Home | Novidades Revistas Nossos Livros  Links Amigos

 Ética e situações limite 
 Os psicóticos e os “normais” 

 

Cristina de Proença

 

 

Meu nome é Cristina de Proença, agradeço convite que me foi feito pelo Dr.Luiz Barros a fim de fazer breve depoimento sobre a minha condição de portadora de doença mental. Agradeço igualmente a iniciativa da FEUSP, através do Prof. Jean Lauand (organizador deste evento), as pessoas que compõem esta mesa, Prof.João Augusto Pompéia (psicólogo e prof. da PUC), Prof.Dr. Sérgio Rigonatti(psiquiatra forense), os apoios e participação de Universidades, ressaltando a importância deste evento e a presença de todos no auditório.

Não pretendo detalhar, num caráter autobiográfico, como se deu a entrada “insidiosa” da doença mental em minha vida. Pretendo apenas pontuar algumas questões que poderão servir de objeto de reflexão para todos os presentes. Minhas observações são de caráter pessoal e também baseadas na minha vivência profissional entre pessoas acometidas de algum tipo de transtorno mental.

Fui acometida de transtorno mental há dez anos e considerada como esquizofrênica, sendo tratada como tal, por 04 anos e só depois é que mudaram meu diagnóstico para TAB, há 06 anos.Sofri várias e longas internações ao durante esse tempo. Por TAB, entenda-se Transtorno Afetivo Bipolar, denominado antigamente de Psicose Maníca Depressiva (PMD), e em função do grande preconceito (conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos), renomeou-se esta e muitas outras patologias, conforme CID. 10 (Código Internacional de Doenças)

Na verdade, eu “não sou psicótica”, como comumente se costuma falar, em relação a uma pessoa portadora de doença mental. Posso dizer que, na minha doença, apresento “surto psicótico” episódico, onde me desvinculo, durante certo tempo, da intitulada “realidade racional”, passo a apresentar delírios, alucinações (que podem ser dos 05 sentidos), e que são revertidos com uso de medicamentos específicos.

Se me perguntarem qual o impacto que teve sobre mim o fato de constatar que era e sou portadora de doença mental, eu diria que foi apavorante.

Nós vivemos numa sociedade que privilegia o uso da razão, que é muito competitiva, individualista e mesmo estando no século XXI, ainda totalmente ignorante no que se refere às doenças que existem de ordem psiquiátrica. Há um tabu, um preconceito intenso, que é incutido nos indivíduos pelo “senso comum” (conjunto de opiniões e modos de sentir, que por serem impostos pela tradição de indivíduos de uma determinada época, local ou grupo social, são geralmente aceitos de modo acrítico como verdades e comportamentos próprios da natureza humana), reforçados pela mídia, imprensa em geral. Isto tudo, sem levar em pauta uma questão mais ampla, que é de ordem política e social.

Dessa forma, ao ser surpreendida, senti autopreconceito, culpa e vergonha de mim mesma.Começou o processo de não aceitação minha, desta nova condição e paralelamente à rejeição familiar, o sentimento de medo, a desagregação da família, as perdas profissionais, o descrédito da minha palavra, a falta de confiabilidade das pessoas em relação a mim, a exclusão familiar e social, o estigma.(marca, sinal, sinal infamante, marca vergonhosa).

Segundo o “Novo Dicionário Aurélio”, a palavra “exclusão” origina-se do latim (exclusione), sendo o “Ato de excluir (-se)”; ato pelo qual alguém é privado ou excluído de determinadas funções. Por “excluir” entende-se: afastar, desviar, eliminar, pôr de lado, abandonar, omitir, pôr de fora, expulsar, privar, despojar.

A família representa uma micro célula, dentro de uma macro, que é o meio social. Ela reproduz, fielmente, as normas sociais, que determinam a conduta dos indivíduos. E, assim sendo, estabelece aquilo previsto como comportamento esperado, que é considerado “normal” e, as pessoas que não seguem esses parâmetros são excluídas, rejeitadas. No caso das doenças mentais, são rotuladas como “loucas”, “potencialmente perigosas”, passando a ser objeto de estereotipias grosseiras, sofrem constrangimentos, perdem suas próprias identidades, auto-estima e muitas vezes cometem suicídio, por absoluta falta de perspectiva de vida.

O processo de aceitação da doença mental é gradual, doloroso, implicando em tratamento médico/medicamentoso constante, conhecimento sobre sua doença e suas limitações, numa tentativa permanente de busca de melhor qualidade de vida. Aqui, faço uma ressalva, para dizer a todos, que só vim a conhecer o que é  uma doença mental, seus sintomas, sinais de recaídas, através do Dr. Luiz Barros, quando coordenava sozinho o grupo de auto-ajuda Psicóticos Anônimos, pertencente ao Projeto Fênix, que ele idealizou e fundou.

Nenhum psiquiatra manifestou interesse em clarear para mim o problema que tinha (e tenho) e eu não possuía nenhuma referência sobre esta patologia.

Todos os segmentos que são excluídos do meio familiar/social vivenciam muito sofrimento psíquico, sem contar com privações de toda ordem e sensação de absoluto abandono, perda de cidadania.

Cada cultura, em seu tempo, determina a “forma” como encara e reage a esses segmentos. No que diz respeito à saúde mental, já existiram culturas que percebiam os doentes mentais como seres dotados de poderes extraordinários e estes não eram segregados. Em algumas culturas indígenas, o portador de doença mental possuía uma convivência em comum com sua tribo, desenvolvendo trabalhos cooperativos e só passando a ser isolado se seu comportamento se tornasse demasiado agressivo.

No mundo ocidental, capitalista, a ótica é bem diferente. Como o “handicap” do portador não pode ser equiparado ao de uma pessoa que não tenha problemas, a visão que se tem é que além desta pessoa ser “potencialmente perigosa, instável” (onde se confunde os termos “psicótico” com “psicopata”), o empregador infere que as capacidades laborativas do indivíduo estão prejudicadas, as intelectivas e, por conseguinte, será um prejuízo para a produção. Há a crença que o mesmo também irá faltar muito, devido a suas idas a médicos ou eventuais recaídas. Os “normais”, nesta perspectiva, são os indivíduos que produzem o “capital”, sem gerar nenhum ônus para a empresa e ou o Estado.

Por estas razões expostas, o contingente de pessoas que são portadoras de doenças mentais, é excluído e, se não tiverem algum apoio de sustentação financeira e de tratamento, tornar-se-ão, “cronificados”, moradores de rua, pedintes e é muito comum que passem a utilizar álcool e ou outras substâncias químicas. Cria-se a “comorbidade”.

Talvez a sociedade ainda não tenha se dado conta que a incidência de doença mental, no mundo inteiro (independente de raça, credo, país) é muito grande.

A diferença talvez esteja nos países de 10 mundo existam programas de ajuda eficientes. Nos EUA, hoje, os gastos destinados em pagamento de pensões para pessoas com doenças mentais, consideradas incapacitantes é na ordem de bilhões de dólares. O Brasil é continental e não nos faltam problemas. Mas no meu entender, uma política de saúde se faz prioritária. Ninguém está imune a tornar-se um portador de doença mental (segundo a ABP- Associação Brasileira de Psiquiatria, 01 em cada 04 pessoas apresentará ao longo de sua vida problemas de ordem neurológica e ou mental), basta que tenha uma predisposição genética (que muita vezes não sabe) e aí ela surge. Há fatores que funcionam como gatilhos, como as drogas, para uma doença que estava latente.Nem mesmo o fator idade, é garantia que a doença não venha a se manifestar.

Dizer para vocês que hoje, passados 10 anos, sinto-me confortável com meu diagnóstico, eu estaria mentindo. Tento conviver, seguindo o lema do AA “Só por hoje”, mas afetou minha vida de forma dramática e drástica. Tenho que conviver com medicações que trazem efeitos colaterais indesejáveis, com o preconceito, estar atenta aos sinais de recaída, sabendo que até o momento a medicina não oferece nenhum prognóstico favorável, ou seja, cura e com a falta de possibilidade de reinserção no mercado de trabalho.

Mesmo tendo consciência das minhas limitações, minha capacidade intelectual não foi afetada, muito menos a minha sensibilidade e então, só tenho a dizer, concluindo, que a exclusão fere, machuca, humilha, muitas vezes mata e em nada acrescenta para que o portador venha a se sentir, novamente, respeitado e um cidadão, com direitos.

Obrigada a todos.