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Helmi M. I. Nasr
Prof. Titular DLO-FFLCHUSP

 

A percepção da contingência do mundo - da que, curiosamente, o ateísmo ocidental insiste em não tirar sua conseqüência imediata: a existência de Deus - está muito arraigada na tradição árabe.

O Alcorão, a cada passo, fala da multiplicidade de sinais de Deus, invisíveis somente para quem não os quer ver. E, mesmo na tradição literária pré-islâmica, encontramos esta mesma constatação: a eloqüente omnipresença dos sinais de Deus, audíveis tanto na grandeza, como na contingência do mundo.

É disso que nos fala o grande orador e poeta do século VI, Qus Ibn-Sa'ida, em sua Khutbah ( [1] ), uma das mais preciosas peças de toda a literatura árabe. A peça, misto de discurso e poesia ( [2] ), obteve o primeiro prêmio na feira de 'Ukaz, um dos mais importantes concursos literários públicos da época.

O autor dirige-se aos membros de sua tribo, Iyad, convidando-os a ler a mensagem escrita nos céus, na terra e na contingência humana. Apresentamos também a transliteração do original árabe pois, se a fonética da língua árabe é sempre incisiva ( [3] ), no seguinte texto tal fato é particularmente notório:

                Khutbah

                      Qus Ibn-Sa'ida

Aiuha al nas! Isma'u ua 'u!

Innahu man 'asha mat

Ua man mata fat

Ua kullu ma hua atin at

Lailun daj

Ua naharun saj

Ua sama`un dhatu abraj

Ua nujumun tazhar

Ua biharun tazkhar

Ua jibalun mursah

Ua ardun mudhah

Ua anharun mujrah

Inna fi al sama`i lakhabara

Ua inna fi al ârdi la'íbara

Ma balu al nassi yadhabuna ua la yarji'un?

Aradu fa aqamu? Am turiku fa anamu?

Ia ma'shara Iyad! aina al aba`u ua al ajdad?

Ua aina al fara'inatu al shidad?

A lam yakunu akthara minkum mala?

Ua atuala ajala?

Tahanahum al dahr bikalkalih!

Ua mazzaqahum bitataulih

Fi Al dhahibina alaualina min al quruni lana basa`ir

Lamma ra`aitu mau aridan lilmauti laissa laha masadir

Ua ra`aitu qaumi nahuaha yassa'a alasagiru ua alakabir

La iarj'u al madi ilaiya ua la min al baqina gabir

Aiqântu anni la mahalata haythu sara  al qaumu sa`ir

      

O DISCURSO

              Qus Ibn-Sa'ida

(Trad. de Helmi M. I. Nasr)

Ó gente! Ouvi e meditai!

É certo que quem vive, morre

E quem morre, finda

E o que tiver que ser, será.

(Contemplai...) A noite escura

O dia sereno

O céu, com suas constelações!

E estrelas, que brilham

E mares, que se agitam

Montanhas assentadas

A terra, que se estende

Rios que correm

Não vedes que no céu há notícias

E na terra, sinais?

Por que será que os que se foram ( [4] ) não voltam?

Será que estão satisfeitos e, por isso, lá ficaram?

Ou então, porque ninguém cuidou de despertá-los, permanecem adormecidos?

Ó tribo Iyad: onde estão nossos pais, onde os avós?

Onde o poder dos faraós? ( [5] )

Acaso sois mais ricos do que eles?

Ou vossa vida, mais longa do que a deles?

(E, no entanto) Foram esmagados pelo peso dos anos

Rasgados ao meio pelo fluir do tempo.

Neste ir-se das antigas gerações, há para nós luz interior

Quando vi ondas de morte chegando, sem que saibamos de onde procedem

E vi meu povo ser por elas tragado, tanto os pequenos como os grandes!

E vi que não volta o passado, nem retorna quem se foi

Então me convenci de que também eu irei para onde meu povo está...



( [1] ) Khutbah, discurso, é um dos gêneros literários, presentes já na literatura pré-islâmica. A análise desta peça do ponto de vista poético foi feita pelos professores Aida Hanania e Jean Lauand em Oriente e Ocidente: Língua e Mentalidade, São Paulo, Centro de Estudos Árabes FFLCH-USP / Apel, 1993, p. 11 e ss.

( [2] ) A parte propriamente poética começa em Fy adh-dhahibyna...

( [3] ) Desenvolvo este tema em entrevista para a Revista de Estudos Árabes, No. II, jul-dez 1993, pp. 17 e ss.

( [4] ) Morreram.

( [5] ) Séculos depois, os faraós ainda eram o símbolo do maior poder humano.