejo, como se fosse pecado mortal ser ultrapassado.

Lá vão eles resfolegantes, desaparecendo à distância, em direção ao cemitério, em cujo frontispício um desconhecido escreveu: “Fomos o que és, serás o que somos.” A palavra colocada na boca dos mortos soa estarrecedora. É ali que ele vai viver para sempre, ou melhor, vai continuar morto. E, por toda a eternidade, é impossível escalar aqueles muros e escapar.

O dia amanhece, enquanto de longe, chega o canto do galo.

Aquela réstia de sol banhando o mundo é como um bálsamo, que apaga o cheiro da vela queimada e assopra vida nova, dissipando devagar todo aquele pesadelo de morte, aquele que parece agora, sob a luz do sol, um mal-entendido noturno.