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Estudo Etimológico de Algumas
Formas Quotidianas em Chinês

 

Ho Yeh Chia

 

Um recente trabalho [1] analisa - para as línguas ocidentais - a antropologia subjacente às formas quotidianas de convivência. Neste estudo, pretendemos ampliar essa discussão para o chinês contemporâneo. Também neste caso há, parece-nos, sugestivas bases antropológicas, tanto mais que, o Extremo Oriente conta com - os sempre insinuantes - ideogramas.

Os ideogramas chineses atuais provêm de várias origens, dentre as quais podemos destacar as de: imagem/forma, sentido, som e empréstimo (para usar a terminologia tradicional das gramáticas chinesas).

Como era de esperar, os ideogramas primitivos são quase um desenhar dos objetos representados. Desenhos que, como é natural também, com o tempo evoluíram e passaram a se caracterizar por imagem/forma. É a partir destes e de suas pronúncias que o chinês criou outros ideogramas.

Exemplifiquemos, inicialmente, com o ideograma rén (que significa homem, ser humano), cuja forma atual é:

A evolução desse ideograma, como indica Fazzioli [2] , desde sua forma original, foi a seguinte:

Já para o ideograma dòu (luta),

a evolução [3] (que dispensa maiores comentários) foi:

Embora muitos ideogramas de imagem/forma atuais não mais lembrem diretamente os objetos representados, encerram em si toda uma história de transformação da escrita chinesa, esquecida por muitos falantes de hoje. Seja como for, recapturar seus sentidos é também entender a mensagem que cada ideograma traz consigo como herança do pensamento dos ancestrais que inventaram a escrita.

Bem diferente é o caso dos ideogramas originados pelo som. Neles, há uma composição: uma "parte" simplesmente não soa, mas somente integra o significado; enquanto a outra parte é que se responsabiliza pelo som. Assim, não têm muito que ver com os seus reais significados, pois precisamente o som é que é o responsável pela formação do ideograma.

O mesmo acontece com os ideogramas emprestados. Há alguns ideogramas que expressam conceitos abstratos, como por exemplo:

     (yi)  fácil   e     (nan)   difícil

A análise da sua escrita não manifesta seu significado. Acredita-se que os chineses já falavam em "fácil" e em "difícil" antes de haver a escrita. Quando foi necessário escrever, tomaram emprestado o ideograma

 
(yi),

que na escrita antiga representava lagartixa, um ideograma de imagem/forma (calcado no desenho da lagartixa com sua cabeça e suas quatro patas), já que sua pronúncia é a mesma que a de "fácil". E começaram a usar indistintamente o mesmo ideograma até que, para evitar confusões, acrescentaram, para a "lagartixa" o radical 


(chong),

que representa animais. Assim ficava diferenciada a designação de lagartixa, que, hoje, se expressa por:

Os ideogramas originados pelos significados são compostos por dois ou mais ideogramas de imagem/forma. É bem o caso de diversas instâncias do tema que nos interessa: formas quotidianas - como as de gratidão, de congratulação, de dor de ausência e de esquecimento, por exemplo.

Comecemos pela gratidão. Se os ocidentais destacam, em suas línguas, os aspectos de reconhecimento, louvor e retribuição, a forma chinesa para expressar a gratidão é:

(fei chang xie xie - literalmente: não comum - reverência - reverência; ou curvado - curvado).

Assim, a gratidão em chinês, repete o ideograma duas vezes, enfatizando [4] o seu sentido [5] .

A "gratidão" é composta pelo radical    


 (yan), que representa palavra, fala,


(shen), corpo e, finalmente, por

  
 (shi) (flecha).

Neste caso, a flecha representa a curvatura, a reverência do corpo, que se expressa em palavras. Pois, os chineses antigos agradeciam ao Imperador e cumprimentavam a Deus - o Céu e a Terra -, com o corpo completamente encurvado, prostrado, colocando a testa no chão para expressar a magnitude de sua gratidão.

Esse gesto não se faz mais atualmente, mas está expresso pelo seu ideograma quando dizemos:


 (xie xie) 

É natural que o Oriente una à reverência - sua forma predileta de respeito e veneração por uma pessoa - à expressão de gratidão: afinal, pela reverência, literalmente abaixamos nossa cabeça, situando-a à altura do coração...

Analisemos, agora, o cumprimento para congratulações, correspondente ao nosso "Parabéns!":

 
(gong xi)

Essa expressão é composta por:


 (gong),

que representa cumprimento, boa-educação, formalidade e por


 (xi)

Este por sua vez é composto pelo radical

(shi) (mostrar ou divindade, tudo o que se refere ao que é dado por Deus). E pelo ideograma


(xi) alegria.

Trata-se, então, de um cumprimento que lembra àquele que o recebe que essa sua alegria é divina e que não deve esquecer de agradecer o que está recebendo hoje.

Para expressar a "saudade", dor da ausência em chinês, há


(nien), ideograma composto por


(jin), hoje e


(xin), coração.

Saudade é assim, para os chineses, o que está presente no coração de hoje. Mas como "hoje" nunca passa, pois todo dia é um hoje, saudade é, então, uma presença constante do passado.

Cabe aqui a observação de que esquecer, em chinês, é

 
(wang),

integrado por morte:


(wang)

e por coração:

Nesse sentido, para os chineses, o esquecimento está ligado à idéia de um coração morto (para tal ou qual lembrança...), na mesma linha do scordarsi italiano.

Passemos ao tema do perdão. Para pedir desculpas, diz-se

1

 
(bao qian)

ou                 

2

  
(dui bu qi)

Os dois ideogramas que compõem a primeira forma são de origem sonora e significam, literalmente, abraçar o remorso.

A segunda forma significa, ao pé da letra "estar diante - não - levantar". Dizemos que abraçamos a culpa (o remorso) quando queremos expressar que reconhecemos o nosso erro ou a injustiça que cometemos. E que "não tenho forças (levanto, ergo-me) diante de você" para dizer o quão pequenos nos sentimos diante da pessoa por nós agravada: a injustiça que cometemos é irreparável, só podemos sentir muito e reconhecer que nada do que fizermos poderá corrigir o erro.

Já para as condolências em ocasiões de morte, os chineses cumprimentam a família enlutada com

 

(jie ai shun bian),

 

 

significa: regulamentos, controle, ritmo musical, nó das plantas ou dos animais (a parte de junção dos ossos dos dedos, das pernas, etc), datas festivas, e pausas, enfim, tudo que sugere ordem, marca, ou controle.

significa tristeza.

por sua vez, quer dizer "seguir o curso natural das coisas". Assim, no momento de extrema dor, os chineses lembram àquele que está mergulhado no sofrimento, que deve economizar, controlar, regular a tristeza e que, afinal, a morte faz parte da vida.

E por fim, a despedida:            

 

(zai jian)

que, como em todas as línguas (au revoir, arrivederci, auf wiedersehen etc.) significa "ver novamente", como voto de um reencontro.



[1] . Lauand, Luiz Jean  "Antropologia e formas quotidianas - a filosofia de Tomás de Aquino subjacente à nossa linguagem do dia-a-dia" in Medievália, São Paulo, HotTopos, 1997, pp. 9-24.
[2] . Fazzioli, Edoardo  Chinese Calligraphy,  N. York, 1987, p. 24.
[3] . Ibidem p. 88.
[4] . A repetição para intensificar o sentido da palavra é procedimento usual em diversas línguas. É o caso por exemplo do acusativo absoluto árabe: darabtu daraban é "bato batendo", isto é: bato muito, intensamente. O mesmo se dá no tupi, como ensina o Curso da Língua Geral de Couto de Magalhães, Rio de Janeiro, Typographia da Reforma, 1876, p.79: "(a repetição) usa-se quando é necessário exprimir duração na ação do verbo aitá onhehè nhehè oikó - elles estão fallando. Esta forma tupi passou para o portuguez fallado pelo povo do interior. Os sertanejos dizem: elles estão falla fallando, para indicar que elles estão falando muito". E, de fato, também em nossa linguagem quotidiana, empregamos a repetição para designar a veemência de uma ação: quebra-quebra, corre-corre etc. (devo esta nota a LJL).

[5] . Contudo, algumas vezes, no chinês, a repetição da palavra atenua a qualidade designada. É o caso de certas atitudes: mau - mau é algo assim como "mauzinho"; chora - chora é choramingar. LJL fez-me notar que este fenômeno da ambivalência da repetição não é de todo estranho para o falante brasileiro, pois, também ele, trabalha com a ambigüidade do diminutivo (influência das línguas bantu no Brasil?), que, em certos casos, vale como aumentativo. Assim, "quentinho" está o pão de queijo que acaba de sair do forno e, portanto, em temperatura máxima; "caídinha" pelo rapaz está a moça que se encontra apaixonadíssima por ele etc. "Tá tudo certinho?".