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Silvia M. Gasparian Colello
Faculdade de Educação da USP

“(...) Já podaram seus momentos, desviaram seu destino, seu sorriso de menino tantas vezes se escondeu, mas renova-se a esperança, nova aurora a cada dia, e há que se cuidar do broto pra que a vida nos dê flor e fruto...” (Milton Nascimento)

 

1)      Introdução

A formação de professores tem sido freqüentemente considerada a partir de critérios técnicos reducionistas que, a priori, visam estabelecer um perfil desejável de profissional em um quadro de atribuições práticas genericamente delineadas. Na perspectiva do ideal, a realidade do fracasso do ensino parece irrelevante como se, de fato, o ser humano fosse incapaz de aprender com os seus erros. Sustentando os princípios de que a maior parte dos problemas de aprendizagem são problemas de ensino e de parâmetros estreitos do projeto educativo, o presente artigo visa tomar a problemática do insucesso escolar como um feed back relevante para a compreensão dos complexos meandros da aprendizagem e suas implicações para a formação de professores. Para tanto, vale-se de um estudo de caso em escola particular cuja especificidade põe em evidência quatro dimensões típicas do ensino em larga escala, mas, lamentavelmente, pouco evidentes na prática escolar.

2)      O caso de Rui

Esta é a história de Rui, aluno de uma escola particular em São Paulo.

Até os seis anos, ele se desenvolvia normalmente, aprendia com facilidade e tinha bom relacionamento com os colegas e professores de sua escola.

O drama da sua inadaptação começa quando a família do garoto mudou-se para a Itália. Em 3 anos de vida no exterior, Rui passou por 3 escolas em  diferentes regiões do país. A previsível dificuldade lingüística (aprender o italiano e alfabetizar-se nessa língua) foi mais facilmente resolvida do que a adaptação às exigências institucionais que, pelo viés cultural, eram incompreensíveis ao menino: severo controle comportamental, sistema de punição escolar e pouca tolerância ao erro. Rui estranhava, por exemplo, a exigência de andar na escola em fila, com as mãos para trás, a proibição de tirar os sapatos para brincar e não suportava a idéia de usar como uniforme “um aventalzinho” que, a seus olhos, mais parecia “coisa de mulher”. Sentiu particular dificuldade na alfabetização feita com caneta tinteiro, o que tornava mais difícil a correção. Ainda hoje o menino lembra-se com revolta das vezes em que foi obrigado a almoçar em pé ou a ficar sem almoço como formas de punição pela “agitação” no refeitório. Conta com detalhes o dia em que apanhou da freira diretora da escola, que, ao castigá-lo, fez questão de afirmar que fazia isso “pelo seu próprio bem”. Nessa época, surgiram as primeiras queixas de “rebeldia” apesar do (ainda) bom desempenho escolar.

Finalmente, ao retornar ao Brasil com 9 anos de idade, foi imediatamente considerado “em defasagem” pela escola (a mesma onde havia estudado até os 6 anos), tendo sua matrícula sido condicionada ao encaminhamento psicopedagógico. E, mesmo sendo rapidamente re-alfabetizado (agora em língua portuguesa), ficou em recuperação logo no primeiro trimestre letivo! Aos problemas de comportamento já registrados na escola italiana, acrescentaram-se as queixas quanto à aprendizagem. Com visível dificuldade para conciliar as lições, as tarefas propostas pela terapeuta e os exercícios de recuperação, Rui sintetizava sua angústia com uma só frase: “Será que eu nunca mais vou poder brincar?”

Foi assim que ele “se arrastou” ao longo da 3a e 4a séries do Ensino Fundamental. Hoje, com 11 anos, na 5a série, Rui está na iminência de perder o ano. Na mochila, há um amontoado de cadernos rabiscados, sem registro de aulas ou trabalhos. Seus professores o descrevem como um garoto “incapaz de aprender”, “bagunceiro”, “dispersivo”, “desorganizado”, “sem vontade nem interesse”: “um aluno que não faz nada!”. Seus pais queixam-se da “má vontade do menino com a escola” e da “má vontade da escola com o menino”.

No caso de Rui, a conjuntura do fracasso escolar explica-se a partir de, pelo menos, quatro dimensões indissociáveis, um quadro amplo, cuja estrutura e complexidade é inacessível à maior parte dos professores. A busca de qualidade no ensino pelo enfrentamento dos problemas da escola implica uma mudança de concepções e posturas: um desafio que não pode ser desconsiderado pelos programas de formação docente.

3)      A dimensão cognitiva

Do ponto de vista cognitivo, não há como aceitar a idéia de um menino que, salvo em vida vegetativa, é “incapaz de aprender” ou “que não faz nada”.

Ao longo do século XX, os estudos acerca da criança consolidaram-se como um vasto campo que, repensando concepções historicamente enraizadas, acabou por valorizar o potencial infantil não pelo viés transitório do vir a ser, mas pela legitimidade cognitiva, social, afetiva e cultural de cada etapa ou contexto. Com Piaget, decobriu-se a criança como um ser ativo na busca de conhecimento, alguém que não espera para aprender porque toma a si a iniciativa de criar hipóteses para a compreensão do mundo. Cotejado com os ensinamentos da psicologia russa, o sujeito epistêmico ganha sentido também no contexto sociocultural, de cujos modos de inserção depende a mediação com o mundo, a aprendizagem e o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores típicos do ser humano. Embora amplamente divulgadas, o significado de tais posturas, a ruptura provocada pelo embate teórico de diferentes interpretações e as suas implicações pedagógicas, ainda mal assimiladas na prática escolar, constituem um importante desafio a ser considerado na formação de professores. Até quando a profissão docente pode conviver com a idéia de que há alunos sem “vontade nem interesse”’?

Longe de compreender o homem como um ser essencialmente curioso, sem considerar os mecanismos pessoais de construção cognitiva, nem vislumbrar possibilidades de sintonia entre a ação escolar e os processos mentais do garoto, os professores de Rui preferem recorrer aos “clichês”. No palco das relações escolares, a ótica desvirtuada do potencial do aluno não logra senão o rompimento de  vínculos e o abandono das negociações. Afinal, que escola é essa que, para ensinar, perde de vista a motivação do menino? Que professores são esses que, na progressão do conhecimento, não consideram o já conquistado? Que educação é essa que abandona o aluno e rouba-lhe o ímpeto de saber?

4)      A dimensão psicopedagógica

Durante muito tempo, a psicologia escolar ou a orientação educacional funcionaram como iniciativas paralelas ao ensino e independentes do projeto escolar. Incorporando a tradicional ótica psicopedagógica restrita, muitos profissionais ainda hoje centram no aluno a culpa pelo fracasso, buscando nele possibilidades de superação dos problemas de inadaptação na escola.

Evidentemente, não se trata de desconsiderar a relevância da Psicopedagogia como um campo legítimo de pesquisa e de atuação responsável, mas sim de denunciar a proliferação das práticas de encaminhamento de alunos feitas ao sabor de interesses e conveniências. Do ponto de vista da escola, elas representam o alívio do “fardo” que representa o aluno que não aprende. Afinal, fica muito mais cômodo encaminhar o aluno problema do que tomar o seu fracasso como falha institucional, obrigando-se a uma revisão de responsabilidades, metas e procedimentos. Do ponto de vista da clínica, o atendimento individual, alheio às dinâmicas em sala de aula e ao projeto de ensino, vem movimentando um considerável mercado, o que acentua o caráter elitista da educação, deixando aos menos privilegiados a falsa sensação de impotência quanto aos problemas vividos na escola.

No esforço em garimpar a “defasagem” nas “patologias individuais” e assim justificar a interferência clínica especializada, muitos profissionais iniciam uma verdadeira “caça as bruxas”, submetendo as crianças e suas famílias a exaustivos testes, entrevistas e tarefas, a fim de classificá-las comparativamente com base em um “padrão de normalidade ou de adequação”. Incapaz de considerar a diferença, a singularidade e as trajetórias pessoais de conquistas e desenvolvimento, o mapeamento dos deficits acaba por se constituir como um exercício autoritário, inflexível, elitista, etnocêntrico e discriminatório, raramente aliado a quem mais precisa de ajuda.

No entanto, vale ainda perguntar: o fracasso escolar não pode ser resultado de problemas pessoais? A resposta é sim, mas certamente em proporções infinitamente menores do que o anunciado pelos sistemas escolares. Alguns estudos realizados nos mais dramáticos contextos de insucesso escolar (Aquino1997, Ferreiro 1987, Schiff 1994), apontam cifras de alunos-problema que não ultrapassam a 10% da população. O atendimento especializado, feito com moderação e seriedade, parece, portanto, justificar-se a um pequeno número de alunos. Mesmo assim, é preciso considerar que os fatores individuais constituem apenas uma das peças da complexa lógica do fracasso.

Sob essa ótica, o viés pessoal da história de Rui merece ser retomado. Tomando como base o “Inventário Psicoeducacional de Capacidades Básicas” (Drouet, 1990), Rui foi, aos 9 anos de idade, classificado como uma “Síndrome de Deficiência de Aprendizagem”, tendo em vista o “comprometimento de habilidades perceptomotoras”, a “frágil capacidade de atenção e concentração” e a “imaturidade no desempenho social”. Mais especificamente, registraram-se dificuldades nas formas de intercâmbio social, na associação audioverbal, na memória visual e auditiva, sobretudo (e curiosamente) quando associadas ao contexto clínico e escolar.

À luz de um contexto mais profundo do problema, é possível vislumbrar  nuances, a princípio desconsideradas, nessa “grande bola de neve”, que é trajetória do menino. Além de diagnosticar “o que vai mal”, importa compreender a gênese, o significado e a intensidade do quadro (“como, por quê e quanto vai mal”), interpretando-os na perspectiva de possíveis interferências.

Em face dos quadros de desajustamento, a distinção estabelecida por Silva (1996) entre problemas e dificuldades permite considerar a extensão do caso e as alternativas de se lidar com ele no âmbito da escola. Para a autora, dificuldades são estados indesejáveis, muitas vezes passageiros, passíveis de resolução mediante intervenções específicas e o ajustamento de linhas de conduta escolar. Em oposição, os problemas são definidos como impasses cristalizados que tendem a se agravar, exigindo, portanto, iniciativas mais especializadas.

O caso de Rui configura-se como um típico exemplo de uma dificuldade (adaptação escolar em um diferente contexto cultural) que passou a ser um problema (ciclo vicioso de comportamento e postura prejudiciais à vida escolar). Considerando seus antecedentes, dificilmente poder-se-ia suspeitar de um déficit  intelectual, cognitivo, motor, físico ou perceptivo. Não se trata de um comprometimento das competências básicas para ouvir, ver, lembrar e responder, mas da motivação para isso, razão pela qual o problema limita-se ao âmbito escolar. Na intrincada relação entre o “poder fazer” (dimensão psicomotora), “saber fazer” (dimensão cognitiva) e “querer fazer” (dimensão afetiva), o terceiro requisito parece ser o responsável por tanto transtorno: a origem das dificuldades de Rui está claramente na relação negativa do menino com a escola.

As considerações da intensidade e trajetória do caso de Rui remetem à análise de seu significado: por que ele resiste à aprendizagem? contra quem ou contra que o menino se rebela? Como síntese formada a partir da teoria comportamental (aprendizagem como produto do estímulo e resposta) e da psicanálise (ênfase nos aspectos internos), Paim (1986), em uma abordagem gestáltica, enfoca a estruturação do campo de aprendizagem pelas possibilidades de insight. Entendida como processo complexo no qual interferem elementos internos e externos, a aprendizagem ocorre em uma situação vital de “espaço problema”. A não-aprendizagem, por sua vez, não é o resultado oposto do aprender, mas, em cada caso, uma resposta pessoal ativa em face de um quadro de descompensação. Em conseqüência às situações vividas, Rui se rebela e restringe seu impulso cognitivo, pretendendo negar o contexto escolar, para ele traumático e indesejável. A escamoteação de parte da realidade, iniciada pela transgressão de regras (esfera comportamental) e, posteriormente, estendida para as esferas cognitiva e social, representam cumulativas modalidades de rejeição à escola, um processo ativo de autodefesa. Na prática, isso aparece na figura de um aluno que esquece a lição, boicota a aula pela indisciplina, desafia regras, não aprende e deixa de ter vínculos afetivos com colegas e professores.

A despeito da adversidade do quadro, é possível uma leitura positiva da situação: quando não enfocada pela “ótica dos elementos faltantes”, o quadro de desajustamento pode ser visto como uma reação à situação vivida, na denominação de Luzuriaga, “inteligência contra si mesmo”. A despeito do baixo rendimento escolar (indubitavelmente prejudicial), a atitude do menino é, no contexto de seus referenciais escolares (cicatrizes de fracasso, incompreensão e dor), uma sábia alternativa de autopreservação. Na reversão do quadro de descompensação, a inteligência do garoto, sua capacidade de reagir e o ímpeto de autodefesa seriam importantes trunfos e decisivos aliados. Mas estariam seus professores disponíveis a enxergar méritos no contexto do insucesso?

5)      A dimensão institucional: o projeto político-pedagógico

Por volta da década de 80, os educadores vão se dando conta de que a qualidade de ensino (ou a falta dela consubstanciada pelos problemas de aprendizagem) remete a outras dimensões dentro e fora da escola, propondo a instituição do ensino em nova configuração e dinâmica de trabalho. Por um lado, a orientação educacional, antes mais centrada no aluno (nas relações interpessoais e dinâmicas de classe), começa a se envolver diretamente na esfera pedagógica da vida escolar: o projeto pedagógico, o currículo, a concepção de ensino, a metodologia, a relação professor/aluno e os objetivos pretendidos. Por outro, professores e coordenadores, tradicionalmente preocupados com as questões didático-metodológicas, percebem o processo de aprendizagem na sua relação com o indivíduo e a comunidade: seus valores, anseios, conhecimentos socialmente compartilhados, modos de aproximação com o saber, significados implícitos e explícitos das conquistas cognitivas. A escola constata, assim, que problemas de aprendizagem configuram-se como fracasso institucional, tendo em vista os inúmeros fatores que interferem no aproveitamento dos alunos e na qualidade do ensino. Em contrapartida, o sucesso pedagógico merece ser pensado como um ideal que vai além do simples domínio de conteúdo.

A postura que articula educação e ensino foi reforçada pelos debates promovidos pelo MEC desde 1995, culminando com a proposta de Reforma Curricular expressa nos Parâmetros e Referenciais Curriculares (1997 e 1998), que desafiam os educadores a diminuir a distância entre conhecimento e cidadania. Na prática, isso implica que, ao tradicional compromisso de ensinar conteúdos, o projeto pedagógico tem que assumir como meta a construção de princípios, atitudes, normas e valores, aspectos imprescindíveis da humanização do sujeito e do compromisso político do educador (Coll, 1999).

Sob a ótica dos princípios educacionais nacionalmente assumidos, o projeto educacional e a concretização da reforma curricular pressupõem uma política de capacitação docente diferenciada, uma verdadeira mudança de mentalidade para que os argumentos pedagógicos não permaneçam na esfera do discurso. Tanto no que diz respeito aos paradigmas do ensino como no que tange aos meios e metas do ensino, o que está em jogo na formação de professores é o desafio de substituir a “lógica do saber muito” pela possibilidade de se lidar critica e significativamente com o conhecimento, tendo em vista objetivos que certamente superam o aprendizado de conteúdos para alcançar o desenvolvimento das capacidades mentais e a autonomia de julgamento (Colello, 1999). A revisão das raízes academicistas da escola depende, segundo Coll (1999), de uma verdadeira revolução conceitual e metodológica capaz de integrar educação e ensino, desenvolvimento e aprendizagem.

Evidentemente, entre o discurso pedagógico ou o sucesso de algumas experiências escolares e a efetiva concretização de novas posturas no sistema educacional, há uma considerável distância, compreendida, entre outros fatores, pelo despreparo do professor e pela ineficiência dos projetos ou políticas de formação docente. A fragilidade deles faz persistir a tendência de, na prática, “ensinar tal como aprendi”, já denunciada por Mizukami em 1986. Para grande parte dos professores, o desafio do novo gera insegurança, da qual resultam inúmeros mecanismos de resistência (Hernandez, 1998), responsáveis pelo vicioso embate de propostas bem-intencionadas, mas mal-assimiladas.

Na dimensão institucional, o caso de Rui é o perfeito exemplar da escola conteudista, tarefeira, inflexível e resistente; seu fracasso faz sentido em face de um projeto educacional reducionista, que não contempla o homem nem o cidadão. De fato, quando o que está em jogo é a mera assimilação de dados, a realização de tarefas previstas pelo currículo único e regionalmente circunscrito, não há como valorizar um menino bilíngüe, que demonstrou considerável capacidade de adaptação, vivenciou a prática da pluralidade cultural, ajustando-se aos diferentes costumes. Como em tantos outros casos, a trajetória e o mérito das conquistas de Rui não podem ser contempladas por quem nunca considerou a diferença na amplitude possível (e desejável) dos horizontes educacionais.    

6)      A dimensão sociocultural

Indubitavelmente, um dos fatores que mais concorrem para a permanência dos quadros nacionais de fracasso escolar é o descompasso entre a escola e a comunidade, cultura e aprendizagem. O tema, amplamente discutido nos meios educacionais, é assim sintetizado por Oliveira:

“As várias combinações de classes sociais, grupos ocupacionais, religiões, modos de acesso a produtos culturais, valores e objetivos educacionais das famílias etc., podem produzir diversas formas de relacionamento entre a cultura da escola e a cultura de seus usuários. A escola representa uma modalidade específica de relação entre sujeito e objeto de conhecimento, resultante de um determinado processo histórico de construção dessa instituição, que pode ser mais ou menos compartilhada pelos alunos e seus familiares. A falta de compatibilidade entre o que é pretendido pela escola e o que é desejável, ou possível, para seus alunos, acirrada pelo processo de democratização do acesso de diferentes grupos à escola, é fonte indiscutível de fracasso escolar (...).” (In Aquino, 1997, p.46)

Tais argumentos sustentam a evidência de que não aprendemos só pelo repertório de habilidades, pelo potencial de inteligência ou pela disponibilidade de estruturas cognitivas, mas também pelo que somos, buscamos, concebemos, valorizamos e fazemos. Cultura e aprendizagem são faces inseparáveis na condução do ensino e decisivas na constatação de seus resultados. Assim como não se pode dirigir o curso de aprendizagem em uma única trajetória, não se podem controlar os significados atribuídos ao saber ou aos usos do conhecimento conquistado.

Operando a partir de parâmetros elitistas, etnocêntricos e didaticamente inflexíveis, a prática pedagógica leva ao fracasso porque não está preparada para lidar com a pluralidade de contextos. Em síntese, muitas escolas “não falam a mesma língua” de seus alunos. O produto desse “diálogo de mudos e surdos”, são os mecanismos de seleção e exclusão, frente aos quais muitos alunos reagem ativamente, mesmo que sob a forma da “inteligência contra si mesmo”.

Como um exemplo do choque cultural e dos seus desdobramentos na inadaptação escolar, o caso de Rui é particularmente elucidativo para a compreensão do fracasso das maiorias menos privilegiadas. Evidenciando os efeitos do choque cultural (no caso, pelo claro confronto de países diferentes) na aprendizagem, na socialização e na constituição do referencial escolar negativo, Rui reproduz reações típicas de alunos desfavorecidos em quadros semelhantes (mas infelizmente não tão evidentes) de incompreensão e rejeição social. Seu fracasso é representativo de tantos outros que, da mesma forma, reagem ao sistema e são, por esse motivo, considerados culpados. Assim como Rui, esses “outros” não conseguem fazer valer na escola os seus saberes, trajetórias e  conquistas. No âmbito de um mesmo país, cidade, bairro e escola, sob a falsa idéia de que “somos todos iguais, falamos a mesma língua, vivemos as mesmas experiências didáticas e, portanto, podemos aprender da mesma forma”, ficam diluídos os confrontos das microculturas no processo de ajustamento e aprendizagem, o que torna mais difícil a compreensão do fracasso escolar.

7) Conclusão

No caso de Rui, a consideração de diferentes dimensões ilustram os inúmeros fatores envolvidos no complexo quadro do fracasso escolar. Evidentemente, o mérito da análise não é o de esgotar a compreensão dos fatores, mas de pôr em evidência a pequenez dos programas de formação docente. Centrada no eixo metodológico, grande parte dos cursos de formação inicial ou continuada peca pela abordagem excessivamente instrumental do ensino: reducionista porque incapaz de vislumbrar a amplitude do fenômeno educativo, ineficaz porque despreparada para lidar com as diferenças (e seus significados), superficial porque inibe a mudança de mentalidade na educação e antidemocrática porque perpetua práticas elitistas e etnocêntricas.

Evidentemente, não se trata de suprimir as disciplinas voltadas para a prática do ensino, mas de equilibrá-las pela profunda compreensão da ação escolar em face da realidade em que vivemos. O compromisso da escola hoje impõe, como quer Hargreaves (2001), a revisão de referenciais de aluno, de escola e de mundo em transição, uma meta sem a qual não se pode pensar a qualidade do projeto pedagógico nem a competência para ensinar, uma meta sem a qual não podemos acreditar no sonho de democratização.

Referências bibliográficas:

AQUINO, Julio (org). Erro e fracasso na escola. São Paulo, Summus, 1997.

COLELLO, Silvia. “Para onde vai a formação do professor?” In International Studies on Law and Education 1. São Paulo, Harvard Law School Association/ EDF / Mandruvá, 1999 (http://www.hotoppos.com).

COLL, Cesar. Psicologia e currículo. São Paulo, Ática, 1999.

DROUET, Ruth Caribé. Distúrbios da aprendizagem. São Paulo, Ática, 1990.

FERREIRO, Emilia. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo, Cortez/Autores Associados, 1987.

HARGREAVES, Earl e Ryan. Educação para mudança – Recriando a escola para adolescentes. Porto Alegre, Artmed, 2001.

HERNANDEZ, Fernando. “Como os docentes aprendem” In Pátio, ano 1, n.4. Porto Alegre, Artes Médicas, 1998.

MIZUKAMI, Maria da Graça. Ensino: as abordagens do processo. São Paulo, EPU, 1986.

PAIN, Sara. Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. Porto Alegre, Artes Médicas, 1986.

Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília, MEC, 1997.

Referencial Curricular Nacional, V. 1, 2 e 3. Brasília, MEC, 1998.

SCHIFF, Michel. A inteligência desperdiçada. Porto alegre, Artes Médicas, 1994.

SILVA, Maria de Lourdes. Mudanças de Comportamentos e Atitudes. São Paulo, Moraes, 1996.



[1] Trabalho apresentado no VI Congresso Estadual Paulista Sobre Formação de Educadores – “Formação de Educadores: Desafios e Perspectivas para o Século XXI” (Águas de Lindóia, São Paulo, 18 – 22/novembro, 2001)