Educação e Intervenção Escolar

 

Silvia M. Gasparian Colello
Universidade de São Paulo

 

1. Educação e escola: dilemas e desafios

A educação no sentido pleno... como alcançá-la? É possível planejar a intervenção para, efetivamente, atingir o ideal do homem educado? Qual o papel da escola nos diferentes estágios do processo educativo?

Como processo complexo que acompanha o indivíduo ao longo de toda a vida, a ação educativa está vinculada a inúmeros agentes, múltiplas experiências e incontáveis fontes de aprendizagem, a maioria dos quais de difícil controle. A vida é essencialmente educativa, mas os rumos e os produtos de “sua pedagogia”, particularizados nas histórias de cada um de nós, são absolutamente imprevisíveis. Parte integrante do processo educativo, mas configurando-se como iniciativa diferenciada, a escolarização parece ser a alternativa única e insubstituível de conduzir a formação humana sob modos de intervenção planejados à luz de princípios éticos, culturais, cognitivos, sociais e políticos. Constitui-se uma oportunidade privilegiada, tendo em vista o período de interferência (infância e adolescência), a duração (pelo menos 8 anos de Ensino Fundamental [1] ) e a sistemática de trabalho.

Ao longo da história, a escola consagrou-se como instituição especializada em ensinar, sem contudo resolver a polêmica relação entre a aprendizagem e o processo educativo. Por um lado, é possível vislumbrar a “educação como um subproduto do ensino”, isto é, como uma conseqüência previsível a partir da assimilação de certo estoque de conhecimento. Por outro, parece bastante defensável a perspectiva do “ensino como subproduto da educação”, uma ótica que coloca a aprendizagem a serviço do alvo maior de formação do homem e, portanto , que ultrapassa a mera aquisição do saber (Gusdorf, 1970).

Na prática, ambos os modelos correm riscos de implementação: iniciativas que, tão centradas nos princípios gerais de formação, acabam por cair no “laisser faire” pedagógico, perpetuando o universo da ignorância, prejudicando a democratiza-ção do saber e, consequentemente, comprometendo sua meta educativa original; outros, mais comuns no sistema brasileiro, que, no afã de “passar conteúdos”, contentam-se com o acúmulo estéril de informações, desviam-se dos ideais educativos e descuidam-se do homem, perdendo a razão de ser. De qualquer forma, o resultado prejudica a educação e justifica a crise da instituição escolar, repercutindo na conformação de uma sociedade conservadora, injusta, violenta e corrompida [2] .

A realidade de nossas escolas hoje deixa ao século XXI o desafio de colocar o esforço pedagógico (o ensino) a serviço das metas educacionais, visando o equilíbrio entre o “ser saber” e o “saber ser”, isto é, entre o sujeito cognoscente e o sujeito social, consciente, equilibrado e responsável. A revisão dos projetos pedagógicos e as reformas curriculares já em andamento em muitos países legitimam-se pela busca de uma nova relação entre homem e conhecimento para democratizar o saber e fazer dele uma bússola capaz de nortear a formação de posturas críticas e as tomadas de decisão.

Do ponto de vista teórico, os educadores não podem desconsiderar a contribuição de importantes pesquisadores, como é o caso de Piaget, para quem a aprendizagem depende de um processo pessoal e ativo de constante abertura para o novo em um contexto de significados (razão pela qual o ensino não se encerra em si mesmo). Além dele, a abordagem interacionista da psicologia russa prestou enorme contribuição às concepções de intervenção escolar pela ênfase no poder das mediações entre o sujeito e o objeto de conhecimento, mecanismo essencial para o descobrimento do mundo e construção de si mesmo.

Do ponto de vista prático, há um consenso praticamente geral de que a escola não mais pode se fechar aos dramas de nossa realidade: a devastação ambiental, a intolerância, o racismo, as drogas, a violência, a incidência de doenças sexualmente transmissíveis, a gravidez precoce...

Em face da amplitude, natureza e complexidade das metas educativas, a escolaridade deixa de ser concebida como mera sucessão de ensinamentos pré determinados e válidos por si só, cuja somatória garantisse necessária e definitivamente a educação humana. Seja no plano teórico, seja na dimensão prática, a educação do futuro clama pela aproximação entre o ser e o saber pelo rompimento dos muros que separam a escola e o mundo. Nesse sentido, a difícil compreensão entre as esferas pedagógica e educacional [3] no projeto de ensino será tão mais relevante quanto mais ela puder subsidiar a articulação entre ambas em benefício do ajustamento pessoal e da inserção do homem no mundo em que vivemos.

2. Princípios da prática educacional

Ao se considerar a prática educacional na escola, deve-se evitar a “sedutora e cômoda tentação” de aceitar fórmulas genéricas e pré-estabelecidas de intervenção, pois assim como não há escolas “em abstrato”, não se pode projetar a ação educativa a partir de um modelo inflexível e descontextualizado de aluno. Ao longo do século XX, os estudos a respeito do desenvolvimento humano [4] consolidaram-no como objeto de investigação. Longe de se limitar aos processos intrínsecos do desenvolvimento, os aportes da psicologia social, sociolinguística e sociologia permitiram enfocar o ser humano em face do outro, em uma relação dinâmica e significativa com o momento histórico e a cultura. O resultado de tantos estudos reflete-se não só nas mudanças conceituais sobre a infância e adolescência, como também nas importantes contribuições para explicar o relacionamento das crianças e adultos, nos dados acerca dos mecanismos evolutivos e, finalmente, sob a forma de implicações educacionais que fundamentam a revisão de tradicionais práticas escolares.

Avaliando o impacto das recentes pesquisas sobre a compreensão de infância que hoje temos, Kramer (In Leite, Salles e Oliveira, 2000) explica o significado da dimensão sócio histórica da criança: necessariamente inserida em uma cultura (o que dá significado a seus atos e pensamentos), ela também interfere no âmbito social, modificando-o.

A constatação da criança enquanto ser ativo, capaz de conceber idéias, submetê-las ao confronto com a realidade para reconsiderá-las posteriormente, enfrentar produtivamente os embates interpessoais e contradições de nosso mundo para, a partir deles, criar e recriar, dessacralizar objetos e instituições, mudar a ordem das coisas e assumir a “gestão cognitiva” nos complexos processos de assimilação e acomodação redimensiona definitivamente a ação educativa. Em oposição à tradicional prática pedagógica constituída pela submissão, calcada no “adultocentrismo” e “didatização” de conteúdos [5] , somos desafiados a considerar o ensino (e consequentemente, o processo educativo realizado na escola) como uma construção pessoal, levada a cabo pelas várias descobertas e atribuições de significado em um processo dinâmico de construção e desconstrução.

Nessa perspectiva, é possível responder à questão inicialmente formulada, admitindo, sim, a intervenção educativa no âmbito escolar. Mais do que isso, é preciso defendê-la como objetivo essencial da escola, sem o qual perde-se o sentido da prática pedagógica. Longe de se configurar como processo rígido, projetado em uma única direção, o esforço educativo orienta-se para o ajustamento do indivíduo em possibilidades simultâneas e complementares de desenvolvimento, personalização, socialização, humanização e libertação [6] a partir dos seguintes requisitos:

a) O Eu: consideração do estágio de desenvolvimento do aluno como meio de obter diretrizes para a ação educativa, não pelo delineamento de quadros descritivos de possibilidades e limites [7] , mas pela dimensão prospectiva do sujeito, isto é, aquilo que ele pode vir a ser.

b) O mundo: consideração da realidade histórica e social do aluno, essencial no “palco das negociações pedagógicas” para situar necessidades, significados, objetivos, limites, desafios, meios e razões para a prática educacional.

c) A escola: consideração do impacto da vida escolar sobre o aluno e seus significados ao longo da vida estudantil, aspectos esses capazes de redimensionar a vida do sujeito dentro e fora da escola [8] .

d) A ação educativa: clareza das metas educativas priorizadas pelo projeto pedagógico da escola a partir dos itens anteriores, em perspectivas de intervenção flexíveis e nunca definitivas.

Pensada sob o enfoque da dinâmica de implementação, a prática educativa faz sentido nas esferas macro e micro. A primeira diz respeito ao planejamento previsto a longo prazo com o propósito de nortear e imprimir coerência ao projeto escolar. A segunda refere-se ao exaustivo acompanhamento da rotina dentro e fora da sala de aula (os alunos individual e coletivamente, os fatos e ocorrências, o dito e o não dito, o sentido, o conhecido e o percebido, as dificuldades e conquistas, os dilemas e as alternativas de encaminhamento) em um constante trabalho que avalia e re-alimenta o plano elaborado. No conjunto, trata-se de uma reorientação do trabalho escolar já que os educadores são constantemente convidados a conhecer para estabelecer prioridades, projetar para, na prática, concretizar o seu trabalho, rever concepções para recriar novos meios de intervenção em diferentes possibilidades.

3. Momentos de intervenção educativa

Muitos são os autores que, preocupados com a ação educativa na escola, costumam arrolar os possíveis projetos de intervenção como, por exemplo, “recepção e acolhimento dos novos alunos”, “passagem da 4a para a 5a série”, “orientação de estudos”, “orientação sexual” e “orientação profissional”. A despeito do indiscutível mérito de tais produções, pouco se tem dito a respeito do significado das intervenções no contexto da história do sujeito e da progressão da vida estudantil. Com o propósito de aprofundar o debate acerca das relações entre a educação e a escola e assim, contribuir para a compreensão dos desafios que a escola de hoje nos impõe, o presente artigo pretende situar momentos de intervenção educativa concebidos à luz dos princípios e referenciais apontados. São três grandes momentos norteadores da prática educacional que se sobrepõem, cada um deles incorporando os demais ou antecipando os momentos subseqüentes com diferentes graus de intensidade e significado: a institucionalização, a escolarização e a orientação para o social.

3.1. Educação Infantil e o processo de institucionalização

Ao ingressar na escola e antes mesmo de poder enfrentar a peculiar situação de ensino-aprendizagem que caracteriza a instituição, a criança depara-se com um ambiente único e até então inesperado, transformador do sujeito e da sua ótica sobre o mundo. A passagem do meio familiar, geralmente afetivo e protetor, ao ambiente institucionalizado da escola implica na descoberta de uma estrutura social que, em maior ou menor grau, impõe ao aluno:

· a ampliação da convivência social;

· a convivência, concorrência e competição entre iguais (os colegas);

· a reconstituição do Eu no grupo, reafirmando seus limites e potencialidades;

· novos vínculos de relacionamento entre adultos e crianças (em relação à vida familiar);

· a compreensão dos diferentes papéis sociais e suas implicações na regulação de tarefas, no delineamento de direitos e deveres e nas relações pessoais;

· a hierarquia de pessoal e das “leis” de força e poder;

· a cobrança mais ou menos implícita sobre os alunos em diretas ou indiretas exigências de performance, desempenho e comportamento;

· o funcionamento regrado do sistema escolar: normas, horários, divisão de ambientes, limites instituídos, exigências de material, vestuário, etc.

· a integração do ritmo individual à dinâmica peculiar da instituição na sucessão de atividades, negociações, exigências e conflitos.

Levando-se em conta os aspectos inerentes ao processo de institucionalização (o impacto exercido pelo ingresso na escola), as características da faixa etária, o perfil sócio cultural da clientela, os objetivos da escola em particular, a interferência educativa deve ainda considerar o desafio hoje colocado à Educação Infantil: atrelar as iniciativas meramente assistencialistas à dimensão pedagógica [9] . Pela integração do “cuidar e ensinar”, a prática educativa compromete-se, já nos primeiros anos de escolaridade, à uma ação integrada em prol da construção do conhecimento e do desenvolvimento de posturas perante o mundo, a escola, o professor, os colegas e o saber. Para tanto, a intervenção educativa nesse período constituí-se a partir dos seguintes eixos de trabalho:

a) Posicionamento pessoal no espaço e no tempo em estreita sintonia com o desenvolvimento psicomotor:

· vivência de possibilidades motoras,

· ampliação e enriquecimento do repertório motor,

· adequação e ajustamento do repertório motor no espaço/tempo escolar.

b) Dimensão sócio-afetiva:

· separação dos familiares,

· estabelecimento de novos e “produtivos” meios de convivência e relacionamento,

· integração ao ambiente escolar pela compreensão dos papeis sociais e vínculos de relacionamento,

· percepção e respeito aos valores de convivência social.

c) Linguagem e expressão:

· ampliação do repertório lingüístico e expressivo em contextos significativos de interlocução,

· desenvolvimento das múltiplas formas de comunicação e representação (enriquecimento do universo simbólico),

· familiarização com a língua escrita e mobilização de recursos cognitivos para compreender seus usos e funcionamento.

d) Identidade e autonomia:

· conhecimento de si, dos outros e do meio,

· expressão de sentimentos e idéias pessoais,

· desenvolvimento dos hábitos de auto-cuidado e auto-preservação,

· estímulo às atitudes independentes e autônomas.

e) Aspectos relacionados à saúde e higiene:

· desenvolvimento de hábitos de higiene,

· compreensão dos princípios de saúde,

· estímulo ao desenvolvimento físico e emocional,

· acompanhamento de aspectos do desenvolvimento para a prevenção de dificuldades e eventual encaminhamento.

f) Dimensão cognitiva:

· percepção e exploração do meio como estímulo ao conhecimento,

· resolução de problemas e consideração de soluções alternativas,

· estabelecimento de relações entre ocorrências e aspectos da realidade (relações de causa e efeito, implicações, antecedentes, trajetórias, etc.),

· estímulo à curiosidade natural e constituição de um vínculo positivo com o processo de aprendizagem.

3.2. Séries iniciais do Ensino Fundamental e o processo de escolarização

O ingresso no Ensino Fundamental marca, definitivamente, o vínculo com a vida estudantil. Mais do que aprender determinados conteúdos, o aluno enfrenta o desafio de se adaptar à vida escolar e à dinâmica de estudo, colocando-se disponível ao conhecimento. Nesse sentido, é lamentável constatar que, ao longo dos anos de escolaridade, muitas crianças que ingressaram na primeira série curiosas e interessadas chegam ao final do curso como portadoras de uma vasta carga de conhecimentos e habilidades, mas, infelizmente, sem a disposição de seguir seus estudos ou interessar-se pelo ensino. Até que ponto a escola constitui-se como uma “máquina de ensinar” que rouba de seus alunos a vontade de aprender?

Muitas pesquisas têm demonstrado o quanto a intensidade e qualidade da relação aluno-escola, considerados em seus diversos planos, são determinantes no processo de aprendizagem.

No plano metodológico, as linhas mais diretivas de ensino tendem a inibir a iniciativa pessoal, os esforços criativos de produção e a autonomia no trabalho escolar (Góes e Smolka In Alencar, 1995; Miniac, Cros e Ruiz, 1993).

No plano afetivo, as ocorrências vividas na dinâmica do grupo (lideranças, rejeições, convivência de grupos fechados e mecanismos de discriminação entre outros) parecem ter um papel decisivo na constituição do auto-conceito e, consequentemente, no aproveitamento escolar (Oliveira In Góes e Smolka, 1995; Cubero e Moreno In Coll Palacios e Marchesi, 1995).

No plano funcional, a relação professor-aluno é igualmente relevante para a conformação do grupo, sobretudo no que diz respeito ao estabelecimento dos princípios de convivência e dos “contratos” que regem comportamentos e o “clima” em sala de aula mais ou menos facilitador da aprendizagem (Aquino, 1996 a,b).

Finalmente, no plano cognitivo, tanto o processo de aprendizagem como a disponibilidade para a realização de tarefas específicas são afetadas por diferentes aspectos. Por um lado, a história de escolaridade, vivida a longo prazo, deixa profundas marcas na valoração do campos do saber ou na constituição do auto-conceito acadêmico, fatores determinantes para a compreensão do modo como o sujeito se lança à busca do conhecimento. Por outro lado, há que se considerar o contexto imediato, cuja força circunstancial pode, na prática, reverter um quadro de referências, gostos e disponibilidades há muito tempo cristalizadas (Colello, 1997).

Com o objetivo de apoiar o processo de escolarização, favorecer a aprendizagem e a constituição do “aluno estudante”, o professor deve estar atento à relação sujeito-escola nos vários planos de manifestação, enfrentando a difícil tarefa de canalizar energias, atenuar reações adversas, estimular lideranças ou tendências positivas, alimentar constantemente a curiosidade e o gosto pelo saber.

Considerando os sucessivos anos de escolaridade, como a criança vive tal relação? Qual é o impacto ou significado da escola para o aluno?

Em uma sondagem realizada com alunos da 1a a 5a série do Ensino Fundamental da Escola de Aplicação da FEUSP [10] (Colello, 1997), pude concluir que, longe de ser estática, a relação da criança com a escola passa por sucessivas fases mais ou menos previsíveis. A consideração delas pode, sem dúvida alguma, constituir-se em um precioso referencial para balizar a interferência educativa. O referido estudo foi o levantamento das referências feitas à escola em aproximadamente 300 redações, nas quais o sujeito era convidado a escrever sobre si e sobre suas fantasias. Ainda que o tema da escolaridade não tivesse sido objetivamente solicitado, ele foi espontaneamente evocado em uma alta porcentagem de textos, o que comprova a relevância atribuída pelas crianças à vida escolar. O teor das abordagens feitas é, conforme dito anteriormente, variável nas sucessivas séries.

Na primeira série, o ingresso no Ensino Fundamental e, particularmente, os desafios da alfabetização em curso fazem da escola uma conquista valorizada a ponto de se incorporar como referência básica para o sujeito tanto quanto a família e os brinquedos. Não raro, a criança de 7 ou 8 anos costuma apresentar-se afirmando: “Meu nome é..., tenho ...anos e estudo na escola...”. Até a segunda série, a concepção da “escola novidade”, vista em bloco como um bem em si mesma, vai sofrendo alterações, obrigando a criança a criar vínculos com as diferentes atividades escolares, em uma dinâmica de trabalho que, seja pela natureza, seja pela diretividade com que é conduzida, difere das práticas da Educação Infantil. Mais cedo ou mais tarde, a criança descobre que os períodos de recreação diminuíram, assim como a flexibilidade da rotina em sala de aula. Mais cedo ou mais tarde, ela também percebe que a busca do conhecimento tem o seu preço, impondo formas de trabalho nem sempre lúdicas e prezerosas.

A consideração desse primeiro período sugere a necessidade de uma intervenção educativa capaz de minimizar o ainda inevitável choque na passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental. Assim, fazendo valer o entusiasmo pela vida escolar, é preciso canalizar a energia infantil em benefício da adaptação, particularmente nos seguintes aspectos:

a) Ajustamento da ação no tempo escolar:

· conhecimento da escola e de seu funcionamento,

· integração do ritmo pessoal ao ritmo do grupo e à dinâmica das aulas,

· uso adequado do espaço e do material escolar.

b) Dimensão sócio-afetiva:

· fortalecimento dos vínculos afetivos,

· estabelecimento de relações produtivas e favoráveis à vida estudantil,

· construção de normas de conduta e regras de convivência (explicitação de possibilidades e limites).

c) Linguagem e expressão

· enriquecimento do universo simbólico em novas possibilidades de expressão,

· descoberta da língua escrita nos diversos modos de produção e de interpretação,

· uso da língua em possibilidades reais e significativas de manifestação de si, interlocução e produção de conhecimento.

d) Dimensão cognitiva:

· sustentação de vínculos positivos com o saber e com processo de construção do conhecimento, o que implica na possibilidade de conviver e enfrentar dificuldades (eventualmente, decepções) inerentes à busca cognitiva,

· estabelecimento de relações entre o conhecimento conquistado e a interpretação do mundo para a ampliação de horizontes pessoais.

Nos anos seguintes, para os alunos das 3a e 4a séries (crianças de 9 e 10 anos), a escola consagra-se como aspecto central da vida, em uma crescente tomada de consciência de si em face das atividades, dos conteúdos e dos companheiros. Nesse período, o aluno já é capaz de perceber os desafios da aprendizagem, a partir de suas facilidades e dificuldades. O comportamento dos outros (colegas e professores) funciona como o reconhecimento do “status” da criança na escola, um importante “feed back” que situa o sujeito no contexto escolar, determinando, em grande parte, suas possibilidades de aprendizagem, sucesso e realização. Tudo isso sugere as seguintes prioridades na interferência educacional do período em questão:

a) Ajustamento da ação no tempo escolar:

· organização dos estudos e planejamento das atividades pessoais e coletivas.

· consciência e administração do tempo dedicado à escola ou as tarefas escolares.

b) Dimensão sócio-afetiva:

· fortalecimento dos trabalhos em grupo pela distribuição de tarefas, aproveitamento das competências, respeito às diferenças e aos limites de cada um,

· reforço das normas de conduta e regras de convivência.

c) Dimensão cognitiva:

· conquista da autonomia cognitiva a partir de competências tais como pesquisar, analisar, resumir, sintetizar e confrontar posições,

· integração de competências (cognitivas, lingüísticas e motoras) às situações vividas e aos diferentes campos de estudo,

· fortalecimento dos hábitos de estudo,

· estabelecimento de relações entre o conhecimento conquistado e a interpretação do mundo para a constituição de uma postura crítica perante a realidade.

4. Ensino Fundamental e Médio: a adolescência e orientação para o social

A passagem para a 5a série aos 11 anos de idade é marcada por interferências que acabam por redimensionar a vida estudantil e as perspectivas pessoais. No plano escolar, a nova conformação do funcionamento institucional exige do sujeito a consolidação da autonomia estudantil já anunciada em anos anteriores. Contudo, a despeito das crescentes exigências escolares, o aluno projeta-se progressivamente para fora das “instâncias estritamente pedagógicas” tal é a força dos focos de desenvolvimento, o impacto da recentes descobertas e o conflito de sentimentos aí envolvidos. Os processos de luto gerados pelas sucessivas perdas (o “status” de criança, os brinquedos e fantasias), o crescente interesse por temas não considerados pela escola, a busca de identidade, o desejo de responder a perguntas como “quem sou” e “o que quero” são, segundo Oliveira e Chakur (In Leite Salles e Oliveira, 2000), elementos desestruturantes da pessoa que se configuram simultaneamente como elementos constituintes do amadurecimento e inserção na vida adulta. O dia a dia escolar é, assim conturbado pelos fortes apelos de ordem sexual, afetivo, econômico, ideológico e social. Assim, ainda que o aluno reconheça a importância do ensino, ele o faz em nome de metas futuras, certamente externas ao perímetro escolar ou aos objetivos estritamente escolares. Em síntese, a escola deixa de ser o eixo central da vida do aluno. Os conflitos entre a escola e os apelos da vida social, tão freqüentes nos alunos do Ensino Médio (15 a 17 anos), já aparecem muitas vezes entre os pré adolescentes da 5a série, conforme atesta o seguinte texto escrito por um garoto de 11 anos da Escola de Aplicação [11] :

“Já são quatro horas e eu tenho que estudar para a prova de Português, mas meus amigos me convidaram para jogar futibl (futebol), eu acho que vou jocar (jogar) e depois eu estudo, me disidir (decidi) vou ir e depois estudarei mas se au (ao) me atrasar e não de (der) tempo de estudar e eu for mal na prova minha mãe me mata, mas se o meu time perder eles me matam! O que eu faço. (?) Filho tá na hora de ir para escola, hoje você tem prova esqueceu? Não mãe eu já to indo!

A prova!!! O futibol era só um sonho e eu não estudei ai meu Deus do céu.”

O texto em questão evidencia um conflito bastante comum entre os jovens pela oposição entre apelo social (no caso, o divertimento) e obrigação escolar, entre sonho e realidade, em um polêmico contexto de administração do tempo, compromissos (com a mãe) e relações interpessoais (amigos).

Em face da realidade juvenil, os rumos da intervenção educativa sofrem considerável modificação. Se, inicialmente, ela priorizava a integração do aluno na escola (seja pela familiaridade com o meio institucional, seja pela ênfase na formação do estudante), agora ela volta-se para a inserção do sujeito no mundo. Depois de tantos anos na escola, o adolescente se defronta com os apelos da sociedade e clama por uma escola cúmplice do seu momento de vida. Assim, sem desconsiderar o apoio ao processo de ensino-aprendizagem inerente à vida escolar, a interferência educativa reforça seu compromisso social, tendo em vista a preparação de jovens para o exercício da cidadania, para a autonomia e responsabilidade de atitudes. Com base nesse princípio, é possível apontar as seguintes prioridades da educação de jovens:

a) Dimensão física e psicológica:

· incentivo à criação de subsídios para que o indivíduo possa lidar com as transformações físicas e psicológicas, minimizando focos de conflito e insegurança e favorecendo a construção da identidade,

· fortalecimento de posturas, valores, e informações que possam favorecer a preservação de si e da saúde.

b) Dimensão sócio-afetiva

· incentivo do desenvolvimento da consciência crítica que fundamenta a tomada de atitudes, a autonomia e a responsabilidade no relacionamento com o outro e com o mundo,

· subsídios para o enfrentamento de novos desafios tais como o exercício da cidadania, a escolha profissional, o vestibular, o início da vida sexual e o ingresso no mercado de trabalho

· promoção de oportunidades para a conquista da autonomia e do bom relacionamento no grupo de convivência.

c) Dimensão cognitiva

· ajustamento do projeto pedagógico de modo a resgatar o valor do conhecimento e do trabalho escolar na perspectiva da sociedade e da inserção no mundo do trabalho.

5. Conclusão

Chegamos às portas do século XXI com a certeza de que, na escola, não basta transmitir informações, é preciso educar. Embora o ensino seja parte integrante do processo educativo, o desafio que hoje se coloca ultrapassa a esfera da simples aquisição de conhecimento para dar sentido e aplicabilidade ao que é aprendido. É assim que crianças, por natureza ativas e curiosas, podem tornar-se cidadãos conscientes, críticos e responsáveis.

A intervenção educativa deve, contudo, incorporar princípios flexíveis capazes de contemplar as particularidades pessoais e culturais, escolares e sociais, tendo como alvo os processos de desenvolvimento, personalização, socialização, humanização e libertação. Trata-se, portanto de uma prática essencialmente pedagógica que ganha sentido pela sua conotação política.

Tendo em vista o inegável impacto exercido pela escola sobre o aluno, o rumo dessa intervenção ao longo da vida escolar segue um movimento dialético que procura inserir o homem na escola, favorecer a sua integração e aproveitamento para, finalmente, devolvê-lo à sociedade. Na medida em que esses momentos de rumos contrários se sobrepõem no processo educacional, preparar o cidadão é, em certa medida, investir na formação do estudante e, mais do que nunca, valorizar o processo de escolaridade.

Referências bibliográficas:

Alencar, Eunice (org.) Novas contribuições da psicologia aos processos de ensino e aprendizagem. São Paulo, Cortez, 1995.

Aquino, Julio. Confrontos na Sala de aula: uma leitura institucional da relação professor-aluno. São Paulo, Summus, 1996 a.

____________ Indisciplina na escola – Alternativas teórico práticas. São Paulo, Summus, 1996 b.

Colello, Silvia. Redação Infantil: tendências e possibilidades. tese de doutorado apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.

Coll, César, Palacios, Jesus & Marchesi, Alvaro (org). Desenvolvimento Psicológico e Educação Vol 1 Psicologia Evolutiva, Porto Alegre, Artes Médicas, 1995.

Gusdorf, G.  Professores para que? Lisboa, Moraes, 1970.

Leite, Salles e Oliveira. Educação Psicologia e Contemporaneidade. Taubaté, Cabral Editora Universitária, 2000.

Miniac, C. B., Cros, F. e Ruiz, J. Les collégiens et l' ecriture, Paris, ESF/INRP, 1993.

Smolka e Góes (org) A Linguagem e o outro no espaço escolar. Campinas, Papirus, 1995.



[1] O leitor não familiarizado com o Sistema Brasileiro de Educação, considere a seguinte terminologia: Educação Infantil (crianças até 7 anos), Ensino Fundamental (de 7 a 14 anos), Ensino Médio (15 a 17 anos).

[2] Conservadora porque incapaz de criar alternativas para os seus problemas e impasses. Injusta porque calcada em princípios não democráticos que fazem prevalecer a supremacia de uns sobre outros. Violenta porque se mantém pela força, gerando reações igualmente agressivas. Corrompida porque destituída de valores e de senso de responsabilidade.

[3] A compreensão de ambas é particularmente “difícil” porque implica em poder distinguir processos que, na prática, são indissociáveis: ao ensinar uma determinada disciplina, qualquer professor, ainda que involuntariamente, educa pela sua postura, pela tomada de atitudes, pelo modo como lida com os alunos ou como se relaciona com a disciplina em questão. A separação entre a dimensão pedagógica (o ensino) e a educacional (aquilo que sustenta o ensino e lhe dá significado) não depende portanto de um processo de mútua exclusão, mas de ênfase consciente ou inconscientemente assumida pelo educador.

[4] Veja por exemplo o trabalho de Ariès, Piaget, Wallon, Vigotsky e Luria.

[5] Por “adultocentrismo”, entenda-se a seleção e organização pedagógica elaborada a partir das perspectivas do adulto que detém o saber. A “didatização”, significa a ordenação metodológica fragmentada em unidades (ou doses) supostamente assimiláveis, sistematizada pela direção de um único percurso cognitivo e controlada por etapas previamente estabelecidas. Ambas as tendências são aspectos complementares de uma ótica de ensino nem sempre capaz de contemplar a perspectiva do aprendiz (interesses, concepções, estratégias, conhecimentos prévios e recursos cognitivos) e, portanto, pouco educativa.

[6] O homem em face da natureza evolutiva - física, neurológica e cognitiva - própria da espécie (desenvolvimento), da relação consigo mesmo (personificação), com os outros e com o mundo (socialização), em face do seu potencial enquanto ser humano (humanização) e de uma postura consciente e crítica perante todos esses fatores (libertação).

[7] Tendência bastante comum que, na tentativa de colocar em prática os ensinamentos de Piaget, circunscrevia as esferas de atuação psico-pedagógica. A partir dos trabalhos de Vigotsky, e sobretudo pelo impacto do conceito de “zona de desenvolvimento proximal”, os educadores tendem a rever o significado e extensão das formas de interferência na escola.

[8] Veja no item 3 maiores considerações sobre este aspecto.

[9] Embora muitas escolas de Educação Infantil tenham objetiva e sistematicamente incorporado a função pedagógica ao longo dos últimos 40 anos, é certo que, no Brasil, grande parte de instituiçõea (especialmente as creches que atendem crianças de 0 a 3 anos) ainda se conformam com os mesmos objetivos assistencialistas e lúdicos que lhes deram origem. No esforço em mobilizar os educadores e a opinião pública para a dimensão pedagógica do atendimento de crianças pequenas, contamos, mais uma vez, com os estudos acerca da infância antes mencionados. No seu conjunto (e independentemente de suas diferenças), eles evidenciaram a importância da aprendizagem nos primeiros anos de vida, modificando assim, o princípio implícito da escola tradicional para a qual era preciso aguardar o amadurecimento ou a “idade para aprender”. Importa ainda assinalar que, na prática, esse princípio funcionou (e continua funcionando) para desobrigar as responsabilidades perante a Educação Infantil, postergar o ingresso à escola e inibir a democratização do ensino. 

[10] Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

[11] O texto apresentado faz parte do “corpus de estudo” antes mencionado e foi transcrito integralmente conforme o original exceto pelas indicações em parênteses que foram incluídas para facilitar sua leitura e compreensão.