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- orig. prefácio ao livro Ética social e governamental de Antonio Carlos R. do Amaral

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

(Heráclito)

Se é alentador o crescente interesse pela Ética nos últimos anos (em todo o mundo e também no Brasil) e o conseqüente incremento de publicações sobre o assunto, não deixa de ser inquietante, por outro lado, o fato de que são poucos os autores que aprofundam até as raízes dos problemas morais. Muito do que se discute, hoje em dia, sob o rótulo de Ética é puro e simples comportamentalismo: fórmulas para nos arranjarmos no convívio com os outros, à margem do necessário fundamento antropológico. E são precisamente esses fundamentos antropológicos da Ética que privilegiarei neste breve estudo introdutório ao livro que - em sua versão acadêmica - tive a honra de orientar.

A palavra (êthos), da qual deriva "ética", não significa somente "uso" ou "costumes" como tradicionalmente lembram os estudos introdutórios aos compêndios de Ética. E Heidegger, muito oportunamente, recorda que tem também uma outra etimologia, mais antiga, fundamental e sugestiva: "moradia", "lugar onde se habita"... As três palavras de nossa epígrafe, um famoso fragmento de Heráclito, , elucidam essa etimologia: "o lugar de habitação do homem é a proximidade dos deuses". Para apreender o sentido mais profundo dessa afirmação, Heidegger retoma um episódio relatado por Aristóteles: chegaram uns estrangeiros que queriam conhecer Heráclito e - para sua profunda decepção - encontram o famoso sábio prosaicamente aquecendo-se junto ao fogão. Ante o olhar de frustração dos visitantes, Heráclito dá de ombros e responde: "Mas, se também aqui estão os deuses...". E conclui: ", como diz o próprio Heráclito: a morada (familiar) (geheure Aufenthalt) é para o homem o aberto para a presentificação (Anwesung) de Deus (o in-familiar)". Em suas análises, nosso autor volta-se para a forma da justiça e mostra que o , a morada do homem, é o ser! O é o ser que somos (e nos tornamos...) pelo agir livre e responsável.

Tal posicionamento situa-se, dizíamos, no próprio núcleo da grande tradição de pensamento ocidental. E talvez por ignorar isto é que nosso tempo - assentindo acriticamente aos novos dogmas do ceticismo e do relativismo - apresente tantos desajustes, desencontros e cacoetes existenciais (note-se, a propósito, que "cacoete" remete etimologicamente a jajo*| - o mau, disforme, falhado - ).

Se essa convicção - como mostra Rodrigues do Amaral - é muito clara em Santo Tomás de Aquino e nos clássicos da filosofia ocidental, ela é uma constante também em toda a tradição literária e artística, e encontra-se também presente em inúmeras outras culturas e épocas. A grande exceção parece ser o homem de nosso tempo: sua sensibilidade para o profundo sentido do desvaneceu-se e ele acabou por tornar-se, para nós, um "essencial esquecido" (um esquecimento que traz gravíssimas conseqüências sociais e pedagógicas).

Nesse sentido, a proposta de filosofia da educação contida em Ética Social e Governamental começa por recordar o alcance do , assim resumido, brilhantemente, na evocação de Shakespeare por Rodrigues do Amaral:

"Somente a partir da identificação da relação essencial entre justiça e felicidade, pode-se conhecer o verdadeiro significado da tão conhecida, e por vezes pouco compreendida, indagação de Hamlet: 'Ser ou não ser: eis a questão!'. Como se recorda, o príncipe da Dinamarca está se interrogando sobre uma grave decisão que deveria tomar: matar ou não o próprio tio, que supunha ter assassinado seu pai, o rei, para casar-se com a rainha, sua mãe e, assim, assumir o trono. De se notar que a questão que se coloca está na dimensão do fazer, do facere: o que fazer com o punhal? No entanto, Shakespeare eleva o plano da questão para uma dimensão bem mais sublime, superior, em uma palavra: existencial. Faz o príncipe da Dinamarca indagar-se pelo que realmente é importante, colocando a questão sob a ótica de sua felicidade, na dimensão moral do agere, do agir interior. Na dimensão do to be or not to be, isto é, da conclusão de que seu ato, se justo - do ponto de vista moral - será to be, ou seja, o permitirá “ser”, no sentido existencial do termo: um homem realizado e, portanto, feliz. Se injusto, por outro lado, será not to be - “não ser” -, com o que terá fracassado existencialmente, frustrando a sua capacidade de realizar-se, de atingir a felicidade. Com isso, nas palavras do príncipe: 'Ser ou não ser, eis a questão! Que é mais nobre para o espírito: sofrer os dardos e setas de um ultrajante fardo, ou tomar armas contra um mar de calamidades para pôr-lhes fim, resistindo?' Diante desse cenário shakespeariano, vê-se salientada a intrínseca relação entre justiça e felicidade, impondo a justiça 'dar ao outro o que lhe é devido', sob pena de, ao que pratica a injustiça, ser-lhe negada a possibilidade de realização existencial".

Neste estudo introdutório, pretendemos indicar, ainda que brevissimamente, como essa mesma convicção essencial - essencial para o direito, para a filosofia, para o convívio social e para a educação - a afirmação de que a moral se enraíza no ser e até com ele se confunde - é uma convicção universalmente estendida.

Ela não é, como dizíamos, apanágio da filosofia ocidental, mas encontra-se também em diversas outras instâncias: da Comédia de Dante à tradição confuciana; das estruturas das línguas tupi ou bantu às intuições fundamentais de um Guimarães Rosa (para ficarmos apenas com uns poucos exemplos).

Na Divina Comédia (Purg. XXIII, 31-33), ao tratar da recomposição do ser, desfigurado pelos desvios morais, encontramos este enigmático terceto: "Pareciam-lhes os olhos anéis sem gemas  /  E quem no rosto dos homens lê 'homem'  /  Bem poderia reconhecer o M"

Que significa este misterioso M? (emme que rima com gemme). O sentido desses versos é que a ação injusta atenta contra o próprio ser de quem a pratica, desfigura-o, rouba-lhe o to be, o rosto humano - poeticamente figurado, em concretismo, na palavra "OmO" (que, na língua de Dante, significa: "homem"). "Omo" só se perfaz, quando aos O (que são os olhos) se ajunta - pela prática da justiça - o M, que configura il viso.

Também para Confúcio - e para a tradição do Extremo Oriente, registrada não só em seus tratados sapienciais, mas até mesmo enraizada nas línguas - a moral é o ser homem (ren, em chinês / jin, em japonês), e o imoral (fei-ren / hi-nin - a grafia japonesa é idêntica à chinesa) é o não-homem, como plasticamente indica o ideograma da negação e da falsidade, da desestruturação desde dentro, da desagregação, anteposto ao ideograma ren homem.

Reencontramos ainda as mesmas teses fundamentais da antropologia assumida por Ética Social e Governamental (a ligação entre os transcendentais ser, verdade e bem, a moral como processo de auto-realização, a afirmação da virtude como ultimum potentiae etc.), grandiosamente expostas - e é todo um tratado de filosofia da educação moral - pelo jagunço Riobaldo em Grande Sertão: Veredas (Rio de Janeiro, José Olympio, 5a. ed., p. 366):

"Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa - a inteira - cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver - e essa pauta cada um tem - mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto: mas, fora dessa conseqüência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador - sua parte, que antes já foi inventada, num papel...".

É o mesmo Guimarães Rosa quem nos sugere também o reencontro da sabedoria da língua tupi. Para o tupi - que usa o sufixo -eté como intensivo, superlativo e índice de verdade ontológica - o homem bom moralmente é aba-eté, ou seja, o homem de verdade ou, no sentido de S. Tomás, simpliciter e ultimum potentiae [1] .

Esse drama fundamental ético-existencial do homem transcende o âmbito da filosofia acadêmica e atinge a arte popular: é apresentado até numa recente canção, uma das mais inspiradas páginas de Milton Nascimento, Yauaretê (canção-título do álbum de mesmo nome). Nessa canção, o homem dialoga com a onça yauaretê, pedindo-lhe - a ela que já atingiu o ultimum potentiae de seu ser-onça: yauar-eté - que lhe ensine o correspondente ser-homem. E aí se retoma todo o problema ético, de Platão a Sartre: o que é verdadeiramente ser homem? Maria, a onça yauaretê, já realizou a plenitude do ser-onça (que, no caso, se resume na "sina de sangrar") e o poeta, entre perplexo e invejoso, pergunta-lhe: O que é ser homem? [2] Que devo fazer para ser homem em plenitude (ultimum potentiae), aba-eté? Qual é a areté, a excelência, a virtude específica do humano?

Estes são os fundamentos da Ética, judiciosamente explorados por Antonio Carlos R. do Amaral em sua fecunda análise temática da justiça distributiva e da democracia participativa. Nesse terreno, a principal contribuição do autor está em apresentar uma visão segura, equilibrada e completa (o fragmentarismo é, talvez, a principal miopia moral de nosso tempo...), demonstrando a necessidade absoluta - caso queiramos realmente erigir uma sociedade justa simpliciter - do conceito clássico de iustitia distributiva como contraponto da democracia participativa. Só assim o tão propalado ideal de cidadania pode realmente ter pleno (e efetivo...) significado.

Não quero terminar esta nota sem me referir à relação de Tomás de Aquino com dois dos temas centrais de estudo do presente livro: a advocacy e o lobby. Santo Tomás escreveu, em 1256, um estudo - guardadas as devidas proporções e distâncias e tendo em conta, sobretudo, a sociedade e a mentalidade eclesiástica da época - sobre a advocacy e o lobby: o "De hoc quod curias regum et potentum frequentant" ("Sobre o freqüentar a corte do rei e os círculos dos poderosos").

Trata-se do capítulo sétimo da quarta parte do Contra impugnantes Dei cultum et religionem, um estudo polêmico, refutando a incompreensão contra as novas ordens (dominicana e franciscana), como a expressa no De periculis novissimorum temporum de Guilherme de Saint-Amour. Tomás, entre outros temas, defende a legitimidade da presença de religiosos e de homens virtuosos nas cortes e círculos de poder (ainda hoje, nos Estados Unidos, emprega-se a expressão amicus curiae).

O "De hoc quod curias regum et potentum frequentant" começa por elencar seis possíveis objeções contra uma tal atuação de religiosos e homens virtuosos. Inicia, por exemplo, com a interpelação de que o ambiente de vaidade e de poder seria incompatível com a vida religiosa, pois o próprio Cristo, a propósito de S. João Batista, diz: "Que fostes ver no deserto? Um homem vestido delicadamente? Ora, aqueles que se vestem delicadamente estão nos palácios dos reis..." etc.

O Aquinate responde que essas objeções mostram-se manifestamente falsas (manifeste falsum ostenditur) quando lembramos que conviveram com reis - e influenciaram centros de poder - homens tão virtuosos como: José (junto ao faraó do Egito), Moisés, Natan, Daniel (junto ao rei da Babilônia), Neemias, Mardoqueu (na corte de Assuero), São Sebastião (junto a Diocleciano) e os cristãos que estavam na corte do próprio Nero (o apóstolo Paulo - na epístola aos filipenses - envia saudações dos irmãos que são da casa do César) etc.

A essas constatações, Tomás ajunta o argumento: do mesmo modo que os religiosos - de acordo com os estatutos de sua ordem - podem, propter alios, pelo bem dos outros, se envolver na agitação da vida ativa (se actionum tumultibus implicare), eles podem também - ressalvada a retidão de intenção (non favore humano vel potentia delectati) - conviver com os poderosos e influenciá-los para que muitos encontrem o caminho da retidão (ut plures ad viam salutis trahere possint). E conclui, com Gregório Magno, que o próprio Filho de Deus, o Verbo, deixou o silêncio do seio do Pai e veio a público entre nós.

Na resposta às objeções, Tomás adverte - e é a conclusão de seu estudo - que não se trata, no homem virtuoso, de aproximar-se da esfera do poder em benefício próprio, mas ad fructificandum e não ad delectandum (para dar bons frutos e não pelo prazer do poder...).



[1] . Cfr. "Tomás de Aquino e a filosofia tupi" in LJL Oriente e Ocidente: o literário e o popular, São Paulo, DLO-FFLCHUSP, 1995.

[2] . Entre outros versos de profunda sintonia com o pensamento clássico, diz a canção: "Senhora do fogo, Maria, Maria / Onça verdadeira me ensina a ser realmente o que sou (...) / Vem contar o que fui, me mostra meu mundo / Quero ser yauaretê / Meu parente, minha gente, cadê a família onde eu nasci? / Cadê meu começo, cadê meu destino e fim? / Pra que eu estou aqui? (...) / Dama de fogo, Maria, Maria / Onça de verdade, quero ter a luz (...) / Me diz quem sou, me diz quem foi / Me ensina a viver meu destino / Me mostra meu mundo / Quem era que eu sou?