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A Justiça
(Suma Teológica II-II, q. 57)

(Tradução de João Sérgio Lauand para os cursos da ESDC - São Paulo)

 

Santo Tomás de Aquino

ARTIGO 1

Se o objeto da justiça é o direito

Objeções pelas quais parece que o direito não é o objeto da justiça:

1. Pois diz o jurisconsulto Celso que o direito é a arte do bom e do eqüitativo. Ora, a arte não é objeto da justiça, mas por si mesma é uma virtude intelectual. Portanto o direito não é objeto da justiça.

2. Como diz Isidoro, no livro Etymol., a lei é uma espécie de direito. Mas a lei não é objeto da justiça, mas antes da prudência; e por isso o Filósofo põe a arte de legislar como parte da prudência. Portanto o direito não é objeto da justiça.

3. Além disso, a justiça submete principalmente o homem a Deus; pois diz Agostinho, no livro De mor. Eccl. Cathol, que a justiça é um amor que só serve a Deus e, por isso, rege bem as outras coisas que estão submetidas ao homem. Mas o direito não pertence às coisas divinas, e somente às humanas, como afirma Isidoro, nas Etymol, que o sagrado é lei divina: pelo contrário, o direito é lei humana. Por isso, o direito não é objeto da justiça.

Contra isto: está Isidoro que diz no mesmo livro que o direito se chama assim porque é justo. Mas o justo é objeto de justiça; pois afirma o Filósofo, em V Ethic., que todos decidem chamar justiça ao hábito, mediante o qual realizam coisas justas. Portanto, o direito é objeto da justiça.

Respondo: o que é próprio da justiça frente às outras virtudes é ordenar o homem nas coisas que estão em relação com o outro. Isso implica certa igualdade, como seu próprio nome manifesta. Vulgarmente se diz que as coisas que se igualam se ajustam. Ora, a igualdade se estabelece em relação a outro. As outras virtudes aperfeiçoam o homem somente no que diz respeito a si mesmo. Assim, aquilo que é reto nas ações das outras virtudes, para o que tende a intenção da virtude como seu objeto próprio, não se determina senão em relação ao agente. Pelo contrário, o que é reto no ato da justiça, mesmo sem contar a relação com o agente, se distribui por relação a outro sujeito; pois em nossas ações se chama justo aquilo que, de acordo com alguma igualdade, corresponde a outro, como a retribuição do salário devido por um serviço prestado.

Portanto, chama-se justo a algo, isto é, portador da retidão da justiça, ao termo de um ato de justiça, mesmo sem a consideração de como é feito pelo agente. Mas nas outras virtudes não se define algo como reto a não ser pela consideração de como é feito pelo agente. Por isso, o objeto da justiça, diferentemente das outras virtudes, é o objeto específico que se chama o justo. Certamente, isto é o direito. Portanto fica claro que o direito é o objeto da justiça.

Quanto às objeções:

1. É freqüente que os nomes se desviem de seu primeiro significado, para designar outras coisas, como o nome de medicina designava no princípio o remédio que se aplica ao enfermo para curá-lo, e passou a significar a arte de curar. Assim também acontece com o nome de direito, que se atribuía no princípio para significar a própria coisa justa, mas depois se derivou para a arte com que se discerne o que é justo, e posteriormente para o lugar em que se outorga o direito. Assim, por exemplo, se diz que alguém comparece perante o direito. Finalmente, também se denomina direito à sentença que é pronunciada por aquele que tem o ofício de fazer justiça, mesmo que o que decida seja iníquo.

2. Assim como já existe na mente do artista que realiza uma obra de arte aquilo a que chamamos regra da arte, da mesma forma pré-existe na mente de quem realiza uma ação justa um certo motivo, a modo de determinada regra da prudência. Quando isso se formula por escrito se denomina lei.; pois a lei segundo Isidoro é uma constituição escrita. Por isso, a lei não é o direito, propriamente falando, mas uma certa razão do direito.

3. Como a justiça supõe igualdade e a Deus não podemos retribuir eqüitativamente, se deduz que não podemos dar a Deus o justo, em sentido estrito; e, por esse motivo, a lei divina não se chama propriamente direito, mas norma sagrada, porque a Deus basta que cumpramos o que nos é possível. A justiça, pelo contrário, tende a que o homem, na medida do possível, renda tributo a Deus, submetendo-lhe totalmente sua alma.

ARTIGO 2

O direito se divide convenientemente em direito natural e direito positivo?

Objeções pelas quais o direito não se divide convenientemente em direito natural e direito positivo:

1. De fato, o que é natural é imutável e idêntico para todos. Mas nas coisas humanas não se encontra nada semelhante, porque todas as regras do direito humano falham em certos casos e não têm força em todos os lugares. Portanto, não existe um direito natural.

2. Diz-se que é positivo aquilo que procede da vontade humana. Mas nada é justo por proceder da vontade humana; do contrário, a vontade do homem não poderia ser injusta. Logo, como justo é igual a direito, parece que não existe direito positivo.

3. O direito divino não é direito natural, já que ultrapassa a natureza humana; e igualmente, tampouco é direito positivo, pois não se apóia na autoridade humana mas na divina. Portanto o direito se divide incompletamente em direito natural e direito positivo.

Contra isto está o Filósofo, em V Ethic., que diz que do justo político, um  é  natural e outro legal, isto é, estabelecido pela lei.

Respondo: Segundo se disse (a.1), o direito ou o justo é uma ação adequada a outra de acordo com um modo de igualdade. Mas algo pode ser adequado ao homem em um duplo sentido: primeiro, pela natureza mesma da coisa, como quando alguém dá uma certa quantia para receber outra igual. E isto se chama direito natural. Em um segundo sentido, algo é adequado ou de igual medida a outro por convenção ou comum acordo, isto é, quando alguém se considera contente se recebe algo. Isto, certamente, pode se dar de duas maneiras: uma primeira, por acordo privado, como o que se estabelece entre duas pessoas; e a segunda, por acordo público, como quando todo o povo consente em que algo se tenha como adequado e ajustado a outro, o quando isso e determinado pelo governante, que tem o cuidado do povo e o representa. A isso se chama direito positivo.

Quanto às objeções:

1. O que é natural em um ser que tem natureza imutável deve ser assim sempre e em todas as partes. Mas a natureza do homem é mutável. Por isso o que é natural no homem pode falhar às vezes. Por exemplo, por justiça natural se deveria devolver o depósito ao depositante; se a natureza humana fosse sempre reta, isto deveria se observar sempre. Mas como a vontade do homem se perverte às vezes, há alguns casos em que o depósito não deve ser devolvido, para que um homem com vontade perversa não o utilize mal, como, por exemplo, se um louco ou um inimigo do Estado exige as armas depositadas.

2. A vontade humana, de comum acordo, pode converter em justo algo que por si não tem nenhuma oposição à justiça natural. Daí que o Filósofo diga, em V Ethic, que justo legal é o que em princípio nada exige que seja de um modo ou outro; mas uma vez estabelecido, deve sim ser de um modo. Mas se algo por si mesmo se opõe ao direito natural, não pode tornar-se justo por vontade humana; por exemplo, caso se estabelecesse que fosse lícito roubar ou cometer adultério. Por isso exclama Is 10,1: Ai dos que promulgam leis iníquas!

3. O direito divino se chama assim porque é promulgado pela divindade. E efetivamente é em parte das coisas que são naturalmente justas. Contudo, sua justiça não é manifesta aos homens. Em parte é das coisas que se tornam justas por instituição divina. Daí se deduz que também o direito divino pode se dividir em dois, como o direito humano. Há pois na lei divina algumas coisas mandadas por ser boas e proibidas por ser más; outras boas porque são mandadas e más por ser proibidas.

ARTIGO 3

O direito de gentes se identifica com o direito natural?

Objeções pelas quais parece que o direito de gentes se identifica com o direito natural.

1. Os homens não coincidem a não ser naquilo que lhe sé natural. Mas no direito de gentes, todos os homens estão de acordo, pois diz o Jurisconsulto que o direito de gentes é aquele do que se servem todas as nações. Portanto, o direito de gentes é direito natural.

2. A servidão entre os homens é natural, já que alguns são por natureza servos como demonstra o Filósofo em I Pol. Mas as servidões pertencem ao direito de gentes, como diz Isidoro. Logo o direito de gentes é direito natural.

3. Como já se disse (a.2), o direito se divide em natural e positivo. Mas o direito de gentes não é direito positivo, já que as nações nunca se reuniram para, de comum acordo, estabelecer algo. Logo o direito de gentes é direito natural.

Contra isto: está Isidoro que diz que o direito ou é natural, ou civil ou de gentes. E assim, o direito de gentes se distingue do direito natural.

Respondo: Como se disse (a.2) , o direito ou o justo natural é o que por sua natureza é adequado ou de medida igual a outro. Isto, no entanto, pode acontecer de duas formas. Em primeiro lugar, considerando a coisa absolutamente e em si mesma; desse modo, o ser masculino se adapta, por sua natureza, ao feminino para gerar; e os pais ao filho para nutri-lo. Em segundo lugar, considerando a coisa não absolutamente, em sua natureza, mas em relação com suas conseqüências; por exemplo, a propriedade das posses. Com efeito, se este terreno é considerado de forma absoluta, não tem porque ser mais deste que do outro; mas se é considerado quanto à aptidão para ser cultivado e ao uso pacífico do campo, tem, de acordo com isso, certa disposição para que seja de um e não de outro, como demonstra o Filósofo em II Pol. Ora, captar algo em absoluto não é próprio somente do homem, mas também dos outros animais. E por isso o direito que se chama natural, segundo o primeiro modo é comum a nós e aos animais. Mas, como afirma o Jurisconsulto, o direito de gentes afasta-se do direito natural, porque este é comum a todos os animais, e aquele só aos homens entre si. Considerar algo em comparação com suas conseqüências é próprio da razão; daí que isso seja certamente natural no homem, devido à sua razão natural, que assim determina. Por isso diz o jurisconsulto Gaio: o que a razão natural constituiu entre todos os homens é observado entre todos os povos, e se chama direito de gentes.

Quanto às objeções:

1. Com isto fica clara a resposta à primeira objeção.

2. O fato de que este homem, considerado em absoluto, seja mais servo que outro, não tem nenhuma razão natural, mas só, posteriormente uma utilidade conseqüente, na medida em que é útil a este que seja dirigido por um homem mais sábio, e a aquele que seja ajudado por este, como se diz em I Pol. Portanto a servidão, que pertence ao direito de gentes é natural da segunda forma, e não da primeira.

3. É a razão natural que dita o que é próprio do direito de gentes, como por exemplo as que têm evidente eqüidade. Daí que não necessitem nenhuma instituição especial, pois a própria razão natural as institui, como se disse no argumento de autoridade aduzido.

ARTIGO 4

Devem se distinguir os direitos paterno e senhorial?

Objeções pelas quais parece que não se devem distinguir especialmente os direitos paterno e senhorial.

1. Com efeito, é próprio da justiça dar a cada um o que é seu, como diz Ambrósio em I De officiis. Mas o direito é objeto da justiça, como já se disse (a.1). Portanto não se devem distinguir de forma especial os direitos de pai e de senhor.

2. A medida do justo é a lei, como se afirmou (a.1 ad 2). Mas a lei protege o bem comum da cidade e do reino, como se disse anteriormente (1-2 q.90 a.2); contudo, não lhe diz respeito o bem privado de uma pessoa ou de uma família. Daí que não deve existir nenhum direito ou justo especial, senhorial ou paterno, já que o pai e o senhor pertencem à família, como se indica em I Pol.

3. Há muitas outras diferenças de graus entre os homens, como, por exemplo, alguns são militares, outros sacerdotes, outros príncipes. Logo, para eles se deve determinar um justo especial.

Contra isso: está o Filósofo, em V Ethic., que distingue especialmente do justo político o senhorial, o paterno e outros semelhantes.

Respondo: O direito ou o justo se determinam com relação a outro. Mas o outro se pode dizer de duas maneiras: em primeiro lugar o que é simpliciter outro, quando  é absolutamente distinto; como o que acontece entre dois homens, dos quais um não está sujeito ao outro, mas ambos estão subordinados ao príncipe da cidade. Entre eles, segundo o Filósofo em V Ethic., se dá o simpliciter justo. Na segunda, algo é chamado outro não simpliciter, mas como algo seu que existe. Dessa forma, nas coisas humanas, o filho é algo do pai, já que de algum modo é parte dele, como se diz em VIII Ethic; e o servo é algo do senhor, porque é um instrumento seu, como se afirma em I Pol. Por isso, a relação entre o pai e o filho não é a mesma que a existente em relação a um ser absolutamente distinto; e por isso, não existe aí o justo simpliciter, mas um certo justo, como o paterno. Pela mesma razão tampouco entre senhor e servo; para estes há o justo senhorial. A esposa, porém, apesar de ser algo do marido, pois se relaciona com ela como com seu próprio corpo, como afirma o Apóstolo em Ef 5,28, se distingue, porém, mais do esposo que o filho do pai ou o servo do senhor, já que é tomada para certa vida social do matrimônio. Por isso, como diz o Filósofo, entre o marido e sua mulher se realiza mais a razão de direito que entre o pai e o filho, ou o servo e o senhor. Ora bem, já que entre o varão e a esposa existe uma relação imediata voltada à sociedade doméstica, como se indica em I Pol, entre eles não se dá tampouco o justo político simpliciter, mas antes um justo doméstico.

Quanto às objeções:

1. É próprio da justiça dar o de deireito a cada um, pressupondo, porém, a diversidade entre um e outro; pois se alguém se desse a si mesmo o que se deve, isto no se chamaria propriamente justo. Como o que é do filho é do pai e o do servo do senhor, no se dá propriamente justiça do pai para com o filho nem do senhor para com o servo.

2. O filho, enquanto filho, é algo do pai e, semelhantemente, o servo, enquanto servo, é algo do senhor. Cada um deles, porém, enquanto considerado como homem, é algo subsistente por si e diferente dos demais. E por isso, enquanto homens, de algma maneira há justiça para eles. Daí que haja também certas leis para o pai em relação ao filho e para o senhor em relação ao servo. Mas quando considerados como algo de outro aí não há caráter de justiça ou lei.

3. Todas as outras diferenças de pessoas que moram na cidade têm uma imediata relação para com a comunidade da cidade ou o governante da mesma, e, portanto, há nesses casos o  direito segundo a perfeita razão da justiça. A distinção do justo se dá pelos diferentes ofícios. Por isso se diz direito militar, direito dos dos magistrados ou dos sacerdotes; não por defeito do justo em sentido absoluto (como no caso do direito paterno ou do senhorial), mas porque, pela condição de cada pessoa, algo específico lhe é devido de acordo com sua função peculiar.